EDUCAÇÃO RELIGIOSA

Quer se assuma uma postura de determinismo cultural ou biológico, ou mais equilibradamente um consenso entre os dois, é fato que até agora não há nenhum meio seguro de se prever de que forma se dará o complexo desenvolvimento mental de um ser humano. Por mais que tentemos controlar todas as variáveis que cercam o universo de nossas crianças, não podemos ter qualquer garantia de que terão tal ou qual tendência comportamental.

Uma pessoa sempre parece trazer algo do meio em que foi criada, levando em conta todos os seus fatores físicos, ambientais e culturais, assim como algo de seu ancestrais, no material genético, que parece fornecer uma base fisiológica para algum tipo de comportamento. Mas quem será capaz de confiar numa previsão precisa sobre o futuro universo psíquico deste indivíduo?

É por isso que não acredito que assumir tal ou qual atitude produzirá necessariamente qualquer tipo de resultado desejado, no que se refere a educação das crianças. Um dos aspectos que talvez mais fortemente demonstre isso seja de fato o comportamento associado a religião.

Tal como eu, há inúmeros casos de pessoas que estudaram toda a vida em instituições religiosas, alguns chegaram a ser seminaristas, e no entanto se tornaram descrentes, agnósticos ou céticos, quando não inimigos declarados das crenças que antes professaram, ou pareciam professar.

O inverso também é notável, há um considerável número de proselitos, recém adeptos de uma religião, que a conheceram pouco antes de sua conversão e que não raro jamais haviam tido contato com qualquer tipo de formação religiosa.

Embora eu não possa garantir pela falta de dados estatísticos específicos, creio porém que a maioria de nós será também capaz de apontar inúmeros outros exemplos de pessoas que foram moldadas dentro de seus padrões religiosos, permanecendo fiéis a eles durante toda a vida. São aqueles que mais apropriadamente chamaríamos de produtos de seu meio, o que uma análise superficial parece revelar dotados de menos liberdade de decisão pois seriam muito provavelmente budistas se tivessem nascido no Tibet, muçulmanos se tivessem nascido na Arábia ou Hindus se na Índia, e no nosso caso voltado ao Brasil, cristãos, protestantes ou católicos dependendo da família.

É com base nesse parcos dados de experiências triviais e cotidianas, nesse contexto de senso-comum, que convido o leitor a fazer uma breve reflexão a respeito da postura de se aplicar aos educandos um ensino religioso, em especial no caso dos pais não serem religiosos convictos, situação na qual tal educação doutrinária não seria a princípio questionada.

CULTURA CRISTÃ

O receio que mais parece relevante, creio eu, seja o de que uma educação desprovida de conteúdos cristãos possa acaretar em algum tipo de defasagem cultural em relação a maioria esmagadora da população de nosso país, que recebeu os conteúdos básicos da doutrina. Quer acreditemos nele ou não, o Cristianismo é peça fundamental de nossa sociedade, influindo profundamente em todos os setores. A Bíblia, por mais que nela não se deposite confiança, sempre será uma referência numa sociedade de herança cristã, herança esta de mais de mil anos.

Vemos constantemente analogias, paródias e anedotas que só podem ser compreendidas no contexto de uma cultura cristã, e muitas das vezes tais surgem em contextos totalmente díspares da religião em si. Frequentemente usamos citações da Bíblia como jargões de sabedoria popular, muitas vezes sem sequer saber de onde vieram, as palavras "Deus", "Jesus Cristo" ou "Santa Maria" estão tão impregnadas em nossa linguagem, que a utilizamos como interjeições, de modo que é difícil distinguir quando uma pessoa as utiliza como uma evocação de fé, ou apenas uma expressão tão desprovida de sentido quanto o tradicional "filho da p...". Duvido que haja algum ateu convicto que ocasionalmente não tenha deixado escapar um "ai mei deus" ou "minha nossa...".

Nossa própria Constituição ainda possui elementos da religião cristã, a Monogamia por exemplo. A separação entre Igreja e Estado na Proclamação da República só agora talvez, esteja começando a ser completa, uma vez que descriminalizamos a prostituição e deixamos de considerar o adultério como crime civil. Ainda hoje nos tribunais é obrigatória a presença de uma Bíblia, para o caso de alguém querer prestar juramento ao livro sagrado do Cristianismo além de à própria Constituição.

É óbvio que um estrangeiro recém chegado ao Brasil, que venha de uma cultura religiosa totalmente adversa, terá não somente dificuldades linguísticas mas também culturais, e seu desconhecimento sobre o cristianismo lhe acarretará obstáculos para entender nosso comportamento, nossos rituais e nossas piadas.

Posto isso, a grande pergunta é: A ausência de uma formação religiosa, por mínima que seja, para um idivíduo que vive numa sociedade religiosa, resultará necessariamente em desvantagens pessoais significativas?

Em minha opinião: Não! Nada garante que o desconhecimento sobre quem foi ou deixou de ser Eva, Moisés ou Jesus, no nosso âmbito cristão, resultará num prejuízo concreto. Alias, pode ocorrer o exato oposto.

Outro ponto a se colocar é o imprevisível resultado que uma educação religiosa pode ter no que se refere a visão pessoal dessa pessoa sobre a religião. Muitas pessoas podem ser seguidoras de tal religião por terem recebido seus valores durante a infância, outros podem se revoltar contra ela exatamente por isso. Pessoalmente duvido que o famoso filósofo alemão Nietzche, auto declarado "Anti-Cristo", seria um crítico tão ferrenho do cristianismo se não tivesse sido submetido a uma tentativa de formação cristã. Ou seja, muitas pessoas que sentem aversão a uma determinada religião, o fazem exatamente por terem tido uma experiência pessoal profunda.

Da mesma forma nada garante que alguém educado dentro de um padrão religioso seja mais suscetível a ele. Muitos dos convertidos evangélicos jamais haviam tomado um contato mais do que superficial com o cristianismo, o que poderia deixá-los até mesmo mais vulneráveis do que aqueles que já conhecessem de antemão algum conteúdo doutrinário.

Numa sociedade desvinculada de religião oficial, onde a liberdade de crença á garantida por lei, podemos dar ou não a formação religiosa que quisermos aos nossos filhos. Nesse ponto inclusive somos privilegiados, o Brasil está entre os países do mundo com menores índices de repressão religiosa significativa.

Quando pais agnósticos levantarem essa questão, podem se indagar então qual seria o melhor caminho. Em nosso país o sistema educacional oferece diversas possibilidades dentre as quais a mais difundida é a das instituições de ensino católicas, além de outras religiões específicas ou instituições totalmente laicas. A maioria dos estudantes atuais estuda em escolas seculares ou católicas, que não costumam ter uma doutrinação muito intensa.

ESTUDO DAS RELIGIÕES

Muitas pessoas inclusive eu, concordam que a Religião/Mística é um dos 4 pilares da cultura humana, sendo os outros 3 a Arte, a Ciência e a Filosofia. Como instituições de ensino são antes de tudo reprodutores culturais, é natural que transmitam conteúdos dessas 4 grandes "áreas".

A Ciência é evidentemente ensinada em suas diversas especialidades, assim como Filosofia, e possuímos também Educação Artística. Em todos esses casos ocorre um ensinamento razoavelmente imparcial. Em geral não são apresentadas apenas correntes científicas específicas, nem se ensina apenas Platão ou Aristóteles, do mesmo modo que em Arte também não ocorre de se apresentar apenas conteúdos de um movimento específico.

Vale lembrar que Arte e Filosofia não estão presentes apenas nas matérias de Educação Artística e Filosofia, mas podem ser encontradas em diversas outras, como Literatura, História, Comunicação, E.M.C., O.S.P.B e etc.

Mas e no caso da Religião? Embora seja impossível não abordar o fenômeno religioso principalmente em História e Geografia, o que acontece é que praticamente TODAS as instituições de ensino brasileiras ou não abordam diretamente a questão, ou ensinam apenas uma religião em particular, ou seja, doutrinação.

Um dos 4 pilares da cultura humana, extremamente influente, deflagrador da maioria dos processos sócio culturais da história, tem sido simplesmente relegado ao esquecimento. Enquanto a Ciência vem sendo extensivamente ensinada nas escolas, e Filosofia e a Arte em grau menor, a Religião tem sido simplesmente ignorada, ou utilizada como forma de doutrinação específica.

Já tem havido há algum tempo nos meios acadêmicos, discussões sobre se desenvolver uma matéria didática de estudo das Religiões, essa matéria seria colocado no currículo escolar normal, e poderia mesmo substituir obrigatoriamente as matérias confessionais.

Hoje em dia no Brasil, os únicos pedagogos oficialmente habilitados para lecionar religião devem possuir diplomas de Teologia Católica ou Protestante. Como vemos a cultura cristã ainda penetra de forma oficial em vários setores da sociedade, inclusive educação. Há grupos tentando mudar isso, e eu pessoalmente sou favorável a que a doutrinação religiosa específica em escolas deveria ser simplesmente proibida. Cada instituição religiosa que fizesse um curso separado de catequese ou similares.

A idéia seria então promover uma matéria que oferecesse ao aluno uma visão geral e ampla de todo o fenômeno religioso humano. Estudariam-se as grandes e pequenas religiões, onde ocorreram, como começaram, de que forma afetam o mundo.

Esse estudo deveria ser completamente desprovido da intenção de se menosprezar as religiões como meras tolices ou superstições, assim como da postura comum de utilizar tal estudo sob o ponto de vista de uma das religiões tentando provar-lhe a superioridade, como por exemplo a Teologia Cristã que estuda as demais religiões no tópico de Heresiologia, e falsas crenças e doutrinas. Assim como não poderia ser usado como forma de atacar uma ou outra religião específica.

É evidente que diversos setores da sociedade não irão gostar, principalmente os religiosos, mas como podemos promover uma sociedade de livre escolha de crença se milhões de pessoas jamais tiveram escolha alguma na fase de sua formação?

Esse seria a meu ver, um dos requisitos finais para a total separação entre Igreja e Estado. No Brasil possuímos uma maioria cristã, e a despeito de não possuirmos religião oficial e garantirmos liberdade de culto, continuamos reproduzindo um modelo cristão como se fosse oficial, e não garantimos liberdade alguma a milhões de jovens que poderiam se interessar por outras religiões que não a de seus pais.

Não falo de uma intervenção do estado com relação a escolha paterna de trasmissão de valores religiosos. Essa é uma questão extremamente delicada. Até que ponto o estado pode garantir a liberdade de escolha religiosa para seus cidadãos se justo na fase de sua formação eles não recebem tal liberdade de seus responsáveis? Poderia o estado intervir perante esses responsáveis? E a liberdade destes de oferecer a religião que acharem melhor a seus filhos?

Creio que instituir uma matéria de estudo das religiões nas escolas seria um meio de facilitar esse escolha livre, pois mesmo que o estudante não possua sua liberdade de escolha devido a pressão familiar, ele teria pelo menos algum contato com as outras religiões.

Quaisquer tentativas de religiosos de intervir nessa matéria poderia ser rechaçada com o simples argumento de que é IMPOSSÍVEL compreender os processos históricos, geográficos, culturais e etc, sem algum conhecimento sobre religiões. Tal matéria poderia também não necessariamente substituir o "Ensino Religioso" que é normalmente aplicado nas instituições de ensino católicas e protestantes.

AOS ANTI-RELIGIÃO

Um colocação comum sobre idéias como essa é a de que ela seria um meio extremamente eficiente de promover o Ateísmo, uma vez que acabaria por evidenciar a futilidade ou nocibilidade das religiões. Discordo totalmente.

De fato pode ser essa a conclusão do estudante, assim como este pode também concluir através de um estudo comparado que exista de fato algo de concreto por trás de tão abrangente fenômeno, ou poderia simplesmente simpatizar com uma das religiões e até optar por professar-lhe a crença.

Minha única certeza é de que isso contribuiria para a redução do fundamentalismo, cuja base é basicamente, ou fundamentalmente, a Ignorância.

O Fundamentalismo religioso é extremamente nocivo para a sociedade, ele promove a intolerância, a dificuldade de relações entre grupos, tenta destruir a integração e o ecumenismo, não admite opiniões diferentes e se considera isento de erros.

Não se pode repreender qualquer pessoa ou grupo por professar uma crença específica ou mesmo de achar ser a detentora da única verdade, mas não se pode permitir que tais grupos ou pessoas tomem atitudes no sentido de ofender a liberdade de culto de outrem.

Também reconheço o risco de que, devido a baixa disponibilidade de pedagogos qualificados em outras religiões, essa matéria de Ensino de Religiões poderia se tornar mais um foco de disseminação das religiões dominantes dada a ênfase que elas poderiam receber.

Mas creio que é um risco não muito significativo, e que vale a pena correr. Não significativo porque o currículo poderia ser adequado de tal forma a tornar inevitável a abordagem generalizada, assim como o material didático, e além disso a discilplina poderia estar vinculada à História, Geografia ou aos subprodutos da Filosofia.

De qualquer modo, apesar de todas as dúvidas, riscos e desenvolvimentos que ainda devem ser analisados, creio que a proposta de se implementar uma disciplina como essas é muito válida. Ela poderia ser um caminho de entrada para uma dimensão da cultura humana que não vem sendo devidamente abordada, poderia ser um via da saída para crianças submetidas a rígidos padrões religiosos familiares, de modo a possibilitar-lhe o contato com outras formas de crença, assim como seria uma fonte geral para estudos nos mais variados aspectos da cultura humana, servindo a qualquer ponto de vista, quer seja agnóstico ou religioso.

Marcus Valerio XR
Janeiro de 2001

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