ALÉM DA RESSURREIÇÃO
ALÉM DA RESSURREIÇÃO


Daniel estava plenamente conformado. Deitado, mal conseguindo respirar, com insistentes dores por todo corpo apesar dos analgésicos, esperava com certa ansiedade o evento que poria fim a tudo aquilo. O Câncer já corroera seu organismo além da capacidade da medicina em restaurá-lo. As metástases não mais podiam ser detidas.
Ele sabia que o fim estava cada vez mais próximo, e não ficava triste com isso, ou pelo menos não como sua família e seus amigos que o viam definhar dia a dia após quase um ano de luta. Por ser um homem ainda jovem, com 36 anos, sua morte era ainda mais trágica.
Muitos de seus parentes eram religiosos, das mais diversas vertentes. Todos tentaram de alguma forma reconciliá-lo com Deus ou coisa parecida. Todos foram rejeitados. Daniel era completamente ateu. Um Ateísta Forte Convicto. Não apenas isso, era um Niilista. Acreditava em nada após a morte. Sabia que seu destino era a extinção, seja lá como ela fosse.
Não esperava nada além da vida física. Não queria esperar. Não podia aceitar que existisse um Deus ou qualquer Justiça Divina. Não suportava crenças e supertições. Não apenas não acreditava na vida eterna, ele não a queria, ele não a suportaria, e a rejeitaria se existisse.

Como todo bom ateu, Daniel trilhara um caminho pelo mundo das crenças. Nascera numa família Protestante Batista, mas nunca aceitou a visão desta religião. Na adolescência, por influência do namoro com uma espírita, chegara por uns tempos a crer em algumas idéias de Kardec, mas nunca as levou muito a fundo. Por volta dos 20 anos sua convicção agnóstica era mais que estabelecida, o passo para o atéismo fraco foi gradativo, mas o casamento com uma companheira que embora não religiosa, era aberta ao divino, o levara a ser mais moderado.
Isso só mudaria no evento que marcaria sua vida e a de toda a sua família. A breve e sofrida existência de seu único filho, um pobre bebê que nascera com uma série de complicações de saúde, e morrera pouco antes de completar um ano apesar do intenso esforço de médicos e especialistas em salvá-lo. Uma criança que jamais tivera qualquer chance, que vivera apenas para sofrer durante a maior parte da vida, pois mais de 5 de seus meses foram em incubadoras, UTIs e similares, com a ajuda de aparelhos.
Mesmo essa breve existência foi suficiente para um forte elo sentimental com a criança. Daniel se lembrava das vezes que o bebê lhe sorria como se o conhecesse há muito tempo, das ligeiras alegrias de uma pequenina vida que conseguia trazer-lhes momentos de felicidade, violentamente interrompidos pelos extensos períodos de drásticas cirurgias que tentavam desesperadamente evitar o que parecia cada vez mais inevitável. Lígia, sua esposa, não sofreu menos, mas suas crenças e esperanças tentavam minimizar a dor.
Porém tudo foi em vão. Antes o bêbe tivesse morrido nos primeiros dias, não haveria tanto sofrimento. Mas ele vivera para experimentar toda uma sorte de dores e tormentos que a dureza da realidade de um organismo defeituoso poderia lhe proporcionar. Pouco antes dos 11 meses tudo estava terminado.
Foi o fim de qualquer resquício de crença para Daniel, um sofrimento que se a alguns faz abraçar uma fé, a ele desenvolveu uma ojeriza contra toda e qualquer tipo de supertição ou religião.
"Que maldito Deus seria esse que colocaria uma vida inocente no mundo apenas para sofrer hediondamente sem qualquer motivo?" Não adiantava também o argumento de que se tratava de um karma dos pais, pois era impossível crer que a criança não sofresse. "Teria ela também um karma a cumprir? Que espécie de experiência ou evolução poderia advir de um evento destes?" Para ele, a única boa desculpa de Deus era não existir.

Fora uma breve existência, um vidinha que viera ao mundo apenas para o sofrimento de todos, que resistiu o quanto pode apenas para aumentar ainda mais a esperança e tornar mais devastadora a dor da derrota. Daniel nunca se recuperou da perda. Esterilizou-se, pois não mais suportaria a expectativa de ter outro filho, separou-se de Lígia devido a seu apego ainda mais forte à religião, e ambos nunca mais se casaram. E sem dúvida lançou as sementes psicossomáticas que viriam a resultar 8 anos depois no Câncer que agora, lhe ceifava a vida.
Ele era um felizardo se comparado com o Huguinho, seu filho. Pois vivera as alegrias e bons momentos da vida, tivera a chance de lutar e não se sentia apesar de tudo como um infeliz. Mesmo com essas tragédias, ainda considerava o saldo de sua vida positivo.
Agora era o fim, após tão intenso e conformado sofrimento em hospitais, Daniel esperava a morte. O Nada. O Descanço Eterno.
Os médicos já haviam preparado a família, que de mãos dadas, ignorando as diferenças religiosas, orava pela alma de seu incrédulo companheiro que agora partia. Rogavam pela piedade divina.
Lígia estava entre eles.

Daniel agora estava sozinho. Mesmo que imerso numa multidão não mais seria capaz de perceber-lhes a presença. Todos os seus sentidos falharam. Apenas sua mente ainda tinha um momento de lucidez entre as inúmeras escuridões. Teve um breve momento de paz, de total ausência de dor, e percebeu que a hora chegava.
Ele se conscientizou plenamente do fim. Ele sentiu o vazio, olhou nos olhos do Não-Ser, e subitamente, e diferente do que esperava, percebeu o breve porém intenso desespero da contemplação direta com a Aniquilação.
De repente, diferente do que esperava, quis voltar a viver, quis ficar pelo menos mais alguns dias, quis adiar o momento inevitável. Lembrou quando disse a sua ex-eposa, ao segurar-lhe a mão. "Eu queria tanto ficar... Com você... Nunca mais brigaríamos... E pensar nas tantas bobagens pelas quais sofremos...

...Eu queria ficar..."

Mas ele se ia, sentia o fim inevitável. E o que pensara durante a maior parte da vida ser um tranquilo caminho para a paz definitiva, parecia agora um aterrorizante avançar rumo a um abismo que inexplicavelmente, lhe parecia tenebroso.
"Por que a Inexistência deveria ser temida? Se nada sentiremos."
O que explicaria agora esse incompreensível temor do fim?

E então, pouco a pouco, a consciência foi se desvanecendo, sinapse por sinapse, neurônio por neurônio, partícula por partícula...

Até o fim...

...
" - Daniel..."

" - Daniel..."

" - Daniel?"

" - Daniel... Se puder nos ouvir... Preste atenção."

" - Somos amigos Daniel, não tenha medo. E precisamos lhe perguntar algo."

" - Você sabe o que ocorreu. Sua vida chegou ao fim. Seu corpo foi destruído."

" - Mas não foi o seu fim. Não tem que ser. Se você quiser, pode continuar vivendo. Nós podemos lhe dar uma nova chance, uma nova vida."

" - Mas nós não podemos fazer isso Daniel, sem a sua autorização. Você precisa permitir que nós o ajudemos, portanto preste atenção."

" - Daniel... Você deseja viver novamente? Deseja recomeçar a vida em um novo corpo, com a mesma mente?"

"..."

"...Responda Daniel... Por Favor... Precisamos de sua resposta."

"Daniel?"

"Daniel..."

Daniel não sabia se havia de fato vivenciado o vazio, contemplado o Não-Ser. Mas sabia que algo acontecia. Sentia que algo dera errado, muito errado, e não era um sonho.
Não fora o erro de não ter morrido por ainda estar na UTI do Hospital. Ele sabia que seu corpo não mais existia. Tinha consciência de sua morte. Então por que ainda não havia acabado. Por que ainda sentia? E pensava?
E agora aquela voz... Aquele algo em sua mente...
Alguém o chamava, e sabia ele, não era um alguém qualquer.

Por que não acabara?! Por que não o deixavam partir em paz?!

Mas de súbito, o medo do vazio o atacou novamente, e uma inexplicável vontade de continuar vivendo se apossou dele, ainda que fosse viver naquela horrível cama de hospital, mas era melhor do que nada. Ele não sabia porque, mas sentia-se assim.

Mas e agora? O que havia naquele além morte? Naquele além vida?
Seria Deus? Qual deles? Espíritos? Quem seriam?
Seria punido por ser descrente? Seria aquela terrível sensação de medo do vazio, o inferno propriamente dito?

Se sim, ele admitia então que o Inferno era mesmo incognoscível às pessoas vivas, mas nada poderia ser mais aterrorizante. Queimar num braseiro ou sofrer torturas estranhamente ainda pareciam melhores, pois pelo menos havia existência.
Seria essa deficiência humana, esse desejo irracional de existir que atinge mesmo os animais, o motivo pelo qual de fato havia algo além da morte? Como se a mente mesmo tendo seu cérebro destruído, se recussasse a cessar?

" - Daniel?"

O que era aquilo? De quem era aquela voz?

" - Daniel... Precisamos da resposta."

Não parecia ameaçador. Parecia amigo. Mas oferecia o quê? A vida eterna?

" - Daniel... Não temos a Eternidade."

Estaria ele errado durante tanto tempo? Haveria mesmo a vida pós-morte?

" - Por favor Daniel... Precisamos da resposta."

Poucas vezes em vida ele cogitou essa possibilidade. Como se sentiria se descobrisse a existência da vida pós-morte? Como seria se deparar com aquilo que em vida lhe era uma crença que inspirava tanta repulsa?
Mas agora... O Vazio parecia tão aterrador...
Ele queria viver.

" - Daniel... Sentimos Muito Daniel."

Ele queria! Estranhamente ele queria viver!

" - Você tomou sua decisão."

De repente todo o seu ódio pelas crenças em divindades e vida após a morte é que foi aniquilado. Ele queria viver.

" - Adeus Daniel."

Porém o que fazer? Ele tentou gritar, mas é claro que não tinha voz. Aliás não havia som. A "voz" que ouvia não era uma voz. Também não tinha membros. Só podia pensar... E sentir...

"..." Não... Não!.. NÃO!!!

NÃÃÃÃÃOOOOO!!!!!!!!!!
Ocorriam no sentido inverso todas as sensações que Daniel tivera na reta final de sua jornada para a morte. Um breve nada, e então uma indescritível e suave sensação. No começo era como ter a mente vazia e vê-la sendo preenchida. Não sabia o que quer que fosse até lentamente se lembrar de algo, ainda que imerso num sonho.
Primero "ouvira" uma breve vibração, e pouco a pouco, "sombras" e "luzes" mentais iam se tornando menos confusas e letárgicas. Tinha consciência de si mesmo como um ser, embora totalmente desorientado sobre tudo a sua volta, como se sem identidade. Estranhas e indefiníveis sensações começavam a aumentar de frequência, ouviu uma batida surda e forte, e outra, e mais outra.

Sentiu o coração pulsar, e sentiu ter um corpo. De repente, sentiu algo invadindo seu ser, o ar.

Como era bom respirar! Um verdadeiro prazer. Após tanto tempo respirando com a ajuda de aparelhos, sentiu pulmões fortes se encheram do mais puro e delicioso ar. Tanto que se empolgou e começou a respirar aceleradamente.
Então as sensações se multiplicaram, sons difusos, aromas, a língua meio anestesiada mas sentindo os dentes. Espamos musculares suaves se espalhando por todo o corpo.
Sentiu então que seus olhos estavam abertos, mas a visão demorava a chegar. Via manchas desfocadas se movendo ficando mais definidas pouco a pouco. Sentiu que seu corpo estava sendo movido.
Por fim uma luz intensa se tornou mais suave, percebeu como se uma porta se abrisse e distinguiu vultos humanos, ficando cada vez mais definidos. Várias vozes incompreensíveis mas calmas, até que uma se destacou, e era inteligível apesar de um sotaque estranho.

" - Olá Daniel. Seja Bem-Vindo. Não tenha medo."

Do que teria medo? Se sentiu de repente mais forte do que nunca, e então se mexeu, percebendo estar numa cama macia, usando apenas um tecido suave sobre o corpo.
Tomou bastante tempo contemplando seu velho e bom corpo, ou melhor, novo corpo. Era ele, sem dúvida, o mesmo físico apesar de no melhor estado que já estivera, até algumas manchas típicas embora algumas cicatrizes houvessem sumido. Deslizou as mãos sobre o rosto, cabelos, peito. Estava em excelente forma, mas era seu corpo.
Agora sua visão era nítida. Estava num abiente claro embora de tons amarelados (como os desta página), alguns homens e mulheres o observavam, todos de ótima aparência, altos e de bom porte físico, olhares simpáticos, e usando roupas leves, em tons ocre e amarelo.
Havia uma estranha mobília, ou seriam aparelhos? Estaria num tipo de hospital?
Foi gentilmente convidado a se levantar, e o fez sem muita dificuldade apesar de uma ligeira vertigem. Fazia vários meses que ele não podia ficar de pé, e agora estava lá, a olhar para um recém-surgido espelho, mais saudável do que nunca, aparentando a mesma maturidade embora com uma aspecto mais jovial.

- ...Onde eu estou?

- Calma Daniel. Tenha um pouco de paciência. Alguém que você conhece logo virá lhe assistir. Enquanto isso venha conosco.

O homem o conduziu até uma área aberta. Ele respirou um ar diferente, mas agradável, e contemplou um céu amarelado, com algumas nuvens. Num lado do horizonte havia um amarelo quase intenso, decaindo até o outro lado num ocre bem escuro.

- Mas... Onde estou?!

- No planeta que você conhecia pelo nome de Vênus. Alguém vem ver você.

- Daniel!

Ele reconheceu a voz, e deparou-se com Lígia, sua ex-mulher, mais linda do que nunca, veio correndo a ele e lhe abraçou em lágrimas de alegria.

- Que saudade...


Minutos depois, Daniel e Lígia caminhavam por uma passarela ao ar livre, de onde ele podia ver, abismado, uma cidade de visual quase surreal. Não lhe parecia tecnologicamente avançada segundo as expectativas de seu tempo, mas a maneira como certos objetos flutuavam, ocasionais aparecimentos repentinos que sugeriam teletransporte, e o fato de o planeta Vênus estar colonizado e perfeitamente habitável, o levavam a não ter como duvidar do nível tecnológico que via diante de seus olhos.

- Agora que estou mais calmo. Pode começar a explicar.

Lígia lhe sorria, com alegria incontida. Era sem dúvida a mesma mulher que ele amara em vida, mas estava mais bela do que nunca. Daniel não disfarçava o nervosismo, e Lígia logo dissipou seus temores.

- Não tenha medo. Você está vivo, está bem, e estamos juntos de novo.

- Como posso estar vivo?!

- Eu não disse que havia vida após a morte? Você foi ressuscitado. Mas não se assuste. Não há o que temer. Não há tribunais celestes, não há julgamento, não há anjos ou deuses. Não literalmente.

- Então quem me ressuscitou?!

- Ciência! A Ciência Humana.

- ...O, quê?!



- Fazem mais de 8.000 anos desde que nós morremos. Eu morri 5 anos depois de você, e a vida continuou para as outras pessoas. A humanidade continuou.
Foram muitas guerras. Muitos atrasos, muito sofrimento, mas o mundo progrediu, resistiu, evoluiu.
Menos de meio milênio após termos morrido, a Genetologia e a Medicina já tinha eliminado todas as doenças que assolaram o mundo desde o começo da história. A crescimento demográfico foi controlado, em parte pela colonização de outros planetas, e a vida se tornou bem mais longa.
Algumas pessoas já viviam mais de 300 anos, e cada vez mais esse limite foi extendido, até que cerca de mil anos depois, por volta de... Deixe-me lembrar a escala de tempo cristã... Do ano 3600 depois de Cristo, conseguiram a Imortalidade.

- Imortalidade?!

- Sim. Quer dizer. Imortalidade relativa é claro. Há pessoas vivendo há mais de 6.000 anos mas ninguém garante que vai ser pra sempre não é?

- Entendo. Incrível. Você é imortal?

- Eu e qualquer pessoa, inclusive você. Nossos novos corpos tem limite indefinido.

- Uau... Tubo bem mas...

- Calma. Deixe eu explicar. Naquela época só os que nasciam sob produção controlada ficavam imortais. Demorou mais de 1200 anos para que o benefício se extendesse a toda a humanidade. Foi preciso muita discussão, muitas campanhas e lutas de opinião. Mas desde 4950 todas as pessoas que nascem não mais envelhecem ou morrem, embora você possa envelhecer se quiser, com o tratamento adequado, também pode morrer, nossos corpos apesar de não adoecerem e serem muito mais resistentes, não são indestrutíveis.

- Não será cansativo? Viver tanto tempo?

- É! A maioria das pessoas não aguentar viver mais que uns 400 anos com uma mesma personalidade, mas em geral optam, ou optavam, por apagamento de memória, para uma nova vida.

- Por que... Optavam?

- Por que depois surgiram opções melhores. Mas me deixe continuar
Entretanto havia aqueles que ainda eram limitados, vivendo no máximo uns 600 anos, e é claro que muitos não queriam morrer. Queriam ser como os outros. Isso deu muita confusão, e uma guerra acabou acontecendo. Mas em 5700 um novo avanço viria eliminar de vez a mortalidade involuntária no mundo.

- O quê?

Ligia apontou para uma plataforma de onde surgiam e sumiam pessoas.

- O teletransporte.

Daniel ficou coçando a cabeça pensativo.

- Não entendi. O que o teletransporte tem haver com isso?

- Bem. Na verdade eu fiz uma pequena confusão. Já era possível entrar num portal e aparecer num outro desde 5160, através de um túnel que... Quero dizer...

- Um túnel?! Que liga lugares distantes?

- ... Não mas... É. Mais ou menos. É como um atalho invisível entre um local e outro. Mas depois surgiu o teletransporte molecular, onde um objeto pode ser desintegrado e depois reintegrado em outro lugar.
Aí, descobriram que era possível não apenas transportar, mas também criar.

- Tá. Mas o que um tem haver com o outro?

- É que o computador que organiza as moléculas, que desmonta e remonta as partículas, também pode ser usado para construir um corpo novo a partir de qualquer outra fonte de matéria.
Então se constrói um corpo novo para a pessoa, e se destrói o antigo.

- ... -

Daniel ficou olhando para ela, incrédulo.

- Mas e a... Consciência? Uma cópia sua não é você!

- ...Bem. Essa é a parte complicada.



- Tá. Vamos ver se entendi. Primeiro descobriram como aumentar a vida até chegar na imortalidade, então todas as pessoas passaram a nascer imortais mas ainda havia gente mortal, então deram uma jeito de transferir a mente desses mortais para novos corpos imortais?

- É isso. Você não mudou nada.

- ... É! Mas como fazem isso?

- Ainda é um mistério. Mesmo com todo o avanço nós nunca descobrimos direito porque isso funciona assim.

- Nós quem?!

- Nós! A humanidade!

- Ah...

- Existe um tipo de comunicação telepática entre dois cérebros iguais, que sejam totalmente iguais. Cópias. Quando se ativa o novo corpo, a mente parece ficar dividida entre os dois. Os dois sentem as mesmas coisas, podem se comunicar a distância. Mas lembre-se que tem que ser iguais! Com as mesmas memórias, mesmas impressões e experiências acumuladas. Não adiantariam ser só clones com um histórico de vida diferente, eles teriam que ter tido vidas absolutamente iguais. O que é impossível.

- Telepatia?

- Sim. Acho que sim.

- Mas e quando um morre? Quer dizer, quando o antigo morre?

- A mente fica toda num corpo só.

- Quer dizer que se criarem outro corpo meu, ia ser como um irmão gêmeo que... Vê tudo que eu vejo, sente o que eu sinto...

- É isso. Tanto que se fizessem isso agora você saberia na hora.

- E há pessoas duplas andando por aí?

- Sim. Mas a maioria não gosta, e nem consegue. Acho que deve ser enlouquecedor. Mas há alguns por aí que chegam a possuir várias cópias. Com o tempo, aprendem a viver dividos em vários corpos. Na verdade muitos cumprem papel importante na sociedade, servindo de telecomunicadores até mesmo entre planetas diferentes.

- Incrível. E então deixam o corpo antigo morrer?

- Sim. O desintegram.

- Mas por que isso acontece. Como é que existe essa... Comunicação entre os duplos?

- Ninguém sabe ao certo. É o maior mistério que existe.

- ... Sei. O que você disse sobre as pessoas que, ao invés de apagar a memória com o mesmo corpo fazem outra coisa melhor?

É que é possível criar uma nova cópia mais jovem, criança, e transferir a mente. Como o cérebro é diferente, muitas informações se perdem, mas a... Essência é a mesma.

- Mas aí deixa de ser a mesma pessoa.

- É... Se perde a memória. Mas depois se quiser, é só criar uma nova cópia exata do corpo original, se os dois estiverem vivos, entram em sintonia parcial, e com o tempo vão se tornando um só, até chegar numa época em que um dos corpos pode até morrer que toda a memória do outro é preservada.

- ...Impressionante. Tá mas peraí. Vamos voltar ao assunto. Como é que eu fui ressuscitado?

- Eu já ia continuar. Com essa nova técnica, todas as pessoas ainda mortais que quiseram foram transferidas para novos corpos, mas começou um problema.
Passou a se dar muito mais valor a vida física. A essa altura nenhuma religião daquelas que nós conhecíamos na nossa vida antiga existia mais. O apego à vida física foi aumentado e o medo da morte ainda mais.
Então muitas pessoas as vezes queriam uma cópia apenas para não correrem o risco de morrer, mas não demorou para perceberem uma coisa muito mais estranha, que é na verdade parte deste grande mistério.

- Hum...

- Muitas pessoas que já haviam morrido tinham sua estrutura cerebral registrada, partícula por partícula, e os computadores podiam então criar um novo corpo mesmo de alguém que já tivesse morrido, e aí... Advinhe?

- As pessoas voltaram a vida?

- Sim. Com todas as memórias, toda a personalidade de quando morreram, intactas. Preservadas como se tivessem sido congeladas no tempo.

- Quer dizer que a... Mente, a mesma mente além de poder existir em mais de um cérebro... Também continua existindo mesmo depois de nenhum corpo?

- É! E não importa há quanto tempo a pessoa tenha morrido, quando o novo corpo é construído a pessoa ressuscita, sem ter percebido nenhuma passagem de tempo. É como piscar os olhos e acordar no novo corpo.

- Mas... Isso é... Muito difícil de acreditar.

- Eu sei. Também demorei muito para engolir isso tudo. Como você acha que eu me senti? Minhas crenças foram todas derrubadas. Hoje não acredito mais em quase nada daquilo. Acredito em Deus, e sempre continuarei acreditando em algo divino, mas...

Daniel fez sua típica expressão de aborrecimento quando Lígia insistia nesse assunto, mas ele não estava em condições vantajosas, afinal sempre duvidara que fosse possível a consciência ser preservada após a morte do corpo, e agora via que era verdade.

- Por que me olha desse jeito? Lembra quando apostamos que havia vida após a morte?

- É mas você falava em mundos celestiais, reencarnação, mediunidade...

- Tudo bem. Mas há vida após a morte do corpo não? Você acha que é só uma cópia do verdadeiro Daniel? Você tem dúvidas de que você é você mesmo? Eu não tenho.

-... Tem muita coisa estranha aí. Quando eu morri eu não era o mesmo de quando tinha 25 anos. Agora meu corpo é diferente daquele corpo estragado pelo Câncer.

- Sim! Mas você é você mesmo não é?

- É... Mas não entendo como. Aqueles anos finais fazem parte das minhas memórias, mas esse meu novo corpo... É como se fosse cópia daquele de quando nós...

Ele se lembrou amargurado de seu filho pequeno, que vivera tão pouco tempo, e de repente ficou a pensar, com medo de perguntar.

- É por que a ressuscitação acontece em dois estágios. Primeiro eles criaram um cópia do seu corpo no momento em que ele estava para morrer, logo em seguida criam o corpo saudável e imortal, e deixam o antigo terminar de morrer. Aí sua mente é definitivamente transferida.

Ele se levantou, de repente chocado e impaciente.

- Mas... Mas como é que copiaram meu corpo?! A tecnologia desse tal registro cerebral... É, estrutura molecular... Só surgiu milhares de anos depois de eu morrer! Como é que tinham o meu registro?!

- É aí que entra em cena outra grande revolução, que aconteceu no ano 8950, há pouco mais de um milênio atrás.

- Em que ano estamos?

- Tive que fazer as contas de acordo com o calendário do século XX, pois sabia que você perguntaria. Agora equivale ao ano de Onze Mil Cento e Quarenta e Sete.

- ... Caramba... 11.147.

- Essa descoberta, na verdade não exatamente uma descoberta... Todas essas conquistas foram lentas, passos cuidadosos. As possibilidades já eram muito discutidas bem antes de se concretizarem.
Aperfeiçoou-se um meio de "ver o passado", quase como se fosse uma Viagem no Tempo. Só que não se pode interferir em nada no passado, quer dizer, não se vai ao passado realmente, mas se pode vê-lo!

Daniel olhou pra ela quase aborrecido. E se levantou para caminhar.

- Ah... Me dá um tempo.



Daniel caminhava por uma das plataformas que ofereciam uma vista da cidade. O visual era um espetáculo. Um forte foco de luz no horizonte parecia ser o Sol, que mesmo coberto por montanhas era muito grande e desde que ele o vira pela primeira vez, há várias horas, não parecia ter se movido.
De fato Vênus tem o Dia maior do que o Ano. Ou seja, enquanto o período de rotação do planeta em torno de seu próprio eixo demora 243 dias da Terra, uma volta completa em torno do Sol dura 225.
As zonas mais habitadas do planeta eram as polares, pois era um mundo muito quente, isso explicava o sol no horizonte. Havia poucas nuvens e as estrelas eram visíveis bem nítidas no zênite, o alto do céu.

- Está vendo as estrelas?

- Sim.

- Sabe que estamos vendo imagens do passado não?

- Sei. Muitas delas se apagaram há milhões de anos.

- É mais ou menos assim que funciona. Se você apontar uma Super visualisador para algumas destas estrelas e conseguir ver um de seus planetas, e se nesse planeta houver uma avançada civilização, você veria aquilo que agora é apenas o passado desta civilização.
É simples. A matéria parece ecoar no tempo. Cada gesto que fazemos fica registrado no espaço. Aprendemos a viajar pela galáxia em velocidades maiores que a luz. Quer dizer, através de túneis, parecidos com o de teletransporte. Então colocamos centenas de super telescópios apontados para a Terra, e vemos o passado, só vemos, não podemos ouvir nem tocar.
Podemos até congelar a imagem, usar visões que atravessam os objetos sólidos, como um Raio-X. Os computadores através dessa imagens conseguem interpretar toda a tridimensionalidade, e reconstroem tudo num simulador. Aí usamos os scanners para mapear o cérebro e todo o corpo, podemos então ler a posição exata de cada partícula, e criar uma cópia fiel.

- E aí ressuscitam os mortos...
Você mudou Lígia. Ficou tão... Inteligente. Você era mais simples.

- Daniel... Esse é um mundo novo, é preciso aprender bastante se quiser acompanhar o progresso. Não dá pra ficar pra trás.

- Eu não sei se estou preparado para esse mundo.

- E não está mesmo. Ninguém assim que é ressuscitado está. Mas não se preocupe, tem muito tempo pela frente pra aprender. Se quiser.

- Ainda não entendi... Quer dizer. Então foram para um local distante do espaço, apontaram um telescópio para a Terra e me viram! Então com minha imagem... Me copiaram!?

- Exatamente. Simples não?

- E as outras pessoas?

- Ahh... Isso foi um grande problema. No começo ressuscitou-se só algumas pessoas. Na verdade essa possibilidade já era discutida há muitos séculos, e várias pessoas já haviam declarado antes de morrer que iam querer ser ressuscitadas. Foram as primeiras.
Depois passaram a ressuscitar todas aquelas pessoas que claramente gostariam disso, e que fossem interessantes e produtivas para a sociedade. Mas com o tempo a tecnologia evoluiu, ficou mais acessível, e sistemas de visualização foram espalhados em várias outras estrelas, até sermos capazes de ver há mais de 40 mil anos no passado. Nós já podemos chegar a mais de 50 mil anos-luz de distância, mas daí pra frente o sistema ainda não consegue reconstituir as imagens com precisão.

- Espera! E não encontraram... Nenhuma outra civilização? Alienígenas?!

- Vivos não. Mas achamos vários vestígios de civilizações que já desapareceram, até em Marte! Aliás, podemos vê-las.
Mas me deixa continuar. Com o tempo podia-se ressuscitar qualquer um, bastava captar as imagens, processá-las, interpretá-las com os computadores e captar todos os dados necessários. Aí cria-se um arquivo contendo... A Fórmula de cada um, e podemos ressucitá-los na hora que quisermos.
Mas isso deu muita confusão. Muitos achavam que não devíamos fazer isso, que seria uma violação do direito da pessoa, tanto que é obrigatório que a pessoa autorize a ressuscitação. É por isso também que primeiro criam uma cópia idêntica, entram em contato e perguntam se ela quer viver de novo. É claro que a maioria quer. Mas não todos. Por isso as vezes, por insistência de amigos ou familiares que já foram ressuscitados, é preciso tentar várias vezes.

Ela enfatizou a última frase e lançou-lhe um olhar curioso.

- Chegou um dia que decidiram que nós tínhamos um tipo de obrigação sagrada de ressuscitar toda a humanidade que já existiu, então criamos o projeto científico mais importante da história.
Vamos ressuscitar todas as pessoas, e povoar a galáxia. São só até agora... Mais de 60 Bilhões! E isso por que ainda não conseguimos ver muito antes de 40 mil anos atrás, mas não vai demorar muito.
Há dezenas de planetas colonizados Daniel, onde estamos redistribuindo a humanidade de todos os tempos. É claro, tem muitas complicações.
Pra começar o problema cultural, principalmente religioso. Para alguns povos foi preciso criar um mundo simulando toda sua mitologia, para dar a eles mais ou menos o que esperavam após a morte, e depois, aos poucos, esclarecê-los. Existem mundos simulando as mais diversas formas de crença religiosa após a morte, para evitar um choque muito grande. Há mais de um mundo simulando as profecias Bíblicas do nosso tempo, onde milhões de crentes estão satisfeitos com a aparente realização das promessas de sua religião, aos poucos vamos conseguindo retirar alguns mais preparados, mas há outros, tão bitolados que... Ficam séculos!
Em compensação tem outros que se adaptam rápido. Um de meus instrutores havia sido um índio de nossa época, mas que vivia na Amazônia em uma das tribos ainda selvagens, que nunca havia visto a civilização. Ele aprendeu tudo em menos de 6 anos. É um gênio!

- ... E... Quantos já foram ressuscitados?!

- Dos que já podemos quase todos.

- E... Então nossos parentes?! Nossos amigos?! Quero vê-los!

- Calma Daniel. Todos já foram ressuscitados. Você foi o último. Nós vamos vê-los, mas a galáxia é grande, e muitos viajararm. Daqui para a Terra ou para Marte é rápido, mas para outras estrelas, pode levar anos. A não ser que você esteja disposto a encarar uma duplicação de corpo. O que a maioria não quer.
Sabe. Até para a Mente o espaço impõe limites. Se você for duplicado num sistema a alguns milhares de Anos-Luz daqui, a comunicação entre os corpos fica atrasada, a mente fica confusa.
... O que foi?

- O último? Por que eu fui o último?

Lígia fez um suspense, mostrava que era difícil falar sobre aquilo.

- Bem... Como eu te disse, não podemos violar o direito da pessoa de não querer reviver. Sempre tentamos de novo, mas alguns demoram muito para aceitar.
Você Daniel... Foi um dos que mais resistiu.

Ele ficou a olhar para ela, num misto de surpresa e indignação.

- Você resistiu tanto que chamou atenção de alguns estudiosos. Sabe quantas vezes nós tentamos Daniel?

- ...

- Seis vezes! Você quebrou o recorde! Até agora o máximo que haviam resistido era 5.

- ...Mas... Eu não... Quero dizer. Eu acho que sei...

- Sim. Você sabe. Você não apenas não acreditava que pudesse haver vida após a morte, você não queria que houvesse. E desejava isso com muita força. Você odiava essa idéia. É muito difícil convencer certas pessoas.
Em você havia esperança, por que há alguns que são tão fechados que basta uma tentativa para percebermos que não aceitarão nunca. Esses são os intocáveis. Uma ínfima minoria. Mas existem.
Mas dos que podiam ser convencidos... Você realmente quase nos fez desistir.

-... Mas, eu não me lembro disso.

- Não dá pra lembrar. Só se sempre recriássemos o corpo a partir da última tentativa. Não é assim, sempre criamos a pré-cópia, quer dizer a cópia idêntica, a partir do corpo original em cada tentativa, para depois criarmos o corpo imortal se a pessoa aceitar.

Subitamente ele começou a rir, discretamente.

- ... Então essa é a punição para os que não crêem... Ficar por último.

- Ressuscitamos todos Daniel, até loucos, e os tratamos. Pessoas que sofreram muito são recompensadas. Criminosos são reeducados. Estabelecemos uma Lei que proíbe qualquer tipo de julgamento jurídico não importa os crimes cometidos. Algumas pessoas realmente dão problemas. Mas nada grave. Só os que não podemos, ou que deixamos por último, são o que não querem ser ressuscitados.

- ... Ressuscitam todos?

- Sim Daniel. Não importa a idade.

- Mas então... Ele?

Ela sorriu, e tocou em sua mão.

- Sim. Venha comigo.

A medida que iam correndo a expectativa crescia. Desciam rumo a uma das construções semelhantes a em que Daniel acordara. Passaram rápido pela entrada, Lígia cumprimentou pessoas que conhecia. Eles já estavam esperando. Daniel não falou com ninguém mas todos lhe sorriam.
Um outra ressuscitação estava para ocorrer, e Daniel e sua companheira estavam em lágrimas.

- Eu... Eu não posso acreditar.

- Você... Sabe há quanto tempo eu esperei por isto? Quase 10 anos. Fui ressuscitada há quase 10 anos Daniel, e durante todo esse tempo esperei por esse dia.

Todos os nosso parentes e amigos desistiram. Mas eu não, eu não podia ter esse momento sem você. Você merece isso... Meu amor.

Sons estranhos ecoaram no ambiente, e logo se ouviu um choro de criança. Uma mulher trouxe a criança, de pouco menos de um ano.

- ...Hugo...

A emoção era forte demais, pai e mãe abraçaram o bebê, que logo sorria.

- ...Meu Huguinho... Meu filhinho.

- Deus... Agora tudo vai ficar bem. Somos uma família de novo.


- Lígia, minha amada... Estamos juntos de novo. Nós Três.

- Para sempre meu amor...


Para Sempre.
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Marcus Valerio XR
07 de Dezembro de 2001