Universidade de Brasília, Dezembro de 2003
Departamento de Filosofia
Disciplina de Filosofia Marxista
Professor: Miroslav Milovic

O GOVERNO
DOS 'BURROS'

O que é a Burocracia, e porque oferece um
desafio ao sonho de uma sociedade sem classes.

Aproximadamente 43.750 caracteres (sem espaços).

Marcus Valerio XR
FREE MIND!!!
www.xr.pro.br
Graduando em Filosofia
Matrícula: 02/98255


INTRODUÇÃO

------- Nesta minha primeira incursão acadêmica sobre Filosofia Marxista, me vi inicialmente bastante dividido sobre que assuntos iria abordar no trabalho final, a escolha do tema Burocracia porém atende a objetivos bem antigos, embora inicialmente não diretamente ligados ao Marxismo, por isso, por convergência de interesses, decidir abordar um desenvolvimento do tema em especial, que é o modo como a existência de uma "classe" social burocrática, ao administrar diretamente o estado, pode conflitar com os ideais de uma sociedade mais justa e igualitária na medida em que tende a perpetuar, ou mesmo implementar, uma separação de classes entre os Burocratas e os Não-Burocratas, e dessa forma se tornar talvez o maior obstáculo ao sonho de um Comunismo Utópico, uma sociedade sem classes.
------- Também o simples esclarecimento do significado de Burocracia e de suas implicações já rende e justifica uma monografia, e além disso, ainda tenciono acrescentar um análise do modo como a Burocracia é retro alimentada como Classe Social por uma produção cultural que a privilegia, do mesmo modo como foram privilegiadas as classes dominantes ao longo da história.
------- Outros temas que sempre tive em mente, como a importância dos Juros para o sistema capitalista, as características abstratas do Mercado Financeiro, e a relação cooperativa ou antagônica entre Capitalismo e Desenvolvimento Tecnológico, terminaram por ser adiados, bem como perspectivas relativas ao possível futuro comunista da humanidade, e as divagações do supra comunismo, que se vierem a ser aqui abordados, o serão muito superficialmente.

------- O trabalho será dividido então em 3 partes distintas:

- Definição de Burocracia, sua origem, alguns autores que a estudaram e algumas implicações.
- A Produção de uma mentalidade, por meio de Produção Cultural, Artística e Econômica que reforça o sentimento de classe da Burocracia, a privilegia e a vende como sonho profissional ideal.
- E, num ensaio mais livre, o modo como a existência de uma Burocracia ameaça os ideais de sociedade Marxistas.

------- Continuando minha tradição pessoal em colocar títulos poéticos ou provocativos em minhas obras acadêmicas, que podem ser conferidas em meu site na internet (www.xr.pro.br/monografias), decidi com esse nome ironizar não só a percepção popular do termo, e seu inevitável trocadilho, bem como sugerir que o mesmo não deixa de ser dotado de alguma substancialidade conceitual.
------- Tão "Burro" quanto criticar algo do qual se desconhece o significado, é consolidar uma estrutura sem o devido conhecimento de suas implicações, bem como confiar à mesma funções tão vitais como o gerenciamento do estado sem sequer um conhecimento básico de sua conceituação, pressuposição e tratamento histórico, algo, com toda a certeza, completamente ausente em nossa Burocracia local, os funcionários públicos brasileiros.
------- O mesmo pode se dizer de insistir num sonho que pode ser ingênuo se não levar em conta obstáculos óbvios e de superação capaz de oferecer os maiores desafios, bem como o funcionamento comumente problemático que nossas estruturas burocráticas tem apresentado na contemporaneidade.

Marcus Valerio XR

INTRODUÇÃO E ÍNDICE

O QUE É BUROCRACIA?

BUROCRACIA COMO "CLASSE" SOCIAL

BUROCRACIA X NÃO-BUROCRACIA

BIBLIOGRAFIA


O QUE É BUROCRACIA?

------- Talvez seja um dos melhores exemplos de como uma palavra pode se popularizar ao mesmo tempo que se afasta de seu significa original a ponto da maioria das pessoas sequer conseguir ver seu significado etimologicamente dado. Praticamente qualquer cidadão civilizado tem uma idéia de Burocracia, das quais as majoritárias serão sem dúvida de sentido pejorativo, quando não reduzida apenas a seu veículo operacional, que são os documentos impressos.
------- "Burocracia é um excesso de papéis!" Dizem alguns, ou com alguma mais propriedade, seriam "Os confusos e letárgicos processos administrativos que existem nos órgãos públicos."
------- Mas Burocracia é muito mais que isso, e seu significado está exposto em especial no termo CRACIA, que todos sabem significar Governo, não obstante nem mesmo esse elemento óbvio parece ser visível à maior parte das pessoas.
------- Burocracia é então o Governo do "Buro", que é uma adaptação da palavra francesa Bureau, que originalmente, por volta dos séculos XVII e XVIII, significava um pano que cobria mesas, e posteriormente seu uso evoluiu para se referir às próprias mesas e por fim um local onde administradores se reuniam para, em cima de mesas, trabalharem em procedimentos operacionais que demandavam considerável uso de papéis e impressos. Também temos o uso da palavra Bureau, que lê-se "Birô", como associado a centros de impressão, o que remete novamente à idéia de papel.
------- Assim, Bureau passou afinal a significar o local administrativo, gerenciamento de atividades, em geral de teor público, e Bureaucratie, a partir do século XVIII, o "Governo" dos Administradores.
------- De fato, esse segmento da sociedade se encarrega de gerenciar os procedimentos do poder estatal, em alguns casos privado, mas curiosamente, diferente de todos as "Cracias" históricas anteriores, não detêm o poder para si, sendo na verdade representante de um poder outro, Estado, Povo, ou Elite. Tem-se então, em termos históricos, uma inédita separação entre o Poder Administrativo e o Poder Social, como segmento privilegiado da sociedade.
------- Talvez o famoso trocadilho "Burrocracia" não deixe de ter sua propriedade uma vez que os burocratas agem de fato como "burros de carga" a serviço de um poder que não lhes pertence diretamente, e ainda arcam com o prejuízos morais de quaisquer problemas sócio-econômicos que nem sempre, e em geral não, são de sua plena responsabilidade.
------- Mas o termo Burocracia também pode significar qualquer organização administrativa de grande amplitude, uma vez que é impossível controlar um contingente populacional grande sem recorrer a métodos de registro, documentação, e procedimentos regularizados por via indireta, isto é, cuja fiscalização e exame dos responsáveis seja feita por intermédio de editais, boletins, notas e afins. Portanto, a simples racionalização de uma atividade que envolva grande número de pessoas de modo a haver um mínimo de ordem, requer ou é a própria atividade burocrática.
------- Vários autores tem se dedicado ao estudo da Burocracia, a partir do século XVIII dado a recência do termo, do modo como ela se relaciona com o poder e serve à sociedade. Mas as divergências entre os eruditos talvez até expliquem as dificuldades relativas ao termo no senso comum, tendo para estes aparentemente transbordado.
------- Didaticamente, é possível diferenciar duas tradições diferentes neste campo de estudo.

TRADIÇÃO OTIMISTA X TRADIÇÃO PESSIMISTA

------- Embora simplificados, esses nomes já são bons sugestionadores da principal característica de cada uma destas duas correntes. Na de tendência Otimista, temos autores que vêem na Burocracia um instrumento legítimo e benéfico de controle sobre os bens públicos, sem delegar poder direto a elites sociais. Os burocratas então seriam funcionários a serviço do estado, que o administrariam sem qualquer benefício próprio salvo uma remuneração como qualquer outra atividade trabalhista. Isso contribuiria para evitar que os burocratas tendessem a tomar o poder para si, e exercê-lo de modo autocrático. Essa corrente defende que a Burocracia é favorável a Democracia.
------- A opinião inversa tem a tradição Pessimista, é óbvio. Para esta, a Burocracia é incompatível com a Democracia na medida em que esta tende sim, de algum modo, a se configurar como uma espécie de Classe Social, ou estar a serviço de uma Classe específica, que usufrui da vantagem de uma não exposição direta. Os Burocratas teriam a tendência a se corporificar como um segmento social diferenciado da população em geral, o que implicaria numa tensão em relação aos Não-Burocratas. Dessa forma, tendo acesso aos poderes de execução administrativa, e tendo grande vulnerabilidade à corrupção, os Burocratas terminariam por se tornar uma espécie de classe dominante.
------- Os representantes desta última linhagem são mais numerosos, contando com nomes como Herbert Marcuse, Elton Mayo, e Robert Michels, estando vinculados as escolas de Relações Humanas, como a Escola de Frankfurt. Quanto aos primeiros, de linha otimista, temos James G. March, Herbert Simon, e talvez como o mais importante, Max Weber.
------- Pioneiro nos estudos sistematizados que procuram abordar todos os aspectos da Burocracia, ainda que acentue sua características cibernéticas, Weber e seus seguidores, destacam alguns pontos como principais características de uma organização burocrática:

- Legitimidade Racional da Organização como domínio administrativo dos Bens, emanando Legalmente como forma impessoal de gerir os poderes de execução.
- Obrigações bem delimitadas por meio de uma divisão de trabalho sistematizado no corpo da administração.
- Autoridade legalmente conferida ao cargo, proporcional as suas funções executivas.
- Hierarquia rígida como forma de garantir a coerência e controle da organização, num modelo de pirâmide.
- Treinamento especializado dos funcionários para trabalharem de acordo com regras e regulamentos específicos e técnicos.
- Desvínculo claramente estabelecido entre a prerrogativa administrativa e a propriedade dos meios de produção e execução, bem como dos bens pertencentes à organização dos bens de seus membros como particulares.
- Formulação e arquivamento de registros escritos para cada uma das atividades administrativas como forma de exercer controle racional sobre a organização.
- Não apropriação do cargo por seu membro, tendo sempre caráter temporário e facilmente revogável e transferível a outro, como forma de evitar a vinculação excessiva entre a pessoa e o cargo, e facilitar a renovação e remanejamento.
- Não recepção de pagamentos dos clientes diretamente pelos funcionários, mas sim em nome da organização, também como reforço ao desvínculo entre o cargo a pessoa.
- A Impessoalidade da Organização, que deve se manifestar sempre em nome do cargo, mais uma vez evitando o vínculo direto com o funcionário, mesmo porque este pode ser mudado, e a Organização deve possuir características próprias independentes das personalidades de seus membros.

------- Não obstante, tanto Weber como qualquer estudioso do assunto sabe que este se trata de uma modelo mais ou menos ideal para a organização, que na realidade está sujeita a uma série de imperfeições, mesmo por vulnerabilidades intrínsecas à estrutura.
------- O advento de uma Burocracia, especialmente segundo Weber, só é viável numa estrutura econômica suficientemente desenvolvida, invariavelmente Capitalista, mesmo porque é importante que os funcionários da administração recebam como pagamento apenas moeda, e pela pressuposição de um estado centralizado. Weber analisou a Burocracia não só como estrutura governamental, mas também como administração de Partidos Políticos, Igrejas e Exércitos, sendo seu ponto de partida na verdade a instituição militar Prussiana.
------- Esse modelo também implica necessariamente num desvínculo com o poder político, mesmo dada a impessoalidade da organização.

------- Já num pólo oposto, as análises de Robert Michels apontam que a Burocracia tende sim a se constituir um estrutura com Poder Político. Como outros autores que seguem uma linhagem mais pessimista, Michels, baseando-se em parte na observância da administração de partidos políticos socialistas, indicou que há uma tensão inegável entre Burocracia e Democracia, uma vez que tende a haver concentração de poder a disposição dos altos funcionários, seguindo uma inclinação que ele denomina como "Lei de Bronze da Oligarquia".
------- Generalizando essa Lei inevitável, Michels propõe que recursos como o acesso a informações confidenciais, o controle aos meios de comunicação e a autoridade legitimada, podem ser usados pelos altos burocratas para consolidarem sua posição de poder e assegurar superioridade excessiva sobre seus subordinados e outros membros da comunidade.
------- Por serem detentores de habilidades políticas raras, esses dirigentes terminam por utilizar o poder em benefício próprio, e por fim fazer a própria máquina burocrática agir em proveito de uma oligarquia, traindo os ideais democráticos, a exemplo de que teria ocorrido na direção de alguns partidos políticos.
------- Estudiosos posteriores identificariam efeitos similares mesmo fora do âmbito público ou político partidário, como na Burocracia de grandes empresas, onde a concentração de poder dos altos funcionários entra em choque com os interesses dos acionistas, clientes e demais funcionários.
------- Dessa forma, nota-se um enfoque de que a Burocracia, por sua própria estrutura de funcionamento, facilite um tráfico de influências a serviço de alguns privilegiados, que abusando do poder que possuem sobre a máquina administrativa, podem consolidar sua posição privilegiada e usá-la para os mais diversos fins, em dissonância dos interesses legítimos e originais da organização.

------- Outras abordagens do tema, que remontam à Adam Smith, preocupam-se meramente com a questão organizacional e formal afim de tornar mais eficiente o sistema burocrático. A Teoria Clássica, ou Teoria da Direção Científica, bem como posterior Teoria das Organizações Formais, visam examinar basicamente os aspectos cibernéticos da burocracia, lembrando que Cibernética está aqui em seu sentido original, de organização e governos de sistemas complexos quer sejam biológicos, sociais ou mecânicos.
------- Nessa linhagem, que recupera o teor otimista, os funcionários são visto como meras peças de uma engrenagem administrativa, ainda que dotados de um poder de escolha de função de acordo com os interesses da instituição, de modo a reforçar a impessoalidade organizacional, ponto de vista que ainda é difundido na atualidade na maioria dos estudos meramente cibernéticos do tema.

------- Portanto, temos que a Burocracia pode ser analisada de modo predominantemente técnico e formal, que em geral ressalta seus aspectos benéficos mesmo como meio mais difundido e eficiente de exercer controle administrativo, em especial sobre o bem público, sem delegar vínculos de propriedade e poder legal. Neste direcionamento, a Burocracia parece ser a melhor se não a única forma de permitir que uma sociedade democrática se gerencie, uma vez que o poder da máquina administrativa estatal não estará diretamente a serviço de classes específicas.
------- Pode se observar nesta linha mais otimista o mais importante elemento da Burocracia como contribuição para a Democracia, que é a desassociação entre o poder administrativo e executivo e o poder de propriedade e uso fruto em benefício próprio, de modo a evitar que se repita o modelo clássico de dominação social ao longo da história, onde as classes dominantes sempre exerceram o poder diretamente.
------- Com o advento de uma burocracia, é possível delegar a execução do poder a indivíduos não pertencentes às classes dominantes, incorrendo numa ruptura gradativa das oligarquias tradicionais, e mesmo pela concessão ainda que temporária e relativa de poder a outros segmentos da sociedade, contribuir para reverter o quadro latente de desigualdade social, inclusive porque os membros da burocracia não estariam diretamente envolvidos com os interesses das classes privilegiadas.

------- Por outro lado, temos que a Burocracia pode ser vista ressaltando mais seu aspecto histórico e social do que seu aspecto técnico, e dessa forma, dando mais ênfase à experiências concretas desenvolvidas, onde abundam exemplos dos vícios que acometem a organização.
------- Nas Escolas de Relações Humanas, talvez dado seu comprometimento mais severo com a crítica e reforma social, teremos a maior parte das vertentes pessimistas dos estudos sobre burocracia. Liderados por Elton Mayo, esses estudos procuraram primeiramente enfocar o comportamento interno dos membros das organizações burocráticas, combatendo a Teoria da Motivação e outras vertentes otimistas.
------- Mas os estudos mais impactantes, e relevantes para os objetivos deste trabalho, são as análises de cientistas sociais que embora desvinculados em origem das Escolas de Relações Humanas, muito em comum tem com estas.
------- Os nomes que mais se destacam são Alvin W. Gouldner, Peter M. Blau, Philip Selzinick e em especial Robert King Merton, e que embora também estejam atentos ao problemas da apropriação do poder político pelos burocratas, enfatizam mais outros fatores, até menos intencionais.
------- Em linhas gerais, o que esses autores colocam é que mesmo existindo inicialmente um sistema burocrático ideal, como o de Weber, com o tempo seu funcionamento, dado principalmente o fator humano, resultaria numa série de distorções que tornariam todo o sistema em si, ineficaz e prejudicial, o que nos leva ao sentido mais difundido e pejorativo de Burocracia.
------- Algumas das características dessas distorções intrínsecas seriam:

- Alta rigidez metódica e rotineira levando a letargia e inadaptabilidade da organização.
- "Incapacidade treinada" dos funcionários, uma vez que são submetidos a rígidos processos de treinamento que tem eficácia muito restrita, inviabilizando seu aproveitamento em outras áreas.
- Dada a impessoalidade e desvinculação, sensação de desprezo e desleixo com os objetos do trato da organização, uma vez que a eficácia ou não da organização pouco afeta a condição da maiorias dos burocratas como indivíduos.
- Distanciamento dos funcionários com relação ao objetivos da organização, implicando num funcionamento meramente mecânico desta.
- Excesso de mecanismos de controle arquivacional, boletins, notas, documentos e papéis em geral, a serem dirigidos para os mais diversos órgãos internos, dificultando o andamento dos processos e resultando em lentidão, extravios e ineficácia. (Esse é o elemento nocivo mais popularizado, e que se atrelou à própria definição de Burocracia.)
- Tendência a apropriação da propriedade pública dado a facilidade de acesso aos seus meios. "Corrupção".
- Sensação de "Destino Comum" e coesão intragrupal entre os membros da organização, dado a baixa ou mesmo nula competitividade interna, que resulta em sentimento de diferenciação com relação aos Não-Burocratas, levando a sentimentos de superioridade ou ao menos de desigualdade.

------- Nesta última item teríamos o aspecto mais problemático em relação ao tema principal deste trabalho, que é o surgimento de um sentimento de classe entre os burocratas. Dada a tendência inata aos grupos humanos de constituírem uma identidade baseada na similaridade intragrupal e diferenciação intergrupal, a dinâmica resultante desta polarização pode conduzir, como historicamente tem conduzido, ao antagonismo de classes.
------- Dessa forma, tem-se o início da consolidação de um segmento social específico, que normalmente pressupões carreira vitalícia e mesmo garantia de continuidade, e que dado a facilidade com que gerencia o poder e à importância de sua função, se torna uma "semi elite" social.
------- Com tudo indica ser inevitável a formação de uma estrutura burocrática para gerenciar qualquer grande contingência em nosso mundo contemporâneo, os problemas que atingem a "classe" burocrática são do tipo com os quais não é possível deixar de se defrontar, gerando distúrbios em qualquer âmbito de seu funcionamento.
------- Especialmente no caso deste trabalho, no âmbito da tentativa de implementação de um Sistema Político Socialista ou Comunista, pois a exemplo do que de fato ocorreu e ocorre nas experiências concretas que foram realizadas na história, houve uma indiscutível consolidação do poder político nas mãos de uma elite burocrática de origem social já privilegiada, normalmente vinculados ao Partido Político Oficial.
------- É inegável que os burocratas do estado possuem um poder pessoal que pode ser usado e abusado, em detrimento dos não-burocratas, que incluem toda a classe proletária em prol da qual a revolução em tese teria sido feita, e por fim, o sistema acaba se tornando impregnado de mais uma estrutura de dominação e antagonismo de classes.
------- Ao passo que numa sociedade capitalista temos vários segmentos sociais distintos, a tendência no socialismo é uma nivelação, mas que termina por ser traída pela permanência de uma classe burocrática no poder, que se configura apenas como mais uma versão de sociedade marcada pela relação dominador e dominado.


BUROCRACIA COMO "CLASSE" SOCIAL

REPLICAÇÃO

------- Sendo fato que ao longo da história sempre tivemos antagonismos de classes, que uma minoria privilegiada sempre esteve no poder, e que as estruturas de dominação precisam se perpetuar, é notório que o modo desta replicação constitui peça chave no processo da continuidade da desigualdade social.
------- Nesta parte deste trabalho, discorrerei sobre como a Burocracia tende a ser alimentada e edificada por uma estrutura de replicação que funciona como se a mesma fosse uma Classe social tal qual as foram todas as anteriores classes privilegiadas históricas. Dediquemos então atenção especial às características de nossa burocracia local, brasileira contemporânea, marcada pela estabilidade vitalícia, e outras vantagens, e pela seleção de pessoal por meio de disputados concursos.
------- O fato da "Classe" Burocrática não ser uma Casta, e dessa forma não se reproduzir diretamente, é sem dúvida o fator de maior importância na prevenção de uma solidificação como segmento social isolado, o que poderia levar a uma separação drástica entre Burocracia e Não-Burocracia. Não fosse isso, a sociedade há muito já teria se dividido nessa polarização, se isso fosse possível.
------- Não obstante a Burocracia possui além de um meio de perpetuação oficial, que teoricamente permite a entrada de qualquer cidadão, mas também um meio secundário infra estrutural herdado de uma longa história de desigualdade.
------- Adentrar a classe burocrática exige um certo nível de instrução, que na maioria dos casos só está amplamente disponível à uma minoria da população, e dessa forma a Burocracia se torna mais uma fonte de captação de segmentos sociais privilegiados. À maioria da classe trabalhadora, proletária e assalariada, a entrada na classe burocrática é extremamente dificultada dado o alto nível exigencial.
------- Fazer parte de um segmento social favorecido é, na quase totalidade dos casos, condição primária para ser um burocrata, que uma vez como tal, e se mantendo esta condição privilegiada, pode se perpetuar na forma de descendentes com condições potenciais para se tornarem futuros burocratas.
------- Mas as condições educacionais, acesso a informação e ociosidade necessária, garantida pelo apoio dos pais, para a preparação para os rigorosos processos de seleção de pessoal exigidos para a atividade burocrática não são as únicas, e talvez nem mesmo as mais importantes peculiaridades que levam a perpetuação da burocracia como um segmento social coeso.
------- Sendo comum que os filhos sigam a profissão dos pais, ou ao menos uma condição profissional semelhante, não raro filhos de burocratas também se tornam burocratas, em parte por se acostumarem às condições de vida comuns a esta classe, em parte pelos laços afetivos que formam com filhos de outros burocratas, em parte pela pressão exercida pelos próprios pais que querem assegurar um futuro estável para seus descendentes.
------- Há inúmeras outras peculiaridades que contribuem para esse processo, como a tenra ambientação com o local de trabalho dos pais, ou o acesso a recursos didáticos comuns, mas há também, em contrapartida, tendências opostas, onde filhos de burocratas, em parte por sentimento de diferenciação, decidam trilhar caminhos diferentes.
------- Neste caso, há dois resultados predominantes. Uma vez que a pretensão de qualquer pessoa é o crescimento econômico e social, muitos irão se aventurar na iniciativa privada, de modo que a Classe Burocrática serve de base, fonte e sustentáculo para ascensão de novos burgueses, reproduzindo então novas diferenças de classes, quando, claro, tal manobra é bem sucedida.
------- Se mal sucedida, tal aventura em geral termina por um retorno ao destino burocrático, em especial nas épocas de crise, onde um emprego estável no funcionalismo público é mais interessante que as arriscadas flutuações comuns na iniciativa privada. Muito raros são os casos onde ocorre a descendência de classe, ou seja, que de uma origem burocrata, desça-se para a classe trabalhadora menos privilegiada.
------- A implicação prática disso, é que uma vez nascido de pais burocratas, ou que ao menos um o seja, os filhos tem largas possibilidades de desfrutarem das condições necessárias para se manter ou subir de classe, e não só os filhos, mas os próprios pais, já burocratas, uma vez que muito possuem condições de, sem perder a condição burocrata, se aventurar paralelamente na iniciativa privada, sem os riscos de um fracasso que resulte num sério dano econômico a ponto de ameaçar sua condição social original.
------- Portanto a Classe Burocrática possui na verdade uma baixa rotatividade, ela é, na maioria dos casos vitalícia, apenas aumentando de volume, fato do qual a decorrência de uma pesada despesa de previdência social é apenas um dos fatores. O inchaço da máquina administrativa, escorado pela estabilidade empregatícia, incorre num pesado ônus, que afeta toda a população por meio dos impostos que o governo precisa gerar para captação de recursos para manutenção da classe, contribuindo para oprimir ainda mais as classes menos favorecidas.
------- Os funcionários públicos, como comumente chamamos, constituem então um segmento social estável, consideravelmente dispendioso, que se mantém coeso como uma classe. Mas não só isso, o mais importante é o meio como essa classe não apenas se mantém, mas também cresce.
------- Uma vez que a demanda por mais funcionários aumenta, com o crescimento do país e consequentemente da máquina administrativa, os novos cargos em geral são preenchido por outros burocratas em potencial, saídos de um segmento social relativamente estável, ou ligeiramente ascendente ou descendente, de modo que associado a tendência de perpetuação dos burocratas, resulta num processo de replicação da classe, pois embora não possa se reproduzir diretamente, os descendentes dos burocratas são as mais cotados para serem novos burocratas, o resultado termina por ser similar ao de uma casta que se replica.

PRODUÇÃO CULTURAL

------- Poderia-se considerar o possível intercâmbio entre a burocracia estatal e a privada, os administradores de empresas, mas acho mais frutífero analisar uma questão que parece passar desapercebida, ou ao menos não chegou ao meu conhecimento estudos sobre o tema.
------- Trata-se do modo como o ideal de uma vida como burocrata, quer seja estatal ou privada, é vendido como sonho de consumo, quer seja para consolidar um mercado consumidor, os próprios burocratas, quer seja para aumentar a coesão de classe, por meio de afirmação cultural por vezes até inconsciente.
------- A produção cultural e artística sempre se voltou predominantemente às castas privilegiadas. Os heróis sempre foram os nobres, semi-deuses, príncipes ou ídolos. No século XX, com a gradativa inclusão de certos segmentos sociais no mercado consumidor, surge uma ampla produção cultural voltada também para classes intermediárias, e além das aventuras de ricos e famosos, há também uma produção em especial para o segmento burocrático.
------- Não só toda uma linha de publicações que visam a um público "vip", os famosos executivos, a elite da burocracia, mas uma vasta produção mercadológica que visa esse público alvo que reúne os requisitos intermediários de número e poder aquisitivo entre as classes ricas e as pobres.
------- A classe burocrática é basicamente parte da classe média, e talvez seu segmento mais expressivo, ou pelos menos o é o segmento populacional empregado pelo estado, que é diretamente controlado pela Burocracia.
------- Como pode-se notar explicitamente numa série interminável de publicações que tratam de sucesso profissional e ideais de vida, vê-se o burocrata como um modelo de sonho vendável. Inspira-se nas classes média e baixa a atividade administrativa como meta a ser atingida. O profissional que trabalha na administração, nos escritórios, muitas vezes estereotipado vestindo ternos e carregando maletas, ou no caso das mulheres, com a tradicional roupa executiva, quase sempre com um par de óculos como ornamento, é um sonho de realização profissional.
------- É evidente a declinação da valorização, como ideal, dos setores de produção, sejam quais forem, para a valorização da atividade de mera administração, que se reveste de ares de chefia. Quer seja na máquina estatal ou privada, não importando qual a função do órgão, os funcionários em geral ao almejar as promoções, sonham chegar nos cargos executivos, burocráticos. Mais interessante que ser operário, policial, professor ou desempenhar qualquer outro trabalho, é ser burocrata, participando do controle da organização que regula os inúmeros setores de produção.
------- Essa associação da idéia de cargo burocrático com posição social privilegiada de chefia, é mais uma forma de reatroalimentar a meta burocrática como ideal a ser atingido.
------- Algumas explicações para essa valorização são óbvias, ser um burocrata evidentemente requer um nível médio de instrução e uma capacidade para dominar conteúdos inacessíveis à maioria da população. Exige algum conhecimento de leis e linguagens técnicas, talvez um dos mais determinantes obstáculos a que uma pessoa de uma classe desprivilegiada tem de enfrentar quando lida diretamente com as estruturas administrativas.
------- Mas isso apenas esconde algo por trás, que é o sonho da ascensão social travestida na autoridade. Apesar da inegável consciência ética e política que cada vez mais se dissemina nas mais variadas camadas da população, o número de pessoas que não tem qualquer consideração com sua própria classe é vasto, e, se pudesse numa manobra brusca ascender socialmente, todos os problemas típicos de sua anterior condição seriam imediatamente esquecidos.
------- O Burocrata muitas vezes canaliza este sonho, é um símbolo de uma possibilidade real de ascensão social, muito menos arriscada do que o comércio, e que se exige um considerável esforço inicial, aparentemente torna-se confortável após vencido o obstáculo primeiro, diferente das atividades burguesas sempre sujeitas à riscos.
------- Voltando a questão da produção mercadológica que visa atender as necessidades da classe burocrática, ela não se restringe apenas a utensílios, ou inutensílios, típicos da classe média ou diretamente vinculados às atividades exercidas nos escritórios, e nem mesmo aos parâmetros de vestimenta e apresentação exigidos aos funcionários públicos.
------- Vai muito mais além, trata-se de um produção de Mentalidade, de sentimento de classe. Filmes, livros e programas de TV que exploram os dramas pessoais dos burocratas, as difíceis relações com a chefia, herança dos sistemas autoritários dos últimos séculos travestidos nas relações entre dirigentes e subalternos. Também o modo como a competitividade capitalista se reflete nas burocracias privadas, e mesmo estatais, que reagem com implementação de programas de Qualidade Total, 5S ou ISO 9000.
------- Significa uma imersão cada vez maior num universo restrito de uma classe, com inúmeras subdivisões, em especial técnicos, auxiliares, atendentes, secretárias, palestrantes, editores de vídeo, e etc, todos a serviço das estruturas de administração.
------- Isso termina por gerar um universo particular, onde uma casta que se encarrega de administrar as máquinas estatais ou privadas se diferencia das classes operárias, camponesas, domésticas e outras, contribuindo para uma identidade social específica.

BUROCRACIA E POLÍTICA

------- Não pode-se deixar de lado o fato importante da vinculação da Burocracia ao Poder Político, que é inegável no que se refere ao esquema piramidal de hierarquia. Basta observar qualquer grande estatal brasileira. A maioria dos funcionários são basicamente burocratas concursados, mas a medida que se sobe na pirâmide, há uma ocorrência proporcional cada vez maior de cargos nomeados por autoridades políticas legítimas, até por fim chegarmos ao presidente da empresa, subordinado em geral apenas ao Ministro de sua área, que por sua vez é nomeado pelo Presidente da República.
------- Portanto, temos não uma simples vinculação, mas uma subordinação da classe burocrática à classe política. A pirâmide é mista, havendo ascensão de carreira somente até um certo ponto, a partir do qual, no cume, não há lugar para os burocratas mais antigos independente de sua experiência e competência, mas sim para os administradores nomeados que podem, e muitas vezes o são, totalmente leigos no campo específico da empresa.
------- Fora isso, há que se considerar a similaridade de alguns cargos políticos com cargos burocráticos. Os gabinetes políticos por exemplo, e muitas das atividades dos políticos eleitos, que quando não estão em processos de votação de leis, desempenham funções basicamente burocráticas.
------- É evidente que a classe política está de certa forma subordinada à Burocracia, pois ao investir-se de seu poder legal, nada mais faz do que desempenhar seu papel nos poderes do estado. No caso o Legislativo, enquanto a Burocracia estaria mais vinculado ao poder Executivo, mesmo assim, deve-se lembrar que todos os poderes estão na verdade subordinados a uma estrutura burocrática, mesmo a justiça se organiza burocraticamente e se comunica com os demais setores administrativos pelos mesmos processos.
------- O que evita maior intersecção entre Política e Burocracia é apenas a força legal dos regulamentos que impedem a interferência política direta dentro das instituições administrativas, mesmo assim, temos casos explícitos desta influência deliberada, a exemplo da contratação de terceirizados, ou da capacidade de remanejamento dos funcionários, que pode servir inclusive como forma de coerção.
------- Dessa forma, o que interessa ressaltar é que dependendo da forma como se dá a relação entre Burocracia e Política, pode-se resultar no uso da máquina administrativa pelo poder político, como uma forma de oligarquia, e bastaria ver que segmentos sociais estão melhor representados na classe política para identificar com mais acuidade quem está, indiretamente, exercendo o controle.

PODER INDIRETO

------- Seguindo-se essa análise, podemos obter uma observação que vai de encontro a desconfiança de que a Burocracia pode ser uma máscara das elites dominantes, uma forma de manifestar poder indireto. Se ela é controlada pela classe política, e em consequência pelas elites dominantes, então não termos Democracia alguma, mas uma Aristocracia velada.
------- Sendo assim, será espontâneo que essa aristocracia, detendo os meios de produção, use seu poder para fortalecer o sentimento de classe da Burocracia, dando-lhe ilusão de poder ao mesmo tempo que realça sua característica como bode expiatório de todos os problemas sociais, em especial desigualdade.
------- É claro que provavelmente nada disso se daria de forma pensada e planejada, mas como quase tudo que ocorreu em termos históricos, de forma quase inconsciente. A Burocracia tende a assumir cada vez mais enfaticamente o papel virtual que representa, e assim funcionar ao mesmo tempo como um braço executor do poder, e como um escudo de ocultamento da real fonte do poder.
------- Já é tradicional as queixas da população se voltarem contra o sistema governamental e sua estrutura burocrática, que leva a culpa por muito do que provavelmente não é responsável. Uma vez que o Governo é nada mais que o supra sumo da hierarquia burocrática, passa-se a ter um representante teórico, uma Burocracia impessoal, para se responsabilizar pelos rumos da nação.
------- Enquanto isso, os verdadeiros detentores do poder continuam aumentando seus ganhos e privilégios, ao mesmo passo que a culpa toda recai para a Burocracia. Nesse sentido, mais uma vez, podemos invocar o apelido "Burrocracia".

PODER FANTASMA

------- Sendo assim, o que mais seria a Burocracia que não uma forma de disfarçar o poder das classes dominantes? A própria impessoalidade seria na verdade a maior arma no sentido de promover tal disfarce. Com ela, não aparecem nomes, não se vê responsáveis, mas apenas uma instituição virtual, pessoa jurídica, fantasma incorpóreo, a se responsabilizar por algo que não tem o menor controle.
------- Nesse sentido, a produção cultural funcionaria como uma forma de corporificar cada vez mais esse fantasma no imaginário, torná-lo mais real. Já estamos acostumados a usar termos impessoais para nos referir a eventos que nos afetam pessoalmente, tais como "A Empresa Considera", "O Tribunal Declara", "A Diretoria Decidiu". Mas quem são a Empresa, o Tribunal ou a Diretoria que não meras máscaras impessoais que escondem pessoas reais e concretas?
------- Teríamos então a mais nova invenção da dominação, o poder indireto. A Classe burocrática não apenas arcaria com as incumbências diretas de gerenciar a sociedade, como assumiria todas as responsabilidades e atrairia todos os ódios para si.
------- Pode ser bastante revelador que a Burocracia sempre leve a culpa pela má operação de qualquer administração, mas jamais receba o mérito. Não se vê ninguém elogiando as estatais, a não ser elas mesmas, a administração pública ou mesmo o governo, ao menos na grande maioria dos casos.
------- Reforçar o sentimento de classe nesse segmento social teria também outras utilidades para as classes dominantes. Além destas serem serviçais que escondem seus mestres, elas também seriam um poderoso mercado consumidor, constituindo um segmento social duplamente vantajoso e útil.
------- Esse segmento, basicamente Classe Média, tem funções mesmo de contenção e dissipação da luta de classes, pois entre o Proletariado e a Burguesia, teríamos a Burocracia recebendo golpes dos dois lados e preservando tais classes do confronto direto.
------- Isso talvez esclareça ainda mais porque, inclusive segundo o próprio Weber, a Burocracia só seja possível num certo estágio econômico invariavelmente Capitalista.

URÓBOROS

------- Abandonando essa análise pessimista, voltemos agora para uma perspectiva oposta, mesmo porque quero evitar ser considerado como um partidário do pessimismo histórico. Justificaria essa análise porque possivelmente a Burocracia passe a, mesmo pressupondo sua fantasmagoria original e intencional, se voltar contra as classes dominantes, sendo a cobra que pica o criador, ou que morde a própria cauda.
------- De um modo ou de outro, a Burocracia não deixa de possuir poder, mesmo que temporário, mesmo que condicional, ainda assim é poder. Da mesma forma como o general delegar a arma a um soldado possibilita a este possuir algum poder sobre o comandante, mesmo o poder fantasma da Burocracia lhe possibilita atingir, de um modo ou de outro, as elites dominantes, que ademais costumam lutar entre si, quer seja submetendo-as à autoridade maior do estado, ou realizando objetivos anteriormente teóricos de sua existência.
------- A simples existência de uma classe Média pressupõe uma divisão mais equilibrada de poder, diferente por exemplo da sociedade européia feudal onde entre a Nobreza/Clero (Rei incluso), e as classes Servis, havia um abismo intransponível.
------- Um espaço muito menor separa a classe trabalhadora da classe burocrática, e se é raro que alguém se eleve de uma classe a outra, ocorre, da mesma forma como ocorre elevações da classe burocrática para as altas burguesias, e portanto, não só existe a remotissíssima possibilidade de um deslocamento da classe mais baixa para mais alta numa mesma geração, mas a apenas remota possibilidade de tal deslocamento ao longo de duas ou três gerações, coisa impensável numa sociedade feudal nem mesmo em dezenas de gerações.
------- O simples fato de haver uma Classe Média com maior poder e acesso implica num aumento gradual da quantidade de pessoas que questionem os pressupostos sistêmicos e detectem possibilidades emancipatórias sociais, e dessa forma promovam organizações no sentido de rever a estrutura social. Da Classe média é onde temos a maior possibilidade de se insurgirem forças racionais capazes de alterar os sistemas, pois que à Classe alta não interessa, e à Baixa não é viável.
------- É trabalhando sobre essa possibilidade, que as classes dominantes não hesitam em tentar massificar a classe burocrática com um autêntico bombardeio de desviadores de atenção, tentando faze-la se entregar ao hedonismo que lhe é possível. Por isso filosofia sempre será algo impopular, pouco incentivado, pois costuma provocar o efeito de ampliar mentes que não hesitam em perceber os pressupostos sistêmicos por trás de tudo.
------- Mesmo assim, o simples avanço tecnológico libera cada vez mais informações e novas formas de produção cultural, que podem agir contrárias ao interesses aparentes da Burocracia, e reais da Burguesia.
------- É nesse sentido que a consolidação de uma Classe Burocrática é afinal uma faca de dois gumes, para quaisquer dos envolvidos. Ela sempre implica num risco para a elite que tenta controlá-la, bem para o estado que pretende gerenciar e as classes que deveria emancipar.
------- O resultado final disto é difícil de prever, mas, ironizando sobre o potencial de uma Burocracia, podemos até considerá-la "burrocracia", mas de qualquer modo ainda assim tem poder, "força bruta" talvez.
------- Afinal "burro" quando empaca...


BUROCRACIA X NÃO-BUROCRACIA

------- Nesta breve fase final deste trabalho, teremos então o tópico mais relevante para uma disciplina de Filosofia Marxista. Que é o modo como a Burocracia, se estruturando nos moldes de uma Classe Social, pode se tornar a etapa final e decisiva, ou um obstáculo intransponível, para a implementação de uma sociedade sem classes.
------- Pois a meta final do Marxismo, com o objetivo de promover uma sociedade mais justa e igualitária pressupõe, ao menos no estágio final de Comunismo Utópico, a ausência de luta de classes. Sendo assim, é possível que o fato aparentemente inegável de que sempre haverá uma grupo a administrar ao menos parte da sociedade não implicará sempre num antagonismo de classe?
------- É evidente que enquanto burocrata, uma pessoa não poderá se encarregar da produção, ou de qualquer outra atividade, de modo que haverá uma diferenciação ao menos entre o segmento social que administra e o que é administrado, ou seja, entre Burocratas e Não-Burocratas.
------- Tomando como exemplo a análise de Robert King Merton, há sempre o risco do segmento social burocrático se consolidar como classe, ou ao menos assumir uma identidade forte, de modo a se diferenciar da demais sociedade. As prerrogativas de autoridade, que mesmo impessoais, sempre podem ser usadas como formas de favorecimento pessoal, costumam resultar em um certo sentimento de superioridade sobre as demais pessoas da sociedade, gerando novas tensões e insatisfações nas classes não burocráticas.
------- Uma forma de evitar isso, parece ser óbvio, seria remover uma característica onipresente na burocracia pública brasileira por exemplo, a característica vitalícia do cargo. Caso o burocrata tivesse um limite de permanência em sua função, isso provocaria a conscientização da temporalidade de seu aparente poder, bem como promoveria a rotatividade, fazendo com que um número significativo de pessoas tivesse a experiência burocrática.
------- Mas essa idéia esbarra em dois problemas básicos, pelo menos. Um deles, que é sempre problemático remover do cargo, por regra, alguém que possa estar desempenhando um excelente papel para substituí-lo por outro que no mínimo, exigirá tempo de adaptação. O outro, similar, é o custo operacional de um constante remanejamento do quadro de pessoal, não só para o segmento burocrático como também para as demais partes da sociedade, que estarão sempre às voltas com uma rotatividade oriunda da saída de seus integrantes para a função burocrática, e da volta destes da mesma.
------- Contra a idéia de que a função burocrática, a exemplo de um senado, poderia ser exercida por pessoas acima de uma certa idade até suas aposentadorias, também enfrenta o problema de acentuar a característica conservadora da instituição, tornando-a ainda mais resistente a mudanças e adaptações, além da possibilidade que essa simples divisão da sociedade em faixas etárias implique num novo antagonismo de setores sociais desta vez não classistas, mas etaristas.
------- Mas de qualquer modo, não havendo algum tipo de limite de permanência no cargo burocrático, é muito provável que se dê a tendência à carreira na maioria dos casos, podendo implicar em vários dos problemas cogitados anteriormente.
------- Porém, e quanto a pressuposição de que uma vez estando num certo estágio de desenvolvimento social, não já estaríamos livres de certos problemas que a burocracia correria o risco de replicar?

O PARADOXO SOCIAL BUROCRÁTICO

------- Deveria ser trivial e facilmente aceitável, a princípio, que o processo de reversão da desigualdade tenha na educação seu foco principal. Com isso, sem dúvida teríamos uma tensão bem menor entre Burocratas e Não-Burocratas, se todos puderem por livre vontade ser um ou outro.
------- Ou seja, se adentrar na classe burocrática for acessível a qualquer segmento social, teríamos então cortado pela raiz o processo de replicação da desigualdade, invalidando as possibilidades da Burocracia legar e reforçar uma tradição classista.
------- Não obstante, há um paradoxo implícito no que se refere a implementação de tal estado de coisas. É que, até prove-se o contrário, erradicar a desigualdade no mundo implicará entre outras coisas em envolver toda uma estrutura reformadora que necessariamente exigirá a participação burocrática nos seus mais diversos níveis. Portanto, o que temos, é que para se iniciar um processo de emancipação social rumo a um mundo onde entre outras coisas todos possam ser burocratas, é necessário que a Burocracia já esteja estabelecida, mas uma vez que ela contribua para a replicação da desigualdade, começa então a minar o processo em suas bases.
------- É absurdo querer implementar um sistema educacional eficiente sem pressupor toda uma estrutura administrativa coesa, portanto, mesmo que todas as classes sociais sejam eliminadas, a Burocracia sempre será mais antiga que a possibilidade de que todas as pessoas lhe tenham acesso. Isso, é claro, tomando como parâmetros os países mais marginalizados do globo, que são evidentemente o maior desafio a um mundo ideal.
------- É a isso que chamo de Paradoxo Social Burocrático, pois para viabilizar a solução, pressupõe-se a perpetuação do problema no próprio processo de solução.
------- Não só quanto a Educação, mas Saúde, Defesa Civil ou qualquer outra área social a ser melhorada, a existência de uma Burocracia coesa e definida será já um ponto de partida. Isso gera um impasse relativo a superação da Burocracia como último baluarte da diferença de classes, mesmo porque a medida que ela fora capaz de solucionar esses problemas, mais crescerá em termos organizacionais e em poder administrativo, aumentando ainda o dano causado por qualquer desvio ilegítimo de suas funções.
------- Uma coisa é um funcionário mal intencionado se aproveitando de um sistema letárgico e pouco eficiente, outro seria tendo um sistema muito mais poderoso e organizado, ainda que esse mesmo sistema pressuponha, talvez, uma maior imunização contra seu mal uso, isso não evita que as vulnerabilidades sempre possam ser exploradas, e quanto maior o potencial da organização, maior o dano causado por uma apropriação de seu poder.
------- Portanto, o que estou suspeitando aqui, e de uma possível relação direta com o nível social e o poder da organização burocrática, que ao aumentar, aumenta o potencial de males que seu mau uso poderia causar. Foi basicamente isso que ocorreu nos países de experiência socialista, onde a estrutura burocrática tinha muito mais poder sobre a população do que jamais tiveram as burocracias dos sistemas capitalistas, mesmo pelo seu nível de invasividade na vida privada do cidadão e sua prerrogativa sobre todos os setores da sociedade.
------- Em resumo, a Burocracia em um sistema comunista tenderia a ser ainda mais poderosa que em qualquer outro sistema, centralizando todos os poderes sociais, e portanto cada vez mais difícil de se dissolver dada a dependência do estado em relação a ela.
------- Quanto mais se avançasse rumo a uma sociedade sem classes, mais teríamos uma Burocracia forte, com ao menos algumas peculiaridades de classe, somando-se isso a todos os riscos intrínsecos à sua atividade, como seria possível superar essa contradição?

RUMO A ANARQUIA?

------- Considerando que uma sociedade perfeita seria anárquica, não precisando de governo, seria esta a única forma de superação de qualquer estrutura de classes, incluindo a Burocracia, ou se houvessem classes, conviveriam em tamanha harmonia que, se é que isso é possível, não haveria antagonismo entre elas. Mas a questão não é como seria um mundo sem classes, e sem Burocracia, mas sim como chegar a tal mundo tendo a Burocracia como obstáculo pelo caminho.
------- Ora, a construção de uma sociedade ideal poderia usar a Burocracia e então prescindir dela? Seria possível que houvesse tamanha independência e consciência de progresso a ponto de haver uma rescisão espontânea da classe burocrática uma vez que o objetivo tivesse sido atingido? Se é que isso é possível.
------- Sinceramente não creio em nenhuma destas possibilidades ao menos num prazo histórico racionalizável. Talvez seja uma mera questão de abdicar, ao menos por um momento, do sonho de uma sociedade sem classes e passar a cultuar o sonho de uma sociedade onde não haja luta de classes, o que pressupõe é claro uma inclusão de todas as classes e uma não desigualdade extrema.
------- Neste caso há lugar para um ideal Comunista ainda que Utópico. Pois uma sociedade onde os meios de produção não estivessem entregues a qualquer poder privado, sendo então administrados pela classe burocrática, não só é possível como já foi parcialmente realizada, infelizmente, longe da forma como qualquer marxista sensato esperaria.
------- Curiosamente foram exatamente nestes exemplos que tivemos a ocorrência clara da degeneração da Classe Burocrática, deixando de servir a uma elite em especial e tomando para si o poder, e se tornando então a elite.
------- Não vejo relevância aqui em remontar os motivos que levaram ao colapsos destas experiências socialistas e provavelmente levarão ao colapso das restantes, a não ser lembrar sempre que Marx insistia em que a revolução deveria ser global, e as condições para tal simplesmente ainda não se deram.
------- O que me parece ser mais importante é colocar de modo explícito que a existência de uma Burocracia de Estado não é um problema qualquer, um simples obstáculo a ser resolvido, mas talvez seja o maior dos problemas a partir do momento em que se tenha promovido uma revolução bem sucedida.
------- Compartilho de boa parte do otimismo dos estudiosos sobre o tema, mesmo porque parece ser inevitável nos rendermos ao fato de que não há como organizar um sistema social complexo sem uma estrutura burocrática.
------- Estaremos sempre sujeitos aos riscos oriundos da má administração, ou pior, da administração mal intencionada, mas isso não seria diferente e nem mesmo mais grave do que todas as vicissitudes que nos acometeram ao longo da história.
------- Pode não ser a melhor solução, mas precisamos dela.
------- Os "burros" podem não ser as mais inteligentes das criaturas, mas simbolicamente, ainda não temos como abrir mão deles.

Marcus Valerio XR


BIBLIOGRAFIA

DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
------------ Fundação Getúlio Vargas. Fundação de Assistência ao Estudante /MEC

ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL
------------ ENCYCLOPAEDIA BRITTANICA DO BRASIL

HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos.
------------ EDITORA MARTINS FONTES


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