PLANETA ÓRFÃO - II

Com sete anos de atraso, eis que finalmente me dispus a finalizar este conto. Essa imensa pausa
se deveu ao fato de que, diferente de todos os outros contos divididos em partes, este nunca parece
ter despertado atenção, e embora eu tivesse uma idéia clara de como seria seu final, nunca tive uma
noção clara de como seria seu meio. Finalmente, após um breve incentivo, decido prosseguir essa estória.

Se ainda não o fez é melhor ler, ou reler, a Primeira Parte.
Se já tiver lido os dois primeiros capítulos, você pode ir para a Parte Final

ÊXODO

A desagradável experiência de cruzar o Segundo Território foi marcante, mas não conseguiu impressionar RELPEK mais do que o encanto de EIRAM. Jamais pensou que um dia se sentiria assim, cada dia mais interessado em ouví-la, querendo sempre vê-la, e pensando incessantemente nela a cada segundo que não a estava percebendo diretamente. Nem em seus sonhos podia esquecê-la, pelo contrário.

As Sacerdotisas da Luz Central não eram impedidas de ter relacionamentos amorosos, embora tivessem recomendações de moderação e de exemplo de compromisso e fidelidade. Por isso, não seria problema da parte de EIRAM que ela e o jovem RELPEK se enamorassem, desde que com intenções sérias. Porém, para ele, era diferente. Naquele mundo existia a noção de que um cientista era alguém recatado, inteiramente dedicado à Sapiência. Ter uma esposa podia até mesmo lhe ser desfavorável no momento de uma seleção para um cargo científico importante, por exemplo.

Pior ainda se a esposa fosse uma Sacerdotisa, que embora fossem respeitadas, ainda eram vistas como incompatíveis com a atividade científica. Mas talvez ainda pior, para ele, era sentir que todo o seu ceticismo sobre a Religião estava abalado. Podia se perdoar por descobrir que a religião da Luz Central era menos ingênua do que ele pensava. Leituras mais atentas dos versos de fato mostravam um sistema filosófico algo mais coeso do que popularmente se supunha. Porém ele sentia algo mais, uma certa sedução. E aí estava a questão, esse sentimento era real, ou apenas parte da paixão por EIRAM?

ONURB teve que cutucá-lo para que prestasse atenção ao fato de que saíam do Segundo Território, e encontrar a fronteira com o Primeiro deserta não era bom sinal. Sugeria que a situação era tão caótica que até as divisas estavam fora de controle. Cruzaram sem incidentes, embora com muita cautela, quando o sol vinha surgindo no horizonte prestes a dar início ao período iluminado que durava cerca de 40% do "dia".

Apesar das más expectativas, a viagem foi tranquila, mesmo porque, notaram com certa surpresa, quase todos os locais por onde passaram estavam desertos. Precisaram usar a tração animal quando o vento parou, e ao voltar quando o Sol se pôs, vinha em sentido contrário, com um agravante: trazia forte cheiro de queimadas.

Então avistaram uma multidão se aproximando, mas ficaram tranquilos pela grande presença de sacerdotisas liderando o grupo. NEDIB e EIRAM se apressaram para se comunicar com suas irmãs, e após um tempo de deliberação voltaram para ONURB e RELPEK com boas é más notícias.

- A guerra também está no Primeiro Território, em torno da Cidade dos Antigos. - Disse NEDIB, e EIRAM completou: - Em verdade, a guerra parece ter começado na Cidade dos Antigos, e... - Mas ela se deteve ante um olhar aparentemente repreensivo de NEDIB.

ONURB pareceu sentir que havia algo a mais, mas antes que manifestasse desconfianças NEDIB se precipitou. - Mas a boa notícia é que, como sacerdotisas do Quinto Território, somos bem vindas. - RELPEK, no entanto, foi mais desconfiado que ONURB, e não se conteve. - Por que como sacerdotisas do Quinto Território? O que há de errado com as do Terceiro?

A expressão de EIRAM denunciou que elas não estavam de acordo em postergar mais a informação, e NEDIB permitiu que ela falasse. - Na realidade, a guerra parece ter uma origem religiosa, uma seita do Segundo Território tem ficado cada vez mais popular entre as sacerdotisas da Luz Central, fazendo adeptos no Primeiro e no Terceiro. Embora ainda seja minoritária, tem atraído cada vez mais seguidores, e se misturado com outros problemas políticos.

A medida que iam avançando, o tema foi ficando cada vez mais estranho. Parecia que uma nova interpretação a respeito da doutrina da Luz Central estava levando pessoas, principalmente mulheres, a um suicídio em massa, que tinha o propósito de demonstrar, pela fé, que sua interpretação estava correta. Eram, principalmente, as próprias sacerdotisas dissidentes que cometiam o suicídio, mas cada uma que o fazia, convencia outras a fazer o mesmo. E não só sacerdotisas, mas pessoas leigas, principalmente mulheres, vinham cada vez mais aderindo à prática.

Pesaroso, ONURB não mais se conteve, e já tinha quase certeza de que tipo de suicídio estava sendo realizado.

- Já sei. Elas estão se atirando no Abismo, não?

A RESPEITO DO ABISMO

O Abismo em questão ficava no Primeiro Território, na própria Cidade dos Antigos, bem próximo ao grande laboratório astronômico de SELETOTSIRA. Era uma imensa fenda com pouco mais de um km de largura, em média, e dezenas de kms de extensão, e cuja a profundidade era desconhecida. Muitos acreditavam que era, literalmente, sem fundo.

Expedições científicas de diversos tipos já haviam sido realizadas no sentido de tentar detectar o fundo do Abismo, mas sempre em vão. Mesmo porque, alguns kms abaixo, surgia um nevoeiro, que se intensificava quanto mais se descia, até que, cerca de 20km abaixo, parecia haver um tipo de turbulência.

Era esse o principal motivo da crença de que havia um vazio no interior do planeta, que era, porém, desacreditada porque em nenhum outro lugar do mundo conhecido havia algo parecido. Existiam perfurações sofisticadas que extraíam água e outros materiais de camadas subterrâneas. Bem como havia muito conhecimento e pesquisa a respeito de grandes cavernas e galerias subterrâneas, e nada havia nem parecido com aquele Abismo.

A maioria dos cientistas concordava que em seu fundo devia haver um grande rio, possivelmente muito quente, que explicava os vapores e a turbulência, e isso, por si só, já depunha contra a crença do mundo oco.

Era evidente, também, que quem se lançava no abismo jamais retornava, pois ou encontraria o rio, e o impacto da queda seria de certo fatal, sem falar na provável alta temperatura da água, ou, pior, encontraria rocha sólida. Ou ainda pior, lava.

Mas o maior argumento contra a vacuidade do planeta viera do próprio SELETOTSIRA, que dizia que a quantidade de água presente no subterrâneo é vasta demais, e jorra com força demais, para que existisse um grande vazio subterrâneo. Portanto, abaixo da crosta sólida da superfície, só poderia haver uma grande malha de rios e lagos, muito maiores que os conhecidos na superfície, e abaixo destes teria que haver outra camada de rocha sólida, e abaixo desta, um núcleo de fogo, que aquecia as camadas superiores, dando força e pressão para que as águas jorrassem para a superfície.

Além disso, o maior argumento a favor da vacuidade do planeta nada mais era do que o Livro da LUZ CENTRAL, que trazia crenças antigas de que as almas dos mortos desciam para o mundo subterrâneo, onde viviam em harmonia, o que por si só já contradizia outra passagem, que afirmava que um dia todos contemplariam uma luz em torno da qual o mundo girava, e que por vezes estava relacionada a leituras escatológicas.

O próprio SELETOTSIRA, que era nada menos que casado com ANELADAM, a fundadora da religião do DIVINO CENTRO e autora do Livro da LUZ CENTRAL, declarava que a crença de que se lançar no abismo permitiria chegar ao mundo onde habitam os mortos só era possível porque não se distinguia a radical diferença da matéria densa, que compõe o mundo físico, e da matéria sutil, que compõe a alma.

Com isso, havia o resultado curioso. Atirar-se no abismo de fato levaria à habitação do mundo subterrâneo, mas não porque se poderia entrar em contato direto com esse outro mundo, caso existisse, mas simplesmente porque levaria à morte. Ou seja, seria como afirmar, em nosso mundo, que sair pela janela de um avião a 20 mil metros de altitude, sem equipamento algum, levaria alguém ao Céu. De fato levaria literalmente, ao céu físico, e, caso existisse um Céu espiritual, também, mas pelo simples fato de que a pessoa morreria. A não ser que merecesse o inferno. E, mesmo nesse caso, não seria descendo às profundezas da terra que lá se chegaria, a não ser que isso levasse à morte, etc.

Houve épocas que suicídios eram comuns por parte de pessoas que queriam ir para um mundo melhor. No entanto, tirar a própria vida de forma explícita é sempre muito difícil. Por isso o apelo do Abismo, pois lá ninguém via o que acontecia com os corpos. Não se via o impacto com o solo, ou a água fervendo. Podia-se crer numa queda infinita, supostamente suave, como o vôo de alguns animais.

SEGUNDOS ONGAM

No escuro da noite, foram surpreendidos pelo aparecimento súbito de um exército. Todos tiveram que descer do veículo e se apresentar aos soldados. Houve uma apreensão geral, enquanto as sacerdotisas explicavam serem contrárias à seita que vinha pregando o suicídio em massa, e que nem sequer entendia como isso poderia ser pensável.

Os cientistas ficaram ainda mais receosos, mas enfim decidiram contar exatamente o que vinham fazer. Ao explicar para o chefe dos soldados que tinham como pretensão nada menos do que promover uma experiência científica com o intuito de provar que o mundo se movia, o homem demonstrou nítida surpresa, e passou da incredulidade à esperança, e disse. - Então, talvez vocês possam nos ajudar.

Foi totalmente inesperado o rumo que a viagem tomou. Foram escoltados até uma torre na entrada da Cidade dos Antigos, onde foram levados à presença de ninguém mais do que Segundos ONGAM, o governador do Segundo Território, e atual responsável pela Cidade dos Antigos, que os recebeu com certa perplexidade.

ONURB e RELPEK explicaram toda a situação, e logo ONGAM convocou cientistas de sua confiança, que conversaram longamente com os viajantes, até serem convencidos da validade de sua proposta. Ainda sem entender porque aquilo despertava tanto interesse, e porque aqueles cientistas aceitaram com tanta naturalidade uma idéia que no Quinto Território não era popular, os viajantes não poderiam imaginar o que os esperava.

- Foi a providência do Divino Centro que os trouxe aqui senhores. - Disse solenemente ONGAM. - Vocês parecem ter chegado no momento oportuno para nos ajudar a contornar essa terrível crise.

Os viajantes, incluindo as sacerdotisas, escutaram com atenção a imponente voz do governador.

- Há algum tempo, uma estranha associação de sapientes uniu-se a uma seita dissidente da LUZ CENTRAL. Disseminaram a interpretação de que a paz só virá a este mundo quando não mais estivermos aqui, ou seja, quando estivermos todos mortos. Sem esperança numa melhoria no mundo em que vivem, esses fanáticos optaram por abandonar suas vidas. Apesar de haver cientistas entre eles, ainda assim a grande maioria são mulheres, e aconteceu enfim que a população feminina começou a diminuir rapidamente, e com isso, as tensões masculinas aumentam, prontas para explodir em violência na competição pelas mulheres. Isso gerou intervenções militares no início isoladas, mas então a seita se espalhou para o Segundo Território, e enfim para o Terceiro, quando tomou proporções catastróficas. A guerra teve início porque tive que proibir migrações entre os territórios, pois grande parte delas tinha como objetivo único se atirar no Abismo, e isso acirrou tensões fronteiriças, e velhas divergências que então aproveitaram para se rebelar. Tanto que o próprio motivo da discórdia original, a nefasta união entre a seita de sacerdotisas e sapientes, ficou quase esquecido. Até que, com a guerra, a situação piorou cada vez mais, dando cada vez mais força às crenças que incentivavam o suicídio, e agora muitos estão dispostos a não só se atirar no abismo, mas a morrer tentando.

Após tal explanação, ONURB teve que perguntar. - Mas ainda não entendemos, senhor, qual a relação dos cientistas com tudo isso, e como podemos ajudar.

- Simples. - Repetiu o governador. - A seita suicida das sacerdotisas é antiga, mas só ganhou força quanto um grupo de sapientes pensou ter descoberto o mesmo que vocês, que nosso mundo se move em uma certa direção. Algumas sacerdotisas concordaram com suas companheiras e viram nisso um suporte para a interpretação de que o mundo um dia chegará diante da Luz Central, provavelmente, a grande estrela setentrional, que é a maior do céu. Porém um outro grupo apresentou uma doutrina contrária.

- O tremor da terra? - Perguntou NEDIB.

- Exatamente! - Concordou o governador. - Por aceitarem a interpretação de que o mundo não pode se mover, acreditam que as evidências que sugerem seu movimento só podem indicar o princípio do fim.

- Senhor. Está se referindo à mesma interpretação que era usada para negar a rotação do planeta? - Perguntou ONURB.

Ante a confirmação do governador, RELPEK não se conteve. - Mas isso foi derrubado no momento em que provamos que o mundo girava!

- Só que algumas pessoas nunca aceitaram isso. - Disse ONGAM.

- Mas isso é um total ultraje! - Exclamou ONURB. - Uma afronta à Sapiência!

- Foram algumas conservadoras. Se apegaram ao verso 5466. - Interveio NEDIB. - Esperava que essa resistência ortodoxa, morresse com as irmãs mais idosas.

O Governador novamente interpelou. - O fato é que tal resistência se baseia em um grupo de cientistas fiéis à velha ordem. O que precisamos agora é que os senhores sigam para o astro laboratório e mostrem seus cálculos aos cientistas de lá. Creio que convencendo-os, demonstrarão que o que temos é um movimento constante e autêntico, e não um simples abalo. Espero que assim os ânimos se esfriem e a esperança reacenda.

- Ainda não compreenderam as sutilezas da Inércia. - Disse RELPEK.

- Estamos prontos para ajudar, senhor. - Disse ONURB.

- Ótimo. - Agradeceu ONGAM. - Mas não vai ser simples. Toda a área perto do abismo está um caos. Vou preparar um exército para escoltá-los até o pequeno laboratório do leste, onde podem chegar ao grande Astrolábio por uma passagem secreta. Vamos!

CONFLITO

Adentrar a Cidade dos Antigos em plena luz do dia não foi a experiência maravilhosa que esperavam. Havia ruínas e fogo por toda parte. Colunas de fumaça disputavam a atenção com monumentos milenares, ultrapassando-lhes a imponência de centenas de metros de altura.

No entanto, não foram molestados enquanto caminhavam nas ruas principais protegidos por quase uma centena de soldados. A não ser, é claro, pelas imagens desagradáveis de pessoas removendo escombros e tratando feridos em praça pública. Mais adiante, no entanto, a situação era mais calma, e puderam por alguns momentos apreciar a glória das velhas edificações, que haviam abrigado diversas grandes personalidades da história. Foi sorte passar pela casa onde SELETOTSIRA havia vivido com ANELADAM e ver que ainda estava bem conservada, fora poupada nas batalhas.

Finalmente se aproximaram do laboratório menor e foram recebidos por uma guarnição que protegia o local, e por alguns outros cientistas que estavam profundamente envolvidos na questão. O laboratório não impressionava quem estava habituado com as instituições científicas do Quinto Território, mas a passagem subterrânea era surpreendente. Era difícil crer que um túnel robusto e sofisticado como aquele fosse quase desconhecido das demais pessoas.

Foram horas caminhando por uma rede subterrânea de passagens, algumas bem menores e decadentes, mas o caminho principal permanecia aprazível, iluminado por tochas cujas reações químicas resultavam em chamas brancas, até que finalmente atingiram o acesso ao Grande Laboratório, fortemente vigiado por soldados.

Subiram as escadas em espiral até um pavilhão central, e de imediato puderam perceber sons longínguos de perturbações. Lamentaram não poder apreciar mais longamente aquela experiência. Estar no centro do grande Astrolábio deveria ser um momento de veneração, mas o governador lembrou-lhes a urgência do tempo.

Finalmente chegaram à torre principal de observação, onde já eram esperados por diversos cientistas e sacerdotisas, incluindo representantes das interpretações ortodoxas e cientistas que não aceitavam as novas descobertas. Enfim, a conferência teve início.

Foram longas horas de cálculos, testes, medições, debates. No começo, foi difícil se adaptar às peculiaridades do astrolábio, mas com a colaboração de cientistas locais, foram pouco a pouco verificando suas fórmulas, e a precisão de suas teorias foi ficando mais e mais evidente. Com o cair da noite, puderam aplicar as técnicas e evidenciar a eficácia de suas previsões. Foi com muito alívio e comemoração que, após uma longa deliberação por parte dos céticos, o grupo de sacerdotisas ortodoxas e de cientistas conservadores se rendeu.

Mas a comemoração durou pouco. Embora admitissem que no mínimo haviam perdido os argumentos astrofísicos para negar o movimento planetário, retilíneo e uniforme, dificilmente isso convenceria as massas, que agora já recitavam em voz alta o verso 5466, e mal os conservadores comunicaram isso, sentiram um abalo na torre.

Um canhão havia sido disparado, e outros se preparavam para disparar. Começava agora o impensável. Um ataque maciço contra o grande Astrolábio. Ao subir no terraço mais alto, finalmente RELPEK e ONURB puderam ver, ao longo, o Grande Abismo, onde um grande grupo de pessoas se concentrava.

Na multidão hostil havia faixas, bandeiras e cartazes anunciando o fim do mundo, pintados com tintas fosfóricas e até mesmo em letras de fogo que se destacavam na noite. Os gritos e palavras de ordem deixaram claro que as últimas atividades do Astrolábio não estavam sendo bem vistas, pois pareciam um desafio ao movimento de coristas que, ao longe, entoava o verso 5466.

Lido daquela forma, o verso em questão tinha um aspecto sinistro. Fazia parte de uma das poucas passagens escatológicas do Livro da Luz Central, que advertia que o "movimento do mundo", algo que podia ser interpretado de diversas formas, traria o "fim" da civilização, e que a paz só seria encontrada para aqueles que se apresentassem à Luz Central. Afirmava claramente que nesse momento, lutar contra o "movimento" só levaria à mais sofrimento, e que melhor seria se dedicarem de imediato ao Divino Centro.

Isso era, então, interpretado como uma apologia do suicídio, e situação similar, ainda que em escala menor, já havia ocorrido antes, quando a Sapiência demonstrou que o planeta girava, giro este, que também podia ser interpretado como o "movimento do mundo", cujos demais significados podiam ser um movimento linear qualquer, um ligeiro abalo, ou mesmo um tremor. E terremotos eram muito raros naquele mundo, e sempre de baixa magnitude, jamais causando mais que avarias materiais leves.

O governador decidiu agir. Sabia que grande parte da multidão era de agitadores inconsequentes, que não estavam realmente preocupados com qualquer questão científica ou religiosa. Sabia também que havia agitadores políticos, apenas se aproveitando para enfraquecer seu governo. Assim, ordenou uma vasta operação ofensiva que se iniciou cercando o abismo e dispersando a multidão.

Então, todo o grupo de cientistas e sacerdotisas foi escoltado até uma praça mirante à beira do abismo, onde se reuniam os principais líderes do movimento. Teve início então uma tensa conferência, onde mesmo os recém convencidos colaboraram no diálogo tentando convencer seus pares de que deveriam, no mínimo, cessar as atividades e promover uma reavaliação.

Os cientistas não puderam se negar a considerar os argumentos de seus adversários, e com alguns instrumentos manuais fizeram algumas observações astronômicas. Suspeitando que a teoria do movimento retilíneo do planeta podia ser mais coerente do que pensavam, consentiram em enviar outro grupo ao astrolábio para conferir os dados antes que o dia nascesse.

Os exércitos de Segundos ONGAM haviam conseguido dispersar grande parte da multidão e controlar parcialmente a situação, o que não só impediu novos suicídios, mas permitiu um retorno seguro para o Astrolábio, já parcialmente avariado pelos inconsequentes ataques.

Os 4 visitantes do Quinto Território aproveitaram para examinar mais de perto o famoso Abismo, ante o qual RELPEK e ONURB jamais haviam estado. Era inegável a sensação de temor e admiração. Podia-se sentir uma ameaça de ser tragado, apesar das grades de segurança, se bem que em grande parte destruídas. Mas a idéia de cair lá tinha uma ambiguidade notável. Era aterrorizante, e atraente, ao mesmo tempo!

NEDIB e EIRAM, que já haviam estado em frente ao Abismo antes, não pareciam menos deslumbradas. Ambas, como a maioria das sacerdotisas, já haviam considerado a possibilidade de se lançar nele. Não era exatamente um ato suicida, mas também um tipo de sacrifício. Um martírio associado à idéia de santidade. Quando uma sacerdotisa professava uma crença, e após anunciá-la, saltava no Abismo, dava uma mostra de sua total confiança no valor do que dissera, e isso era considerado um poderoso testemunho, com o poder de convencer as demais pessoas, que consideram um sinal de convicção corajosa e sólida.

Evidentemente que, ao se lançar professando a apologia do simples lançamento em si, promoviam uma reação em cadeia, incentivando mais e mais pessoas a fazer o mesmo.

Finalmente os cientistas retornaram e contaram o irônico detalhe de que os impactos contra a torre na realidade facilitaram as medições, pois haviam deslocado o Astrolábio em alguns graus que terminaram por adaptá-lo melhor à abóboda celeste. Essa constatação parece ter sido mais bombástica do que o simples fato de terem confirmado com grau desprezível de dúvida que o planeta de fato se movia. Na realidade, era a própria premissa de imobilidade que dificultava a detecção do movimento, pois desde muito tempo, o Astrolábio tinha uma fundação fixa, e com o passar das eras, havia sido sim, detectada uma alteração na posição das estrelas.

Tal alteração era associada à idéia antiga de que as estrelas é que se moviam, mas agora perceberam que ao reposicionar o Astrolábio em alguns graus, compensando o alegado movimento estelar, perceberam que era impossível compensar esse suposto deslocamento, e a sutil diferença angular ficou ainda mais óbvia, facilitando a detecção da variação que comprovava um deslocamento na própria posição do planeta.

Esse grande golpe de sorte foi considerado providencial, e os cientistas mais chegados à religião o interpretaram como um sinal divino de que a nova teoria científica devia ser aceita. Com isso, o movimento suicida perdeu o apoio científico. Mas era evidente que as sacerdotisas mais apegadas à crença suicida não seriam tão fáceis de convencer.

Embora tivesse conseguido controlar parte da situação, o governador sabia que somente convencendo as líderes da seita e seus seguidores poderia deter totalmente a crise, e isso incluiria abaixar os cartazes luminosos com palavras de ordem. Não podia, porém, fazê-lo à força, e como os argumentos científicos não pareceram ter sido suficientes, a solução agora estava nas mãos de NEDIB e EIRAM.

- Irmãs! - Proclamou NEDIB, no mesmo local onde, eras antes, ANELADAM fizera pregações que deram início à religião da Luz Central. - Houve aqui um grande erro de interpretação. A palavra "movimento" do verso 5466 pode ser interpretada facilmente como "tremor", e dizer respeito a um abalo sísmico que prenunciará a desintegração do solo sob nossos pés. Isso não está acontecendo agora, e mesmo quando acontecer, isso não levará ao "fim" existencial de nossa civilização no sentido de sua destruição, mas sim ao "fim" no sentido de "Finalidade". Significa que mesmo que estivéssemos em pleno tremor da terra, estaríamos apenas chegando ao movimento crucial de nossa história, onde todas as questões serão resolvidas e todos os mistérios revelados. Nesse dia, a Luz Central nos arrebatará à sua presença. Não temos necessidade de nos lançar no Abismo, pois quando nossa hora chegar, o Próprio Divino Centro nos convocará! Portanto, eu peço agora que...

O sol já vinha alto, iluminando o grande abismo, quando os primeiros sinais de sucesso do discurso puderam ser percebidos. EIRAM também participou, e seu depoimento tinha um valor diferente, por se tratar de uma sacerdotisa mais jovem. Embora a experiência das mais idosas fosse respeitada, a precocidade das mais jovens também tinha poder de sedução, especialmente quando eram consideradas muitíssimo dedicadas.

A situação parecia estar se encaminhando para uma resolução tranquila. NEDIB e EIRAM se alternavam, respondendo com paciência e eficácia as objeções de suas adversárias. Finalmente, tal como antes houvera a vitória do consenso científico, havia agora o consenso filosófico surgindo. No entanto, nem só de evidências físicas e matemáticas, e de argumentos filosóficos e religiosos, vivem as pessoas. Faltava agora, conquistar os sentimentos do povo, promover o "milagre", o grande gesto de dedicação e esforço.

O sacrifício.

E foi, nesse momento que EIRAM, após olhar fixamente para RELPEK, e lhe pedir perdão, e sabendo que seu gesto teria mais valor simbólico que o de sua mestra, por ser mais jovem e ter mais vida pela frente, anunciou em voz alta sua convicção em tudo o que haviam acabado de dizer. E num gesto apoteótico, antes que pudessem fazer qualquer coisa, posicionou-se à beira do Abismo, abriu os braços, e se antes ainda restavam algumas dúvidas, essas se desvaneceram quando ela jurou sentir em seu peito o chamado da Luz Central.

- EIRAM! Oohh... - NEDIB teve que se conter ao ver sua discípula despencar para as desconhecidas profundezas. Não poderia chorar agora, mostrando sinais de fraqueza, e teve que demonstrar estar também convencida de que sua pupila fizera o certo.

Por sua vez RELPEK ficou desesperado, não podendo crer no que via. Se aproximou da beirada vendo sua paixão se afastar numa velocidade assustadora. Foi tomado pelo pânico, pela revolta, pelo arrebatamento, e então sua mente se anuviou. Ficou tonto, e mal saberia dizer para si próprio se caiu inadvertidamente, ou se desejou se lançar atrás de sua amada.

- RELPEK!!! - Gritou ONURB. Sem preocupação alguma de conter o choque. Paralisado pelo susto, pela dor e pela revolta, não sabia o que dizer.

Mas o sacrifício da jovem foi impactante, e talvez ainda mais o do cientista, e as últimas resistências da multidão foram vencidas por aquele poderoso ato simbólico. Os cartazes foram abandonados, alguns foram rasgados. O sacrifício fizera um efeito ainda mais forte do que a própria EIRAM esperava.

Segundos ONGAM não pôde deixar de intervir, falando aos únicos dois representantes do Quinto Território que restavam. - Meus amigos. Lamento pelo sacrifício de seus amigos, mas a Luz Central tem seus motivos, e em sua sabedoria, pôs fim à revolta. Garanto-lhes que pessoalmente providenciarei que sejam erguidas grandes estátuas em memória de EIRAM e RELPEK.

E o sol agora incidia diretamente sobre o abismo, mas nem mesmo seus raios mais potentes eram capazes de revelar os profundos mistérios ocultos nas entranhas da terra.

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Marcus Valerio XR
Setembro de 2008

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