VOTO CERTO - TIRO E QUEDA?
1 - NÃO
2 - SIM

Se os grupos pró e contra a proibição do comércio legal de armas decidissem resolver suas diferenças à bala, com o perdão da ironia, não haveria muito menos produtividade em termos de diálogo. É muito impressionante que um assunto tão sério e que envolve tantas questões importantes, tenha sido vergonhosamente negligenciado no que se refere a qualquer tentativa de uma discussão responsável.

Pessoalmente votarei pelo NÃO. Sou contra a proibição do comércio de armas apesar de apoiar a quase totalidade dos demais itens do Estatuto do Desarmamento. Mas é por pouco. Fico no limiar da indecisão, principalmente porque temo que a derrota da proibição implique num enfraquecimento da disposição de se executar iniciativas futuras, como a numeração e registro de munições.

Mas o problema é bastante delicado, e as frentes do SIM e NÃO não o têm tratado com o devido respeito, e pior, apesar de possuírem muito bons argumentos, ambos os lados, também fazem largo uso de falácias, e se recusam sistematicamente a discutir os argumentos mais fortes do adversário, se limitando a atacar os pontos mais fracos e distorcer os medianos.

E de fato há pontos fortes de ambos do lados, por isso a primeira coisa que farei neste texto é um breve levantamento de alguns dos piores argumentos de cada frente e dispensá-los, e depois enfocar os melhores e fazer a inédita tarefa de confrontá-los.

Antes de tudo quero antecipar logo aquilo que considero como o mais sinistro lugar comum que ambos os lados tem utilizado. Trata-se de um estranho maniqueísmo ao se dividir a sociedade em "Cidadãos de Bem" e "Bandidos", e sinto um arrepio só de pensar que a qualquer momento alguém poderá começar a usar a expressão "Cidadãos do Mal"!

Ambas as frentes costumam entender, a nível de discurso, que não há uma linha divisória rígida entre essas duas "classes" de pessoas. No entanto ambos também usam largamente esta terminologia de um modo no mínimo bizarro, em geral confundindo a idéia de "Cidadão de Bem" com quem não possua antecedentes criminais, e em diversas ocasiões parecem sugerir que algumas pessoas já nascem com ficha criminal.

Antes de prosseguir, também quero explicar porque estarei desconsiderando as estatísticas usadas por ambos os lados. É que nenhum de nós tem um meio hábil de checar estes dados, todos dependem de interpretação, e todas essas estatísticas me parecem suspeitas, embora as do grupo do SIM pareçam mais consistentes. O grupo do NÃO tem apelado constantemente para dados do norte-americano National Rifle Association, suspeitíssimos, e para a obra de John Lott, considerada fraudulenta no meio acadêmico, apesar de ter ao menos um argumento forte. Por outro lado o pessoal do SIM sem dúvida tem feito uma péssima interpretação dos próprios dados, alguns exemplos espero dar adiante.

Dito isto, passemos a algumas falácias de ambos os lados.

Sobre a Acusação da
MÁ INTENÇÃO

Sinceramente, pode e deve haver algumas intenções escusas nas propostas de proibição, mas em essência não acredito que elas sejam de fato mal intencionadas. Como sempre, vejo que os problemas decorrem muito mais da ignorância do que da perversão. E com isso considero sofríveis as alegações de que as iniciativas da proibição do comércio de armas e do Estatuto do Desarmamento sejam de natureza fascista, com intenções totalitárias ou preparem terreno para algum tipo de subjugamento da população.

Em primeiro lugar, uma população estar com armamento civil ou não é completamente irrelevante para qualquer iniciativa externa de invasão. Os E.U.A por exemplo, antes de invadir o Iraque ( que foi um grande comprador de armas do Brasil ), se preocuparam em despojar o país de suas possíveis armas químicas, biológicas ou nucleares, e não deram a mínima para o armamento manual, que é abundante no país. População alguma estaria apta a oferecer qualquer resistência considerável a um exército invasor portando meros revólveres calibres 38 ou espingardas de caça. Mesmo que recebesse armamento militar, a falta de um treinamento adequado inviabilizaria uma reação civil eficiente ante qualquer ofensiva organizada. O mesmo pode ser dito de uma iniciativa interna de implementar algum estado de sítio ou ditadura armada. Jamais foram permitidas à população civil no Brasil armas que pudessem conter uma ocorrência deste tipo.

Nesse sentido, uma população desarmada tem até menos chances de ser violentamente vitimada, pois um exército invasor, ou repressor, não hesita em abrir fogo com fuzis militares contra qualquer sinal de arma de fogo, mesmo um reles calibre 22. E por outro lado, no caso de se querer organizar uma resistência civil eficiente, seria inevitável recorrer à armas mais pesadas, que já são proibidas, o que só poderia ser feito por vias ilegais.

Muitos partidários do NÃO levantam alguns dados históricos onde o desarmamento da população precedeu Golpes de Estado ou genocídios generalizados, mas curiosamente não se preocupa em examinar casos onde as duas coisas não estão associadas, como nada mais nada menos que as ditaduras anteriores ocorridas aqui no Brasil, que é onde mais nos interessa, e que não foram precedidas de qualquer restrição ao armamento civil. Além disso, tem havido uma total desconsideração do fator tecnológico envolvido. Atualmente armas de fogo manuais são cada vez menos decisivas em qualquer situação de guerra ou revolução. Talvez na Revolução Bolchevique algumas armas civis a mais na mãos da população tivessem resultado numa resistência mais longa e mais sangrenta. Hoje em dia, seria irrelevante diante do poder militar aéreo.

A questão tecnológica, surpreendentemente ignorada em toda essa discussão, voltará ao tema posteriormente.

Em alguns casos, tem sido usada a frase de Benjamin Franklin "Quando todas as armas forem propriedade do governo, este decidirá de quem serão as outras propriedades." porém esta idéia é no mínimo obsoleta. Não estamos no século XVIII onde tudo o que um governo tirano precisa para controlar uma população é subtrair suas armas e empurrar sua infantaria. Hoje em dia as forças mercadológicas, tecnológicas e econômicas são muito mais decisivas. O Japão por exemplo, onde armas de fogo são totalmente proibidas a civis, não possui exército desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e ainda assim é um membro do G7.

Uma outra acusação é a de que tal proibição serviria aos interesses econômicos externos, em especial Norte-Americanos. É uma afirmação estranha considerando que o governo atual dos E.U.A é entusiasta do Lobby das armas, estando muito bem relacionado com o NRA, que é de onde o grupo do NÃO tira boa parte de seus argumentos. Mas ainda assim... Talvez. Porém a exportação de armas brasileiras para o exterior seria afetada no máximo o mesmo tanto que seria afetada aqui, menos de 30%, visto que a maior parte do mercado é militar, policial e similares. Sem dúvida que seria um problema, mas para quem acredita que essa proibição seria benéfica em termos de violência urbana, me parece um preço pequeno a pagar.

Já uma afirmação bem fundamentada é que o mercado legal de armas, em especial as lojas particulares, seria duramente afetado. É difícil negar essa afirmação, mas é possível que os comerciantes consigam se adaptar enfatizando uma outra linha de produtos, mesmo porque em geral tais lojas estão relacionadas também à caça, que será pouco afetada pela proibição, ao tiro esportivo, que não será afetado e à pesca e similares.

Sem dúvida haverá um choque no comércio, é exatamente essa a idéia! Haverá algum efeito sobre a economia. Mas não há medida social significativa alguma que não o tenha. Certamente alguém sairá perdendo e alguém ganhando não importa qual seja o resultado. Isso não é um bom parâmetro para se julgar a questão, e que nos leva ao outro lado.

Os Pró-Legítima Defesa não são os únicos a acusar seus adversários de mau intencionados, pois também sofrem a pecha de Lobby do Comércio de Armas, que segundo o grupo do SIM, não se importa com nada mais do que lucrar.

Não é um argumento melhor. Sem dúvida que há interesses por parte da indústria de armas em jogo, no entanto eles serão os menos prejudicados, uma vez que podem muito bem se adaptar a novas configurações de demanda. É bem provável por exemplo que a proibição implique numa maior procura por empresas de segurança, o que implicará em mais material para as mesmas, incluindo mais armas, compensando a perda do mercado direto para os civis.

Os verdadeiros irremediavelmente afetados, que não terão nenhum meio legal de contornar a situação, serão os particulares que querem manter uma arma de fogo em casa. Se isso será bom ou ruim é uma outra história.

Sobre a Afirmação
ARMA ATRÁI O CRIMINOSO

Praticamente o único motivo aceitável para um civil não praticante de tiro adquirir uma Arma de Fogo é a auto defesa, e os defensores do SIM sabem muito bem que esvaziar este argumento é completamente vital para a eficiência de sua campanha. Realmente eles levantaram pontos muito interessantes.

Como instrumentos de legítima defesa, as armas de fogo são menos eficientes do que a maioria das pessoas costuma pensar. Um argumento bom em favor de tal afirmação é que se um perito em artes marciais sempre leva vantagem numa luta contra um não perito mesmo quando atacado de surpresa, por outro lado, um exímio atirador não terá vantagem alguma se for pego de surpresa sem a sua arma, e as vezes mesmo com ela, não tendo tempo de sacá-la, carregá-la ou engatilhá-la.

Não se pode negar que o fator surpresa é fundamental, e de pouco adianta ter uma arma em casa se você não for capaz de perceber um assalto eminente. No entanto, os defensores do NÃO também foram felizes em lembrar que o elemento surpresa não é privilégio do agressor, às vezes a reação da vítima também surpreende o criminoso, e considerando que a maioria das casas não possui arma de fogo, uma reação em tempo também pode impedir o assalto.

Contra essa noção simples tem-se levantado argumentos simples apoiados em estatísticas complexas, como a que afirma que a chance de morrer numa assalto é 180 vezes maior no caso de haver reação, e mesmo que esse número não esteja correto, não parece difícil aceitar que reagir a um mero assalto em geral não é uma boa idéia, mesmo munido de uma arma de fogo. O problema é que os argumentistas do SIM costumam misturar situações distintas numa única estatística, pois incluíram aí os policiais e seguranças que reagiram à investida de criminosos, o que claramente é um caso diferente de reação de um cidadão comum, do qual não se espera que esteja armado. O criminoso que ataca policiais e seguranças com certeza o faz com um preparo diferente do que ataca um cidadão comum. Ele sabe que sua vítima está armada, sendo assim, como poderia ser surpreendido pela arma? Podemos ver que há ao menos dois tipos de surpresa envolvidos, um que é a reação surpreendente de um homem armado, do qual se esperava que se rendesse e entregasse sua arma, outra totalmente diferente é a reação armada de alguém que não se espera que estivesse armado.

Mas o ponto mais curioso é exatamente com relação à essa última surpresa. A turma do SIM afirma que a Surpresa sempre é do agressor, e se ele não é surpreendido por uma arma, então é porque já esperava o uso da mesma, e é exatamente isso que implica na afirmação de que Armas de Fogo em casa mais atraem do que repelem criminosos. Chegam a ser citados casos onde a arma de fogo foi o único item roubado numa casa!

Esse é um exemplo interessantíssimo de como alguns dados possivelmente reais podem ser usados em um sofisma sofisticado e extremamente ardiloso. Ora, se é evidente que a maioria das casas não possui armas de fogo, não faria o menor sentido um ladrão entrar em uma casa qualquer à procura de uma, se ele o fez é porque já sabia que havia uma arma lá. Pior! A não ser em casas muito pequenas, ele teria que saber ONDE a arma estava, ou correria o risco passar o dia inteiro procurando!

A consequência não poderia ser mais óbvia, apesar de curiosamente omitida nesse tipo de crítica. Tal roubo só foi possível porque o ladrão tinha uma INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA sobre a residência. Informação que poderia ser usada para roubar tanto uma arma quanto uma jóia cara que estivesse escondida numa gaveta específica.

Se é assim, então o que deveria estar em questão não é o fato de haver ou não uma arma em casa, mas sim o fato de que o ladrão adquiriu informações sobre a residência, como aliás é extremamente comum, pois é sabido que ocorrem sondagens a respeito de uma residência antes de uma investida criminosa. É também um fato conhecido e claramente intuitivo que um criminoso prefere assaltar uma residência que sabe que não haverá possibilidade de reação armada, do que assaltar uma onde o risco de tal reação é grande. É simplesmente bizarro pensar o contrário, a não ser no caso de psicopatas que não visem meramente o produto material da pilhagem.

Agora, para refletir um pouco sobre a confusão comum na discussão sobre as armas, faz-se necessário diferenciar um Roubo, onde se invade uma residência desabitada, de um Assalto, onde é preciso abordar os moradores e dominá-los. Ainda que não corresponda à terminologia jurídica, me parece a distinção mais sensata. Curiosamente tal distinção não raro é completamente ausente na discussão, e o pessoal do NÃO invariavelmente está sempre se referindo ao caso dos Assaltos, enquanto os demais misturam as duas coisas. Chamemos também os praticantes de roubos de "Ladrões", e os demais de "Assaltantes".

É mais que evidente que numa casa desabitada, saber que haja uma arma de fogo será um motivo a mais para um Ladrão, ou mesmo numa casa onde embora haja pessoas, elas não estejam em condições de reagir, como por exemplo quando o dono da arma está ausente, ficando apenas a doméstica e as crianças. Por outro lado, assaltar uma residência onde sabe-se que há armas e que os donos tenham condições de usá-la não faz o menor sentido! Somente quadrilhas muito bem organizadas e especializadas fazem isso, em residências que sabem que haverá grandes valores.

Assim, a questão da arma atrair ou não criminosos está muito mais relacionada à frequência com que a casa fica sozinha e a possibilidade de criminosos obterem informações sobre a mesma, do que o fato simplista de haver ou não uma arma em casa, que é o que os adeptos da proibição costumeiramente alegam sabe-se lá com que tipo de martelamento mental. Por outro lado, a presença de uma arma de fogo em casa só pode influenciar beneficamente na segurança da mesma caso ocorra da casa nunca ficar sozinha, tendo sempre alguém atento e capaz de agir no caso de uma invasão. Como se vê, há uma total distorção da questão, resultando numa péssima linha de raciocínio.

A eficiência de uma possível reação defensiva pode ser discutível, mas é notável a tentativa que os defensores do SIM fazem para ridicularizá-la. Chegaram ao ponto de desafiar os partidários da legítima defesa a colocar um cartaz em frente à residência anunciando "NESTA CASA TEMOS ARMAS DE FOGO", para verificar se as mesmas sofreriam mais tentativas de invasão.

Por outro lado integrantes do NÃO fizeram o desafio oposto, propondo os adversários a pregar um cartaz "NESTA CASA NÃO TEMOS ARMAS DE FOGO". Ao que parece nenhum dos lados aceitou o desafio, o que demonstra a falta de seriedade desta discussão, no entanto é evidente que caso ocorra de a casa ficar sozinha, com um cartaz destes, a existência de uma arma só poderia incentivar ao roubo, quando dificilmente incentivaria um assalto. Por outro lado, o aviso contrário, de que não há armas, teria o mesmo efeito tanto para roubos quanto para assaltos.

Se é assim, então o pessoal do NÃO está com toda a razão. O grupo do SIM é que deveria colocar o cartaz, pois atingiria seu pretenso objetivo em qualquer caso incondicionalmente. Já o cartaz contrário só alcançaria o seu de acordo com certas condições. Neste caso, o Ônus da prova recai para o SIM. São eles que afirmaram que armas atraem criminosos, o que é óbvio no caso de roubos, pois uma arma sozinha é inofensiva, mas extremamente anti-intuitivo no caso de assaltos.

Retornando à reação contra assaltos, que de modo algum eu estou recomendando, e que eu jamais faria a não ser que pressentisse uma intenção pior do agressor, bem, voltando aos assaltos, é preciso diferenciar o criminoso que aborda homens claramente armados de um que aborda uma pessoa aparentemente não armada. Em geral no primeiro caso espera-se obter quantias significativas de riqueza, como em carros-forte, bancos ou joalherias, portanto os assaltantes nesse caso são muito melhor preparados.

No segundo caso é onde a maior vítima é o cidadão comum, que por sinal, independente do resultado do referendo, já está legalmente proibido de andar armado, situação à qual também me posiciono com neutralidade. Meu objetivo aqui não é nem tanto advogar a favor de um lado ou outro, quero apenas criticar o modo como certas argumentações tem sido feitas, em geral acidentadas quando não totalmente sofismáticas.

Um cidadão comum não irá atrair um ladrão comum por estar com uma arma. Isso não faz o menor sentido! Se nos despirmos da sinistra divisão maniqueísta entre "Cidadãos de Bem" e "Bandidos", veremos que este bandido comum não é tão difícil de compreender. Ele procura obter um ganho com seu assalto, e de preferência com o mínimo de risco possível, não faz o menor sentido atacar alguém armado quando pode atacar alguém desarmado. Para que ele não pudesse ser surpreendido numa reação defensiva, teria que saber antecipadamente que alguém está armado, o que sem dúvida inibiria sua ação na maioria esmagadora dos casos.

A questão da arma ser um atrativo ou não, e a questão da surpresa estão claramente ligadas. Armas sozinhas são um bem valioso e atrativo como outro qualquer, mas em poder de pessoas não podem ser nunca um incentivo à ação, mesmo quadrilhas muito bem preparadas jamais se mobilizariam para roubar um revólver comum. Para alguém invadir uma residência onde sabe que poderá haver resistência armada, tem que estar muito bem disposto e informado da existência de bens muito valiosos, mesmo motivo que leva assaltantes audazes a assaltarem locais de grandes valores invariavelmente protegidos por sentinelas armados.

Sobre a Estranhíssima Idéia de que
A MAIORIA DOS HOMICÍDIOS NÃO SÃO PRATICADOS POR CRIMINOSOS

O senso-comum nos diz que quem comete crimes são criminosos, isso é evidente, até a definição de crime ou de criminosos nos levaria a essa obviedade. No entanto popularizou-se entre o defensores do SIM a afirmação "Ao contrário do que muitos pensam, a maioria dos assassinatos não são cometidos por criminosos, mas por pessoas comuns, cidadãos de bem, sem antecedentes criminais etc.", ou alguma formulação essencialmente equivalente.

Essa é, em minha opinião, a mais bizarra afirmação em toda essa discussão. Ela chega a ser daquelas que inicialmente paralisam o ouvinte, tamanha o seu nível de distorção de qualquer bom senso. Creio que o principal motivo é fazer o mais intenso e descabido uso da já descabida idéia de que a sociedade possa ser dividida entre Cidadãos de Bem e Bandidos.

Não irei nem comentar o fato de que, se homicídio é um crime, praticá-lo torna qualquer um automaticamente criminoso, também farei vista grossa para minha forte resistência à chamar qualquer um que tire a vida de um semelhante por algum motivo banal ou estúpido de "Cidadão de Bem". Quero inicialmente apenas frisar como é esquisito distinguir o tal Cidadão de Bem de um Criminoso, pelo simples fato de ter ou não antecedente criminais.

Ora! Até Fernandinho Beira-Mar um dia não teve antecedentes criminais! Depois de quando ele deixou de ser um "Cidadão de Bem"?!

Argumentistas do SIM afirmam com frequência que a ARMA DE FOGO TRANSFORMA PESSOAS PACÍFICAS EM ASSASSINOS EM POTENCIAL!!! Deusa do Céu!!! Se isso for verdade então é melhor nos liquidarmos como espécie! Por experiência própria, sei que ter uma arma de fogo na mão, por si só, não desperta o desejo de matar, e que tal desejo pode ser despertado sem a arma. E se houver tal desejo e a arma na mão? Creio que a "vontade" de matar alguém só se traduz num impulso incontrolável em psicopatas!

É exatamente isso que tais afirmações querem dar a entender. Que a única diferença entre uma pessoa honesta, pacífica e decente, e um assassino qualquer, é o fato de haver ou não uma arma de fogo à disposição.

É totalmente impossível negar o fato de que várias situações assim ocorrem. Brigas tolas se tornam tragédias porque alguém de repente teve acesso a uma arma. Não fosse isso, a crise passaria por vezes até com risadas. Não estou negando que esses crimes tolos acontecem aos milhares, e que em geral só são viabilizados pela existência de um meio de matar tão eficiente quanto uma arma de fogo.

Mas daí a colocar a culpa na arma é um ultraje à dignidade humana!

Defensores do NÃO foram muito mais sensatos ao perceber e afirmar que casos onde uma pessoa completamente imaculada de atos agressivos de repente se torna uma assassina são rarissíssimos! Se não totalmente inexistentes. O que é frequente é pessoas que já tem precursão de violência, de repente se tornarem assassinas! No entanto, na maioria esmagadora dos casos esses históricos não se traduzem em antecedentes criminais oficiais.

Mesmo assim, tais históricos são quase sempre totalmente explícitos, quer sejam num mau comportamento infantil, na incapacidade de enfrentar uma discussão com paciência, ou em rasgos incontidos de ciúme.

Caso existam, deve ser muito difícil achar casos onde um marido que sempre foi ótimo, de repente assassinar a mulher. Mas são tristemente comuns casos onde um péssimo marido, com histórico de agressões, ciúmes e estupidez, e que não raro foi poupado de um registro policial por covardia, ignorância ou comodismo, num feio dia se tornar um homicida, como o coroamento de um crescendo contínuo de atos maléficos.

É na mão de pessoas assim que uma arma de fogo é mais perigosa, é claro! No entanto, esse tipo de indivíduo maligno tem entrado no curioso grupo de "Cidadãos de Bem" por parte dos defensores do SIM, pois afinal, ele não tem antecedentes criminais, embora o bom senso nos diga que esse indivíduo é bem pior que grande parte dos oficialmente criminosos, que por vezes usam suas armas apenas para assaltos sem maiores consequências, ou para sustentar a profissão de distribuir entorpecentes aos milhões de "CIDADÃOS DE BEM", que estão dispostos a comprá-los de livre e espontânea vontade e de bom grado!

Talvez alguns estranhem porque tal tema me incomode tanto, mas o que eu vejo por trás disso, é o triste e totalmente insustentável mito da Maldade Intrínseca Humana. É miseravelmente difundida a idéia de que o Ser Humano é essencialmente mau, e que por isso, é entre outras coisas, um homicida por natureza, afinal basta uma arma na mão para que seja capaz de matar seu semelhante.

O fato de que tal tola crença possa ser desmantelada com uma frase simples "Para se considerar algo Mau, é necessário uma idéia de 'Bem', se o ser Humano é essencialmente Mau, de onde vem a essa idéia de Bem?" não parece incomodar os que acreditam nela, embora eu possa assegurar que filósofo algum em milhares de anos jamais foi capaz de sequer articulá-la, visto que é fundamentalmente contraditória,

No entanto tal idéia não é apenas comum, ela é mesmo a força motriz de diversas religiões, remova-a, e todo o edifício das tradições abraâmicas desaba. Ironicamente, não são poucos os ateus e anti-cristãos que acreditam piamente nela!

Mas não é apenas por isso que temos essa absurda opinião pautando metade das discussões sobre o Referendo do Desarmamento. Pode-se ver claramente que ela é usada quando convém, e rejeitada quando não o convém. Notaremos com facilidade nos argumentos contra a eficiência da legítima defesa o pressuposto de que o cidadão comum tem poucas chances contra um bandido, porque não é capaz de agir imediatamente, visto que não está acostumado a atirar. O que de fato é uma verdade na maioria dos casos. São muito raros os "assassinos por natureza", como uma famosa revista recentemente disse, mesmo em guerras, a maioria dos soldados hesita antes de começar a matar suas primeiras vítimas.

Pois bem, é muito revelador que este seja um argumento do SIM contra a eficiência da legítima defesa, que o Ser Humano não é, em geral, um assassino em potencial. Mas eis que de repente o Cidadão Comum, pelo simples fato de ter uma arma na mão, é um assassino em potencial! Foi só eu ou alguém mais notou uma contradição aqui?!

É claro que é aqui que entra a distinção que deveria ser mais explícita desde o começo, mas que, mais uma vez, só aparece quando convém. É que estamos falando de ao menos dois tipos de crimes diferentes. Um tipo é o dos ditos CRIMES PASSIONAIS, cometidos em geral pelos ditos "cidadãos comuns", e o outro é dos crimes cometidos em geral pelo bandido "profissional", que pela falta de uma terminologia melhor, chamarei exatamente assim, CRIMES PROFISSIONAIS.

Estes últimos podem ser assim chamados porque funcionam como meio de vida para milhares de pessoas, em geral socialmente desfavorecidas. Eles envolvem os roubos, os assaltos, o tráfico de drogas e etc. Na verdade, embora exista a profissão de matar, é certo que a maioria destes crimes não envolvem assassinato, nem mesmo violência física.

Por outro lado, os Crimes Passionais invariavelmente implicam em violência, e não raro, assassinato. Neste mesmo lado, tais crimes podem ser, em tese, praticados por todo e qualquer tipo de pessoa. De fato, é difícil negar a idéia de que qualquer pessoa, se devidamente pressionada, poderia cometer um assassinato. Eu mesmo, em certas circunstâncias, poderia matar alguém que tivesse praticado um crime hediondo contra crianças por exemplo, e não tenho dúvida que a maioria das pessoas também o poderia. Até hoje tenho vontade de matar o Marcelo Borreli, aquele que torturava a menininha, por exemplo.

Finalmente começamos a entrar na restrita ilha de coerência em meio ao mar de imposturas intelectuais em todo o debate sobre o Referendo. É evidente que o universo de pessoas em condições de praticar Crimes Passionais é muitíssimo maior do que o de pessoas que praticam Crimes Profissionais, mesmo por que o último está contido no primeiro.

Só então as coisas passam a fazer sentido. A turma do NÃO está sempre se referindo à questão da Auto Defesa, que implica necessária e exclusivamente em um único tipo de Crime Profissional. Os Assaltos. É para se defender de assaltos que a maioria das pessoas pretende adquirir uma arma. Esses assaltos também são particularmente temíveis porque nunca se sabe quando os criminosos de repente decidirão cometer alguma outra brutalidade contra a vítima além de simplesmente despojá-la de seus bens. A maioria das pessoas parece concordar que não vale a pena arriscar a vida para defender o dinheiro na carteira, o carro ou os eletro-eletrônicos da casa, mas ninguém hesitaria em lutar até o fim para se defender ou aos seus entes queridos de um estuprador, assassino ou sádico.

Se a auto defesa contra essa categoria de crimes é plausível ou não, é um outro tópico, mas é preciso ter em mente que os apologetas do NÃO estarão sempre orbitando em torno de tal restrito tema.

Por outro lado os apologetas do SIM têm um campo bem mais amplo para trabalhar. Eles pretendem abolir o comércio legal para retirar do cidadão comum, que é maioria, a possibilidade de transformar dissabores triviais em Crimes Passionais, que seguramente deverão diminuir caso o SIM seja aprovado.

Talvez eu tenha tido azar, mas até agora não vi em lugar nenhum a questão ser colocada da forma mais óbvia:

VALE A PENA SACRIFICAR A POSSIBILIDADE DE LEGÍTIMA DEFESA RESIDENCIAL EM PROL DA DIMINUIÇÃO DA OCORRÊNCIA DE CRIMES PASSIONAIS?

Ou, por outro lado, poderíamos fazer a questão ao inverso:

VALE A PENA ARCAR COM A OCORRÊNCIA DE CRIMES PASSIONAIS EM PROL DE MANTER A POSSIBILIDADE DE LEGÍTIMA DEFESA RESIDENCIAL?

É isso que deveria estar sendo discutido, e de certa forma está, mas de um modo completamente distorcido e adulterado.

Ninguém em sã consciência pode negar que a proibição do comércio legal de armas deve levar a uma diminuição do número de assassinatos por crimes passionais, bem como de acidentes com armas. Mas isso apenas no âmbito domiciliar, pois o porte de arma para o cidadão comum já está proibido, de modo que aquele que mata numa briga de trânsito ou de bar já era criminoso apenas por estar armado, e caso o SIM seja aprovado, não afetará em nada essas situações. Nem sequer influenciará na pena para o crime.

Também ninguém poderia negar, embora esteja sendo feito, que tal proibição favoreceria os praticantes de assaltos, porque poderiam contar com a impossibilidade de reação armada de suas vítimas.

Se é certo que a maioria dos crimes profissionais não implica em assassinatos, mesmo fazendo uso da arma de fogo, mesmo sabendo que os criminosos não irão deixar de andar armados, e se é certo que a maioria dos crimes passionais envolvendo armas de fogo termina em assassinato, então temos uma questão realmente delicada.

Para encerrar essa parte, só espero ter convencido o leitor de que é ridículo e totalmente inútil trabalhar com a tola distinção "Cidadão de Bem" e Bandido. Mas podemos trabalhar com a distinção entre Crime Passional, que está em condições de ser praticado por qualquer um de nós, e Crime Profissional, que é restrito a uma fração da população. Neste caso, é claro, levando em conta somente aqueles que envolvem armas de fogo.


A DEMOCRATIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA

Aqui pretendo tocar brevemente num assunto um pouco à parte, mas que deverá entrar em pauta mais adiante. É que poucas outras coisas neste mundo foram tão democratizadas pela tecnologia quando a violência e possibilidade de matar o próximo.

Na antiguidade, uma frágil e pequena mulher tinha poucas chances numa luta contra um homem grande e forte. O advento das armas brancas, espadas, lanças e etc, muito pouco afetou isso. Hoje porém, com o uso de armas pequenas, letais e fáceis de manusear, e que matam à distância, a mesma pequena mulher da situação acima, se devidamente treinada, ficaria até em vantagem, visto que teria um alvo maior para acertar do que seu oponente.

Assim, por mais estranho que possa parecer, às vezes penso que as maiores interessadas em armas de fogo deveriam ser as mulheres, pois as torna capazes de se defender de qualquer agressor. Além do que parece que a capacidade média das mulheres em dominar pontaria e trabalhos de precisão cirúrgica supere a dos homens.

É notório que a covardia dos agressores fará com que as pessoas fisicamente menos avantajadas sempre sejam mais vulneráveis. Não a toa as maiores vítimas de agressões físicas são mulheres, e os maiores perseguidos pelas gangues covardes de jovens são justamente aqueles que não seriam páreo nem mesmo para um de seus algozes sozinho.

No entanto entra aqui a formidável e lamentável capacidade sócio-cultural de manter as estruturas de dominação e segregação o mais intocadas possíveis. A violência sempre foi tida como um privilégio cultural masculino. Embora a armas de fogo simplesmente anulem a diferença física entre as pessoas, são os homens que são em geral treinados para usá-las. São os meninos que brincam com armas de plástico e são encorajados desde cedo a decidir as questões pela brutalidade.

Saindo da questão de gênero, da mesma forma, são os indivíduos de natureza violenta que, naturalmente, irão se interessar por meios mais eficazes de matar. Muitos homens, mesmo os grandes e fortes, não se interessam por violência e nunca se preocupariam em adquirir armas. Mesmo assim os homens robustos dificilmente são vítimas, pois mesmo um assaltante armado pensa duas vezes antes de abordar um Schwarzenegger da vida. São privilegiados pela natureza.

Essa covardia notória também é personagem constante em qualquer ato de crime passional. Quase sempre o indivíduo que parte para a agressão numa situação qualquer só o faz porque pressupõe ser capaz de dominar o agredido. Quase ninguém se dispõe a perder a cabeça e apelar para a ignorância perante um Vítor Belforte. Daí se vê que em geral o crime passional não é tão passional assim. Há uma racionalidade intrínseca.

Essa idéia nos permite até estabelecer um parâmetro que nos ajuda a saber em que situação apelar para a violência seja talvez válido. Quando você tiver aquele impulso de se impor pela força, pergunte a si mesmo se o faria perante um indivíduo muito mais imponente que você. Se não, é muito provável que você esteja covardemente se aproveitando de sua pretensa superioridade física. Se sim, então parece que você tem uma situação na qual vale mesmo a pena lutar.

Veremos então que há perfis de usuários de armas. Os que não tem propensão a violência podem adquirí-la pensando somente em auto defesa, e muitos jamais seriam capazes de usá-la para um ato mesquinho. Afirmar que não existam pessoas que não sejam capazes de possuir uma arma sem jamais abusar dela é simplesmente ultrajante! É chamar milhares de pessoas que jamais tiveram qualquer postura agressiva de assassinos potenciais pelo simples fato de dispor de uma arma! Mas temos também o perfil de indivíduos que adquirem armas com intenções mais suspeitas. Mesmo não pretendendo ser criminosos profissionais.

O estatuto do desarmamento já tornou a compra de uma arma bastante difícil. Na verdade a legislação brasileira se tornou uma das mais rigorosas do mundo. Ficou impossível simplesmente perder a cabeça e ir na loja comprar uma arma para matar alguém. Tal medida contribuiu muito para evitar que pessoas desequilibradas adquiram armas legais, exigindo inclusive exames psicológicos.

No entanto, é evidente que um indivíduo pernicioso poderá adquirir uma arma no mercado negro, o que significa que não apenas os criminosos profissionais, mas os indivíduos de temperamento perigoso, mesmo sem ter antecedentes criminais, também não serão afetados pela proibição.

O que quero dizer é que mesmo no âmbito específico dos crimes passionais, a proibição da venda legal de armas não só não terá eficiência direta com os criminosos profissionais, mas também com os mais perigosos potenciais praticantes de crimes passionais. Os indivíduos de temperamento trangressor e violento, que matariam por uma discussão sobre futebol.

As aparentemente bem sucedidas campanhas de entrega voluntária de armas são muito bem vindas. Provavelmente a maioria das armas entregues pertenciam a pessoas que não se sentiam seguras quanto a possuir uma, ou que o faziam sem o consentimento dos demais membros da família. Creio até que deveria ser implementado no Brasil uma lei que ocorre em alguns estados dos E.U.A, onde uma pessoa casada ao pretender comprar uma arma deve contar com a concordância do cônjugue.

Ao que parece estas campanhas estão surtindo efeito, e tudo é feito sem qualquer imposição legal. Considerando que mesmo na vitória do SIM, ninguém será obrigado a entregar sua arma, fica a dúvida de porque se espera que a proibição tenha mais efeito do que as campanhas de entrega voluntária.

Quem entregou a arma voluntariamente, ou mesmo em troca da indenização, sabia que um dia poderia adquirir outra arma. Mas e quando isso não for mais possível? Não seria um bom motivo para guardar definitivamente a arma que se tem, bem como a munição, que pode durar décadas?

Se a proibição vencer, teremos mais um capítulo na resistência da estrutura social contra um tipo de democratização. Ou melhor, teremos um retrocesso. Se hoje a capacidade de matar não é privilégio de ninguém, desde que se preencha os requisitos necessários de responsabilidade e bom senso, com os quais a ninguém caberia discordar. Se hoje é assim, porque então implementar uma nova segregação de violência na qual apenas segmentos privilegiados da população poderão usufruir?

Os proponentes do SIM foram eficazes em demonstrar a pouca eficiência das armas de fogo como meios de defesa, bem como o risco que elas representam nas mãos de irresponsáveis. Se eles estiverem certos, então porque juízes, promotores, certos políticos e outras autoridades terão permissão para portar armas? Serão eles imunes às típicas falhas humanas que os demais cidadãos tão seguramente cometem? Serão os lares deles, incluindo crianças, mais responsáveis? Os recentes exemplos de juízes assassinos nos respondem essas perguntas.

Quer gostemos ou não, a tecnologia democratizou não só a informação e a saúde, mas também a capacidade de matar. De um modo ou de outro, estabelecer mecanismos legais para impedir que tais recursos cheguem a toda uma população é e sempre será um tipo de medida anti-democrática. Não que isso seja necessariamente ruim. Mas isso é outra história.


PESANDO OS PRÓS E OS CONTRAS

Os argumentistas do SIM não são tolos a ponto de achar que os bandidos irão se desarmar. Ninguém é assim tão idiota. Mas parecem ter uma certa razão ao afirmar que a proibição irá reduzir indireta e parcialmente o arsenal dos criminosos profissionais. Pois "Secaria uma de suas fontes de obtenção, que é o roubo de armas legais."

Creio que seja mesmo possível, inicialmente, mas acho muitíssimo mais provável que em pouco tempo o mercado negro irá compensar essa pretensa defasagem. Mas deste lado, temos o fato pouco discutível de que a proibição provavelmente irá incorrer em diminuição dos assassinatos passionais, dos disparos acidentais e mortes por brincadeiras irresponsáveis.

Por outro lado, parece-me ir contra todo o bom senso achar que a mesma proibição não irá fomentar ainda mais a ação dos assaltantes. Espero que já seja claro o porquê.

Ficamos então entre a Cruz e a Espada. Talvez o SIM tenha razão e caso ganhe venhamos a experimentar uma importante queda nos assassinatos fúteis. Mas talvez o NÃO esteja certo, e não só não teríamos qualquer redução significativa nos Crimes Passionais, mas ainda teríamos um aumento na ocorrência de assaltos.

Talvez estejamos apenas trocando a maior ocorrência de crimes sobre os quais temos algum controle, que são os passionais, por uma maior ocorrência de crimes sobre os quais não temos controle algum. Você pode apelar para o seu conhecido e pedir que ele esfrie a cabeça e abaixe a arma. Bem como está em seu poder levar uma vida mais prudente e amistosa, diminuindo o risco de se envolver em situações de crise violenta. Mas sem dúvida não faria o menor sentido implorar para que o assaltante não o roube, ou que o psicopata não o agrida.

Ao se analisar friamente a questão inicialmente chegamos num impasse, mas é preciso pelo menos ir além das mentiras que ambos os lados têm usado e isolar a questão.

1 - É preciso ter em mente que a proibição irá afetar SÓ E SOMENTE SÓ o direito de se ter uma arma EM CASA! Não sei se por ignorância ou má intenção, os apologetas do SIM continuam insistindo em usar o velho exemplo da discussão de trânsito ou qualquer outro problema na rua. Mas isso está COMPLETAMENTE FORA de questão. O porte de arma já está proibido para o cidadão comum, se alguém infringe essa lei, aprovar a proibição não terá o menor efeito. Nem mesmo na pena para o crime! Portanto, a questão é COMPLETAMENTE DOMICILIAR.

2 - No âmbito domiciliar, o ponto negativo das armas de fogo é que sejam usadas em violências domésticas ou irresponsabilidade. Maridos ciumentos, crianças brincando, discussões que passam dos limites, suicídios e etc.

3 - No mesmo âmbito domiciliar, o ponto positivo das armas de fogo é que elas sejam um reforço na segurança contra invasões em geral. Não somente por parte de criminosos profisssionais, mas também por parte de pessoas que por algum motivo passional decidam agredir algum dos moradores, como também por parte de animais selvagens nas áreas rurais, e até mesmo em casos não tão raros, de animais domésticos perigosos, quando por exemplo o perigoso cachorro de um vizinho adentra sua residência.

Pensando em cima disso, só nos resta pesar os prós e os contras. As estatísticas parecem favorecer o SIM, o número de ocorrências negativas parece superar em muito o de positivas, e mesmo estas últimas muitas vezes não são inteiramente positivas. Matar um assaltante pode ser bem pior do que deixá-lo roubar-lhe alguns bens, não só pelos dramas de consciência, mas também pela possibilidade de vingança pessoal de seus asseclas.

No entanto, na parte argumentativa, o NÃO tem sido muito mais coerente, apelando menos para sentimentalismos e estórinhas trágicas, e fazendo um uso muito melhor das próprias estatísticas. Além disso, o trabalho de John Lott apesar de ser totalmente suspeito, tem pelo menos um trunfo praticamente insuperável. É que o bom senso nos diz claramente que o uso mais bem sucedido de uma arma de fogo é justamente aquele onde não é necessário matar nem ferir ninguém, mas sim apenas ameaçar, por vezes sem disparar um único tiro, evitando assim uma situação muito pior.

Casos como esse praticamente não irão aparecer em estatísticas! Quem irá até a polícia informar que usou sua arma para impedir que alguém praticasse alguma violência?! Quem iria informar que deu um tiro de advertência para afugentar indivíduos suspeitos que invadiram o jardim? Fazer ocorrências policiais para situações como essa só traria aborrecimentos desnecessários. Tais casos nem sequer seriam noticiados. Os jornais não hesitarão em publicar que o marido ciumento matou a mulher à tiros, mas jamais publicaria que alguém apontou uma arma e impediu o marido ciumento de espancar a mulher.

É por essa razão que é muito perigoso confiar nas estatísticas. Além de serem distorcíveis, mostram sempre uma interpretação da realidade por vezes totalmente ilusória. Nossas próprias intuições nos mostram que mesmo que estes números sejam reais, quase nunca vivemos com medo de sofrer crimes passionais, mas estamos sempre com medo de sermos assaltados. Normalmente não temos medo de nossos vizinhos que têm armas, ou de nossos próprios familiares, e se o temos, como a mulher ou criança que teme um marido violento, é algo que pode ser confrontado policialmente. Para isso temos as delegacias de assistência à mulher ou mesmo a comunidade.

Quanto aos acidentes e tragédias por irreponsabilidade, é uma questão de um pingo de bom senso. NÃO SE BRINCA com arma de fogo. Os manuais das armas colocam advertências clarríssimas sobre isso. Nunca, JAMAIS, EM HIPÓTESE ALGUMA brinque como uma arma de fogo!!! Não importa que você a tenha descarregado cem vezes, verificado se está realmente sem nenhuma munição, incluindo a câmara das pistolas, não importa que tenha checado mil vezes que colocou a trava! Não importa! NÃO BRINQUE COM ARMAS!

Mas num ponto o pessoal do SIM tem razão. Tem sempre um IMBECIL que pega uma arma de verdade, acha que descarregou e aponta de "brincadeirinha" para algúem e puxa o gatilho!

Felizmente muitas pessoas não são assim. Desde os meus 8 anos de idade eu tive acesso a armas de fogo em casa, mas tive instruções e advertência muitíssimo rígidas e clarríssimas. Eu jamais brinquei com ela nem quis mostrá-la a coleguinhas. Em grande parte por saber que uma arma de fogo não é um brinquedo. Por tê-la visto atirar e saber o estrago que ela faz em objetos muito mais resistentes que o corpo humano.

Ter o devido e básico treinamento é fundamental para uso responsável de armas. Haja visto que na Região Sul, onde mais existem armas em casas, é justo onde ocorrem menos crimes com as mesmas armas, pois as pessoas são devidamente instruídas a usá-las.

No entanto sempre há quem substime a inteligência infantil e decida esconder que tem uma arma em casa. A criança acha a arma e pensa que é um brinquedo, ou pensa que ela vai apenas deixar a cara do coleguinha preta por alguns instantes, igual aos desenhos animados. Se essa criança tivesse sido apresentada à arma por um adulto responsável e tivesse visto a mesma atirar, duvido que teria coragem de brincar com ela.

Nesse ponto o Estatuto do Desarmamento apresentou avanços louváveis. Agora, para adquirir uma arma é necessário preencher uma série que requisitos que sem dúvida evitarão a maior parte das tragédias. Deveria ter sido feito um levantamento de todas as armas adquiridas legalmente após o estatuto, e sido verificado se algum problema ocorreu com elas. Notaríamos, muito provavelmente, que a maioria das tragédias estúpidas aconteceu com pessoas que adquiriam suas armas antes.

Ao mesmo tempo as campanhas de entrega voluntária das armas têm feito muitas pessoas despreparadas se livrarem das suas, o que é ótimo, pois sem o devido preparo uma arma é não só inútil como Sim, uma autência ameaça.

Sem dúvida que há muitos problemas com as armas caseiras, mas todos eles são solucionáveis por ações simples, que podem ser executadas por qualquer um de nós e que podem ser incentivadas por campanhas. Por outro lado, nossa capacidade individual de prevenir os crimes profissionais são mínimas, ter armas em casa e saber utilizá-las com resposabilidade é uma das poucas chances de defesa que ainda temos.

É claro que a arma de fogo é apenas um dos itens de uma auto defesa eficiente numa casa. É preciso um modo de vigilância, quer sejam cães ou simplesmente atenção. É preciso acesso rápido à mesma e treinamento. Mas mesmo sem isso tudo, morei durante décadas num bairro nobre de Brasília onde conheci vários casos de defesas bem sucedidas onde ninguém foi ferido, pelo simples uso do bom senso. Mesmo as casas que não possuem armas, acabam se beneficiando da fama de outras onde sabe-se que há pessoas que sabem usá-las, pois é muito comum os vizinhos se prontificarem a ajudar. Os riscos continuam, mas uma campanha de esclarecimento poderia elevar o nível de segurança muitíssimo mais, ao mesmo tempo que evita os acidentes e tragédias banais.

Infelizmente ao invés de promover essa elevação de qualidade, a proibição virá com a solução mais fácil e mais estúpida, e como sempre, punindo especialmente os melhores cidadãos, que são exatamente os que sempre souberam usar suas armas com responsabilidade, ao passo que os irresponsáveis só serão beneficiados, por não terem mais a chance de obter artefatos para os quais não têm preparo para usar. Mais uma vez, trata-se de nivelar a sociedade por baixo.

Ainda assim, sinceramente não me importarei muito se o SIM vencer. Infelizmente há idiotas demais neste país e o não nutro esperança de que seja possível promover em todos um salto de consciência. Além do que, como ninguém será obrigado a entregar suas armas, pode ainda mantê-las com munições utilizáveis por décadas, e sinceramente, não será muito difícil conseguir munições clandestinamente caso elas venham a ser um dia necessárias.

Como será possível impedir que alguém carregue uma única e pequenina bala no fundo da carteira? Basta fazê-lo por uma vez por semana e em menos de duas semanas uma arma estará totalmente carregada e pronta para disparar pelos próximos 5 anos no mínimo.

Lamentavelmente, não será o cidadão bem intencionado que fará isso na maioria das vezes, mas sim, e sempre, o mais perigoso de todos, que sem dúvida não irá respeitar a lei. Não apenas os criminosos profissionais continuarão ilesos, mas os mais potencialmente praticantes de crimes passionais também não irão ser atingidos. Como sempre, essa proibição além de prejudicar os melhores cidadãos, será completmente inócua contra os piores, tendo algum efeito somente no nível intermediário.

Mas o mais grave de tudo não é isso. O mais triste, é que tudo não passa de mais um tedioso e infeliz capítulo na imemorável e recorrente tendência humana à burrice. Não à maldade, mas à pura e simples incapacidade de administrar as verdadeiras causas dos problemas. Tais como o Sistema de Cotas Raciais, trata-se de simplesmente se acomodar com a própria incompetência em solucionar os problemas atacando suas causas, e pincelar soluções mágicas atacando suas consequências.

O problema não são as armas de fogo, mas os seres humanos. Armas matam ninguém, mas humanos podem matar com ou sem armas. Proibir as armas pode no máximo deslocar o problema para uma outra área, pois o fator humano, a verdadeira origem do problema, não foi devidamente tratado.


O FATOR TECNOLÓGICO

Algo que toda esta discussão tem sido tenaz em também ignorar é o simples avanço tecnológico. Hoje temos uma definição relativamente razoável de Armas de Fogo, mas ela já está ficando nublada com o advento de armas de ar comprimido, armas elétricas ou disparadores de projéteis por molas. É possível que a proibição incentive uma aceleração na produção de armas alternativas, soluções particulares e muitas vezes engenhosas. Ao contrário do que muitos pensam, não é tão difícil construir armas caseiras bastante eficientes.

Uma arma de fogo legal é cara, e hoje só pode ser comprada por pessoas de renda mais elevada, o que faz muito sentido, pois são justamente as que tem maior patrimônio a defender. Mas quem garante que elas permanecerão caras por muito tempo? A tecnologia avança rapidamente, e em pouco tempo pode surgir uma revolucionária tecnologia que faça o preço das armas despencarem. As armas legais podem ainda continuar a ser caras devido aos impostos e taxas cobradas pelo governo, mas e as ilegais?

E se amanhã uma fábrica clandestina lançar no mercado negro um novo tipo de mecanismo de disparo que torne os revólveres e pistolas tão obsoletos quanto uma garrucha velha? Como as leis vão administrar isso? Eu posso muito bem ter em casa um arco-besta, capaz de lançar pequenas setas muito mais letais que balas de revólver. Que tipo de legislação pode controlar isso?! Ou posso adquirir, ou mesmo produzir, as já comuns armas elétricas. Ou posso mesmo aprender a lançar shurikens!

Parece ridículo, mas o fato é que há inúmeros outros meios de matar e ferir que não sejam armas de fogo, e os legisladores por vezes parecem se esquecer de que uma inovação tecnológica pode tornar a lei totalmente ultrapassada em menos de um ano. Os juristas que mantém a proibição do aborto de anencéfalos até hoje não se lembraram disso.

Portanto probir um único meio de matar e ferir, mesmo que no momento seja o majoritário, é como sempre atacar o sintoma, e não à causa. Se enfocássemos os seres humanos, com a devida atenção e incentivo à legítima educação, estaríamos atacando a causa real do problema, e aí o desenvolvimento de novos instrumentos de violência seria irrelevante perante a melhor consciência cidadã.


NÃO. PORQUE SIM.

Sinceramente, se eu tivesse que escolher entre a turma do NÃO e a do SIM para me fazer companhia, escolheria a última. Não só ela envolve grande parte de pensadores, políticos, artistas e intelectuais em geral com os quais me identifico, ainda que no caso não estejam exatamente pensando, como além do mais, a outra turma está contaminada por algumas figuras nada menos que horrorrosas, principalmente políticas.

Como Sempre Fui de Esquerda, é até estranho que no momento eu compartilhe de uma opinião de predominância direitista. Mas isso apenas mostra que um certo viés nem sempre tem razão, e no que se refere a discutir o problema com seriedade, ambos os lados tem tido um mau desempenho, mais eu ainda confiro uma vantagem para o NÃO. A Frente Pela Legítima Defesa ao menos soube enfocar melhor seus interesses principais, e explicitou de modo audaz o ponto mais fraco do adversário, que não soube reagir à altura.

Ainda que a frente do NÃO tenha usado argumentos torpes como a ridícula comparação entre o Desarmamento e o prenúncio de genocídios, a das conspirações internacionais, e tenha quase que fugido de qualquer aprofundamento na discussão sobre os crimes passionais, a frente do SIM fez muito pior, não apenas acusando o ponto de vista oposto de estar a serviço dos fabricantes de armas como se estes estivessem preocupados, não somente acusando qualquer poprietário de arma de assassino em potencial, denegrindo a natureza humana e fazendo uma confusão absolutamente inacreditável de estatísticas.

Para citar só mais uma, aquela de afirmar que a chance de morrer num assalto ao reagir é tantas vezes maior. Ora, esse resultado foi obtido comparando a porcentegem de mortes da vítima nos casos onde houve e onde não houve reação armada. Mas uma coisa óbvia é que praticamente somente as reações mal sucedidas irão constar nas ocorrências! Alguém que consiga rechaçar com sucesso um assaltante precisa se dar ao trabalho de ir dar queixa na polícia?! Além disso em mais de uma ocasião a pesquisa não diferenciou a reação armada da reação desarmada, e nem poderia contabilizar as vítimas mortas sozinhas e abandonadas em algum lugar ermo, das quais nem sequer se soube porque houve a morte, quer tenham reagido ou não.

Além de tudo isso, usou slogans hipócritas. "Brasil sem Armas" parece querer sugerir que a proibição acabaria com todas as armas do país. "Pela Vida" induz o ponto de vista adversário a ser tachado de "Pela Morte", assim como "Diga SIM à Vida", e não foram poucas as pessoas que responderam que vão votar SIM porque querem um Brasil sem armas, ou porque são a favor da vida, quando o único motivo sensato para fazê-lo é acreditar que isso implicará numa redução significativa dos assassinatos em crimes passionais a ponto de compensar a possível elevação no índice de assaltos à residências.

Também apela constantemente para chantagem emocional, com historietas sem o menor valor argumentativo. Vende uma associação de que somente os anti-armas são pessoas decentes, visto que invariavelmente os defensores do SIM são pessoas que "morrem de medo de armas", até mesmo quando elas estão sozinhas em cima de uma mesa. Elas invariavelmente querem transformar a sensibilidade e opinião pessoal delas em lei para todos.

Do lado do NÃO percebi manifestações muito menos egoístas. Tanto de pessoas que possuem armas, mas nem por isso são assassinas e nem acham que todos deveriam possuir, quanto de pessoas que não possuem e nem querem, mas não concordam que se deva tirar o direito de quem queira possuir.

Como se isso já não bastasse, a campanha do SIM foi muitíssimo mais desinformativa, confundindo com frequência o Referendo sobre a Proibição com o Estatuto do Desarmamento Inteiro, e chegando a ponto de colocar perguntas específicas sobre a Proibição, e respondê-las com os êxitos do Estatuto e das Campanhas! A maioria dos exemplos de outros países onde políticas de desarmamento foram bem sucedidas não incluia o item de proibição, mas a campanha do SIM simplesmente omitiu isso. É muito estranho quando se tem em essência grande dose de razão, mas não ser capaz de traduzir isso em discurso, e apelar para sofismas.

E é aqui que entra meu maior medo. Se por um lado o resultado desde Referendo não está me importando muito, por outro lado temo que no caso da vitória do NÃO nós tenhamos perdido uma coisa importante, que é um olhar sobre certos problemas sociais que o SIM soube ao menos apontar. Eles contribuíram para dissolver alguns mitos e levantar certos tópicos, e o mais importante, têm incentivado certas medidas a serem ainda implementadas. Temo que tudo isso seja ofuscado pelas falácias e deslizes cometidos.

Por outro lado, apesar do que estranhamente diz o pessoal do NÃO nós jamais "adquirimos" o direito de nos armar. Nós o fazemos por pura e simples tradição que remonta os primórdios da violenta história da humanidade, e as leis podem mudar as tradições. Mas se o fizermos agora corremos o sério risco de não conseguir diferenciar que benefícios foram obtidos com a implementação dos demais itens do estatuto e das campanhas, com os benefícios da proibição.

Não tenho dúvidas que numa sociedade quase ideal, ninguém precisaria de armas, e elas poderiam ser alegremente proibidas. Mas enquanto não vivemos num mundo assim, não será aprovando medidas que nos agradam que tornaremos as coisas melhores. Pode ser Esteticamente bonito, mas é Eticamente discutível, e Pragmaticamente perigoso.

Já conhecemos os problemas do modo como as coisas estão. Podemos até achar que estamos Votando Certo, mas podemos estar dando um Tiro no Pé.

Volta aos ENSAIOS

Marcus Valerio XR
Outubro de 2005