Segunda
Parte
Por uma
ESTÉTICA DOURADA

Marcus Valerio XR

Anexo I

 

 

  TERCEIRA PARTE

 

 

  INTRODUÇÃO
A UMA TEORIA
EMPÁTICA DA ÉTICA

 

 

 

OUTRA INTRODUÇÃO

Um dos episódios hilários de minha infância se deu quando eu começava a pré alfabetização. Já munido da capacidade de escrever as vogais, e com a presunção típica de quem acabou de aprender algo novo e age como se já fosse um especialista, eu discutia com um coleguinha um pouco mais velho sobre a grafia correta da letra ‘i’. Ele insistia em escrevê-la invertida, como um ponto de exclamação, e eu insistia no contrário, até que acabei cedendo à sua autoridade, visto que tinha um ano ou mais do que eu, e já sabia escrever as primeiras palavras.

Mas eu não estava errado. E nem ele! Só muito depois, me lembrando do episódio, me dei conta de que estávamos sentados um de frente para o outro, e com a mesa e o papel entre nossas cadeiras, portanto, ambos escrevíamos a letra da mesma forma, e a posição nos fazia ver a escrita um do outro invertida. Ou seja, nossos “pontos de vista” eram distintos e não tínhamos consciência disto, houvesse alguém para nos alertar do pequeno inconveniente, teríamos concordado de imediato.

Penso que isso ilustra o problema dos desentendimentos gerados não pela discordância das idéias num sentido mais específico, mas sim pela dificuldade de conseguir se colocar na condição do outro. A diferença dos pontos de vista pode arruinar o entendimento entre pessoas que, se estivessem vendo a questão do mesmo ângulo, poderiam concordar integralmente.

Embora seja aparentemente impossível incorporar por completo a percepção de uma outra pessoa, pois duas subjetividades só poderiam se alinhar perfeitamente se tornando uma única, é seguramente viável aproximá-las o suficiente para eliminar os problemas relativos a meras contingências comunicativas e interpretativas, e com isso se concentrar nas discordâncias mais essenciais.

É possível que mesmo essas pudessem ser eliminadas em aproximações ainda mais intensas, no entanto, há um limiar ao qual nunca admitiríamos, ainda que fosse possível, tamanha intimidade, pois nosso senso de individualidade pode ser suficientemente resistente para saber quando estamos deixando de ser nós mesmos, e assumindo uma perspectiva alheia que, por mais que possa ser útil, jamais fará jus à nossa experiência. Onde esse limiar se coloca, fica em aberto, a ponto de algumas pessoas permitirem aproximações tão grandes que chegam a ter sua individualidade alterada, outras o colocam tão distante que não permitem qualquer forma de entendimento.

Quanto maior for a semelhança entre duas pessoas, maior a possibilidade de compreenderem umas as outras, e se nossas mentes sempre guardarão distâncias intransponíveis entre si, por sorte, há convergências suficientes para permitir que sempre compartilhemos visões em grau suficiente para tornar nossas existências mais integradas e solidárias, e nesse sentido, o conceito de empatia se torna nuclearmente relevante.

Os humanos são mais similares entre si em seu princípio do que em sua realização, isto é, dois bebês são muito mais similares do que dois adultos, e a possibilidade de que uma mesma coisa agrade a ambos diminui na razão direta de sua idade. Um dos motivos mais significativos para isso é que a medida que nos desenvolvemos, vamos acumulando conteúdos mentais cujas possibilidades combinatórias são incomensuravelmente mais vastas do que as de nossa mera arquitetura física. Somos também muito mais parecidos fisicamente do que mentalmente, não por uma diferença essencial, mas pela versatilidade da virtualidade mental. É muito mais provável que consigamos agradar a duas pessoas quaisquer oferecendo-lhes atrativos materiais do que culturais, e mesmo nesse ponto a possibilidade aumenta a medida que diminui a idade. Dois adultos podem até discordar sobre sua aceitação de um suco de frutas, mas dois bebês jamais recusarão leite.

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Há também outra curiosa assimetria: Os humanos tendem a ser muito mais parecidos em suas percepções desagradáveis do que nas agradáveis. Duas pessoas poderão discordar sobre que tipo de iguaria ou de perfume apreciam, mas em geral concordam em desgostar dos odores repulsivos mais óbvios. Somos muito mais parecidos na dor do que no prazer, e é, muito provavelmente, por isso que enunciar preceitos éticos no sentido negativo (“não fazer isso”) costuma obter muito mais concordância do que no sentido positivo (“fazer aquilo”).

Poderíamos então dizer que o que nos torna realmente “iguais” são nossas vulnerabilidades, é por isso que nada mais parece unir as pessoas do que o sofrimento. Mesmo aqueles que se odeiam tendem a ficar sinceramente comovidos quando um está passando por uma dor que seguramente também faria sofrer o outro.

Tudo isso também tem uma razão muito simples. É que por buscarmos o prazer e o bem estar e fugirmos da dor, nos tornamos muito mais interessados em formas variadas de satisfação. Estamos dispostos a experimentar os mais distintos modos de receber carícias, mas não temos disposição de experimentar novas formas de se machucar. Podemos ter dificuldade em entender que alguém aprecie o sabor de uma buchada por não compartilharmos da mesma sensibilidade. Mas não há qualquer dificuldade em entender que alguém deteste o sabor de óleo de fígado de bacalhau porque nesse caso nossas sensibilidades coincidem.

Portanto, entendemos que devemos ancorar a igualdade humana sempre em suas necessidades fundamentais, e permitir sua liberdade nas necessidades mais sofisticadas, embora, historicamente, tenha ocorrido com frequência o contrário, com pessoas nascendo em condições de desigualdade radical, e sendo posteriormente igualadas à força da doutrinação cultural.

Um sistema ético deve então focar o que há de mais similar entre nós, apelando para instâncias onde nunca ou raramente discordamos. Esse núcleo estará intimamente ligado às sensibilidades mais profundas, e coincide ainda mais ao dar atenção a nossas fraquezas e vulnerabilidade ao sofrimento.

Mas mesmo isso poderá ser de difícil compreensão se não houver de imediato um compartilhamento maior do ponto de vista. Segue-se, então, uma descrição autobiográfica que espero possa ajudar ao leitor a entender melhor a subjetividade deste que escreve.

Marcus Valerio XR

Janeiro de 2010

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UM SISTEMA FILOSÓFICO

Somente enfraquecendo a própria individualidade é possível a um filósofo assumir por completo um sistema já pronto e se tornar puro seguidor de algum pensador prévio. Raramente acontece na filosofia, sendo mais frequente nas religiões e ideologias políticas. Mais comum é uma absorção de grande parte, mas a conservação de uma visão pessoal que embora ainda autorize ao seguidor se considerar um fulaniano, um siclanista ou um beltranélico, permite ainda grande manobrabilidade dentro do universo de possibilidades abertas pelos mestres, permitindo ao discípulo expandir os horizontes e ser um bom contribuinte de tal linha de pensamento.

Mas àquele que não consegue se enquadrar o suficiente em nenhum sistema pronto a ponto de poder ser considerado um devido representante de uma tradição específica, restará a tarefa de construir um sistema próprio, sem o qual dificilmente conseguirá fazer-se entender, não apenas por não ter conseguido o auto entendimento, mas porque poucos serão o leitores que estarão dispostos a decifrar um sistema que não se enquadre numa tradição canônica, ainda havendo o risco de ser interpretado como pertencente a uma, devido a possíveis similaridades contingentes.

De certo modo, a maioria dos filósofos produz seus próprios sistemas, mas por vezes estes não são explícitos, exigindo um trabalho de dedução para que se apreenda devidamente a sua filosofia. Autores famosos têm a vantagem de possuir legiões de comentaristas que ajudarão a esclarecer seu pensamento, não raro num nível que os próprios autores não previam. Mas aquele que não tem tal privilégio, e principalmente se não tem perspectivas de vir a tê-lo, não terá outra opção a não ser explicar o seu sistema com clareza se quiser ser entendido como pretende.

É o que tenciono fazer aqui. Esta teoria ética exigirá uma prévia autobiografia que permitirá a visualização do sistema de pensamento por trás de toda proposta. Sem essa explicitude, uma plena compreensão da teoria ainda é possível, mas muito mais sujeita a erros que poderiam ser evitados, o que seria uma falta de consideração com os que se dispuserem a lê-la. Ademais, com tal explanação, espero permitir uma cadeia de deduções justificadas de um modo razoavelmente espontâneo.

Meu sistema filosófico se baseia em seis conceitos chaves. Pela ordem: CETICISMO, EGOCENTRISMO, ANTROPOCENTRISMO, HUMANISMO e PROGRESSISMO, e um OTIMISMO subjacente que não necessariamente se encaixa num ponto específico da sequência, exceto, talvez, por não poder preceder o Ceticismo. Também são marcantes duas características que poderiam ganhar um lugar de maior destaque na sequência, que são um Individualismo inicial e um perpétuo e inflexível Internalismo, mas creio que eles são necessariamente decorrentes do Egocentrismo, enquanto todos os demais são decorrências alternativas, contingentes.

Vejamos então uma exposição sequencial e autobiográfica dos conceitos.

 

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CETICISMO

Há milhares de anos os filósofos já deixaram clara uma esquematização das formas pelas quais obtemos informações, que classifico aqui como Sensorial, Testemunhal e Intelectiva. Estão na ordem em que se apresentam ao ser humano, pois um bebê já começa a conhecer seu mundo pelos sentidos, mas somente com a aquisição da linguagem poderá usufruir dos depoimentos diretos e indiretos que são nossa maior fonte de informações.

Embora a capacidade de raciocinar já exista em algum grau em paralelo com a capacidade sensorial e a linguística, somente num estágio posterior ele atingirá massa crítica suficiente para se emancipar e então possibilitar que o pensamento próprio assuma um lugar de maior importância, e se possível, da maior importância.

A maioria das pessoas jamais desenvolve essa possibilidade a tal ponto. Mantendo o testemunho, ou às vezes até os sentidos, como sua maior fonte de informações. Mas é típico do filósofo transformar, ao menos durante parte de seu processo de amadurecimento, o raciocínio próprio como um referencial maior que passará a julgar os demais, a ponto de que a mais respeitável autoridade acadêmica não seja capaz de subjugar a razão individual a ponto de lhe fazer aceitar o que pareça ilógico.

Muitos fortalecem a prática do pensamento crítico apenas o mínimo necessário para o amadurecimento, outros o suficiente para se tornarem produtores de novos conhecimentos, e alguns terminam por exceder os limites do necessário e flertarem com a destruição total de toda a qualquer forma de conhecimento testemunhal ou sensorial. Este último foi o meu caso.

Há mais de uma década, numa breve mas necessária viagem ao estilo cartesiano 16 e husserliano (antes de conhecê-los), estabeleci algumas concepções que mantenho até hoje. A mais fundamental é a crítica das certezas, e sua categorização em grupos que, somente recentemente, acharam nomes mais adequados.

Há dois grupos de certezas concebíveis. Existenciais e Essenciais. As primeiras, que também podem ser chamadas de fenomênicas, dizem respeitos aos eventos inevitáveis que se apresentam à existência. As segundas a conceitos que estariam além destes fenômenos. Apenas as primeiras podem ser Absolutas, e somente três delas de fato o são.

1 - Eu existo;

2 - Eu interajo com um Universo fenomênico;

3 - Esse Universo está, em sua maior parte, fora do meu controle imediato.

A primeira, similar ao cogito cartesiano, preferi simplificar e considerar como o núcleo da existência de uma Mente, dispensando termos como Alma ou Espírito. Não importa se essa mente seja um mero subproduto de funções cerebrais ou uma entidade imaterial isolada num mundo onírico. A segunda envolve todos os fenômenos que se dão nessa mente, que é o sujeito, e também pode ser objeto.

E a terceira é a constatação óbvia de que apesar de controlar parte desse universo, como parte do meu corpo, meus pensamentos e alguns elementos à minha volta, quase tudo nesse universo se comporta à minha revelia. Se a explicação para a origem desta terceira certeza se origina do fato dos fenômenos derivarem ou não na mesma fonte onde se aplicam às duas primeiras, a mente, é a incógnita inicial.

Essas constatações são importantes na medida em que são as únicas Certezas Absolutas possíveis. A negação da terceira exigiria que eu possuísse super poderes; da segunda que eu não tivesse qualquer tipo de relação e não experimentasse qualquer tipo de fenômeno, inclusive os que me permitem detectar a primeira; e esta primeira é impossível de ser negada por qualquer


16. O Núcleo da Realidade, www.xr.pro.br/Exeriana/Solipsis.html

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meio, lembrando que no máximo pode-se negar alguns de seus elementos ou atributos, mas jamais de que, no momento presente, exista um Eu, um núcleo desta mente, que associado a outros elementos mentais constituem um indivíduo. Mesmo sendo este ‘Eu’ ilusório, tal ilusão tem que se dar em algo17. E é esse algo mínimo que estou considerando o núcleo de uma Mente.

Fora disso, a Certeza Absoluta é impossível. Mas há inúmeras certezas existenciais baseadas nas regularidades observadas. Embora minha impossibilidade de respirar água não seja uma certeza absoluta, pois posso estar imerso numa ilusão, ela é existencialmente coerente o suficiente para ajudar em minha ação e manutenção no mundo fenomênico, não havendo qualquer proveito em pô-la em dúvida.

As Certezas Existenciais, ou Fenomênicas, são todas aquelas que se baseiam na regularidade e dedução devidamente apoiadas na experiência, e que se dão no âmbito fenomênico. Além das três iniciais, qualquer outra não pode ser absoluta porque nada me permite garantir que eu não viva num universo fundamentalmente ilusório que num certo momento se revelará como funcionando de um modo diferente do que me acostumei por meio de minha experiência. Nada me permite negar Essencialmente o Gênio Maligno Cartesiano, a Matrix Digital, o Véu de Maya.

E então entramos na Categoria das Certezas Essenciais, que é rotulada apenas para ser rejeitada. Não são possíveis porque diriam respeito a coisas além da experiência fenomênica. Não posso ter certeza de que não exista o Gênio Maligno, bem como não posso ter certeza se existe Deus, se continuarei existindo indefinidamente ou não, se meu passado é real ou ilusório, se há um mundo transcendente ou sequer se existem outras mentes. Portanto, além das três Certezas Absolutas, todas as outras, as Existenciais, serão relativas, e me privarei de quaisquer Certezas Essenciais, que, curiosamente, têm sido reinantes em toda a história do pensamento.

As Certezas Essenciais só poderiam ser obtidas, se pudessem, por meios diretos, além da razão, e é possível considerar que as três certezas existenciais absolutas, pelo menos a primeira, sejam também, de certa forma, essenciais. Mas por questões terminológicas prefiro evitá-lo, visto que o meu ceticismo deve ser encarado principalmente como uma crítica das certezas, e em especial pela rejeição das Certezas Essenciais, que tem sido tão atuantes em nossas crenças populares, místicas, acadêmicas, metafísicas e mesmo científicas.


17. Minha concepção é distinta da criticada por Hume no Tratado, Livro I, Parte IV, Seção VI- “Da Identidade Pessoal”, principalmente pelo fato de não considerar o Eu como uma Identidade, mas como uma Continuidade, que é necessariamente temporal, mutável e dinâmica. Minha “teoria da mente”, se é que merece ser assim chamada, identifica-se com uma “teoria do eu”, que é mais desenvolvida, ou melhor, desenvolve, a temática das monografias sobre Meta-Continuidade Mental, em www.xr.pro.br/monografias/MCM1-Fedon.html e www.xr.pro.br/monografias/MCM2-DE_ANIMA.html.

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EGOCENTRISMO

Esse mergulho profundo no Ceticismo levou à detecção do problema da possibilidade do Solipsismo, que estou convencido ser de impossível refutação. O Solipsismo, nesse caso, explicaria a Terceira Certeza apelando para outra instância da minha mente, uma parte inconsciente. O Ego 18 não teria controle direto sobre a maior parte do mundo porque a maior parte de sua mente, que está fora do Eu, sabota tal controle. Seria como num sonho, onde por vezes, mesmo sabendo que estou sonhando, não consigo controlar todos os fenômenos à minha volta.

Embora tal possibilidade seja irrefutável, não pode também refutar outras explicações, e o caminho da dúvida mostrará que o solipsismo é perigoso demais para ser vivenciado pragmaticamente. Ainda que, por postular uma única mente, e nada mais, seja a hipótese mais econômica, é mais prudente seguir a possibilidade de que ele seja apenas uma ilusão incômoda devido à nossa impotência epistêmica, isto é, nossa incapacidade demonstrada para conhecer plenamente o real da forma como gostaríamos.

Na monografia Hermenêuticas Solipsistêmicas 19, esquematizei que todas as nossas visões sobre a estrutura básica do Universo podem ser enquadradas como rotas de fuga do solipsismo, que embora permaneça como impossível de ser racionalmente rejeitado, deve ser então contornado pragmaticamente. Essas rotas são pressuposições arbitrárias de alguma natureza fundamental que sirva de alternativa à hipótese solipsista, fornecendo outras explicações para a Terceira Certeza Absoluta. Tais explicações seriam:

1 - Existência independente da Matéria, que torna o mundo fenomênico uma manifestação mecânica, não intencional, do mundo material, que escapa ao controle do eu por ser essencialmente separado;

2 - A existência de outras mentes independentes, mais poderosas, que controlam os demais fenômenos, hipótese invariavelmente concebida como a existência de divindades;

3 - Existência de intencionalidade associada à matéria. O mundo fenomênico teria uma existência independente voluntária. Uma forma de Panpsiquismo, ou Panteísmo. A diferença em relação à primeira é a característica intencional de fenômenos que na hipótese 1 são puramente mecânicos;

4 - Existência de outras mentes numa relação de intersubjetividade, que interferem se entre si de modo a impedir que apenas uma consiga controlar eventos que estão sendo sustentados pela maioria das outras. A estabilidade e regularidade dos fenômenos não controlados seriam resultado da inconsciência da maioria das mentes que estariam, cada qual, numa situação análoga à solipsista.

Todas estas hipóteses podem ser combinadas em graus diferentes, ou podem ser radicalizadas, de modo que suas radicalizações são o Materialismo, o Teísmo, o Panpsiquismo e o Monismo Mentalista, que prevê a existência essencial das mentes e sustenta que o universo fenomênico é uma projeção compartilhada.

A impossibilidade de decidir além de qualquer dúvida entre qualquer dessas 5 hipóteses, o Solipsismo e suas 4 rotas de fuga, leva ao impasse epistêmico que caracteriza o CETICISMO crônico deste pensador, o primeiro conceito de meu sistema de pensamento. Não sendo possível dar um único passo seguro para fora da própria experiência subjetiva, consolida-se o Egocentrismo, que é o resultado inevitável do impasse epistemológico: Concluir que a única referência confiável é o EU.

Como consequências imediatas, ocorre um forte Internalismo, recusando qualquer forma de externalismo em Teoria do Conhecimento ou Filosofia da Mente, e também um forte Individualismo, principalmente no sentido intelectual.


18. Para qualquer fim trato ‘Ego’ e ‘Eu’ como sinônimos, alterando-os apenas para efeito de variações estilísticas.
19. www.xr.pro.br/monografias/SOLIPSISMO.html

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Como poderia confiar em realidades externas em detrimento de qualquer realidade interna se esta última é a única que admite a certeza absoluta? Como exemplo, todos os dados que sugerem que minha existência e sensciência cessarão com a morte de meu corpo se baseiam na hipótese Materialista, mas esta é apenas uma das possibilidades alternativas ao solipsismo, que normalmente inclui a negação de qualquer autonomia dos fenômenos em relação à mente. Se é fato que EU existo, porque admitir como certo um sistema que não só pressupõe minha prévia ou futura inexistência como sequer parece compatível com tal existência?

Algo similar pode ser dito da hipótese inversa e também dos principais pressupostos do teísmo clássico. É irrefutável apenas minha existência momentânea, sendo impossível sequer demonstrar que a mesma possa ser perpétua ou pode preceder o alcance de minhas memórias. Se sequer posso ter certeza essencial do mais trivial evento físico, como posso ter sobre algo tão metafísico quanto uma divindade ou um plano espiritual?

Mas embora nenhuma das rotas de fuga tenha a capacidade de refutar o Solipsismo, a número 4, o Monismo Mentalista, tem ao menos a capacidade de neutralizá-lo, pois não há diferença essencial entre:

a) Uma Única Mente gerando a ilusão de Um Universo repleto de Mentes;
b) Um Universo repleto de Mentes que geram a ilusão de Uma Única Mente.

Assim, a possibilidade 4 conserva a vantagem econômica occaniana do Solipsismo Puro, de que todos os fenômenos se dão num universo mental. Por outro lado, há diferenças cruciais entre o Solipsismo e as 3 primeiras rotas de fuga, pois a primeira concebe a existência da Matéria, a as demais de Mentes de uma outra ordem, diferentes da única que de fato conheço, que é a minha, quer sejam transcendentes ao fenômeno, hipótese 2, ou imanentes, hipótese 3. Dizendo de outra forma, a hipótese 4, não postula entidades de outra espécie que não a única à qual cabe uma Certeza Absoluta.

A possibilidade 4 ainda pode, evitando a radicalização Monista, ser combinada com qualquer uma das demais sem perder sua característica básica, que é a existência de uma realidade mental coletiva. Podemos pressupor que exista em paralelo um mundo físico real sem ter que abandonar um mundo mental real, e o mesmo pode ser dito das demais possibilidades. Por outro lado, a escolha prioritária de uma das demais possibilidades pode por em risco, ou ao menos relegar ao segundo plano a possibilidade da realidade mental, que é, como já vimos, a única Realidade Absoluta, e a nossa fonte principal de experiências.

Mais. O Mentalismo também pode emular as demais possibilidades, incorporando-as em si próprio sem alterar-lhes as características essenciais. Se mentes podem produzir um mundo ilusório, podem fazê-lo em densidade tal que este seja indistinguível do mundo físico e suas rígidas regularidades, bem como pode emular divindades pessoais ou impessoais.

Enfim, nada disso tem qualquer pretensão de elaborar uma teoria da natureza (exceto para efeito de literatura de ficção científica), mas sim somente uma base epistemológica justificada, autônoma, e independente de compromisso com qualquer teoria prévia, ainda que incorporando elementos afins.

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ANTROPOCENTRISMO

A importância do EU, uma vez diluída numa hermenêutica que pressupõe os Outros, inevitavelmente envolve uma importância do NÓS. Somente os seres senscientes 20 aparentam ter as mesmas possibilidades mentais do Eu. Uma vez que minha mente é Real, e que posso pressupor a realidade de outras mentes, seria incoerente não transferir à elas importância equivalente, de modo que minha própria mente passa a ser considerada como apenas uma representante de uma ‘espécie’ muito mais ampla.

Assim, o centro de universo deixa de ser o EU para se tornar os múltiplos EUs de todos os seres senscientes. São a medida do mundo, os juízes dos fenômenos e os autores das estruturas conceituais que se tornarão os pólos geradores de todo o significado universal. Independente da natureza essencial da realidade, quer seja um mundo material onde evoluíram cérebros capazes de implementar mentes, ou um mundo mental onde evoluíram estruturas mentais capazes de implementar matéria, continua ocorrendo o local privilegiado das mentes em vivenciarem os fenômenos de um modo que aparentemente, nenhuma outra coisa pode fazer.

Ora, essa espécie é o que consideramos a espécie humana. Ainda que reconheçamos diversas semelhanças entre nossas mentes e as possíveis ‘proto mentes’ dos animais, somente os antropônicos 21 apresentam inequivocamente comportamentos que nos permitam inferir mentes, e com os quais podemos nos espelhar.

Não apenas minha mente produz símbolos, mas um coletivo de mentes que constroem um mundo de conteúdos e significados. Tudo o que é pensável é gerado por esse centro ordenador, antropônico, que se torna a origem e o destino do universo cultural 22.

Todos os valores, conceitos e relações são sua propriedade exclusiva, ainda que muitas vezes, devido a complexidade de suas criações, surja a ilusão de centros irradiadores externos, que embora possíveis, jamais serão seguros, não podendo constituir tipo algum de certeza, nem mesmo existencial, e muitíssimo menos essencial.

Enquanto a simples existência antropônica, análoga à do ego, em si, já é uma certeza existencial apoiada pela regularidade da experiência, a existência adicional de divindades, espíritos imateriais ou entidades físicas inexperienciáveis diretamente pelos sentidos, não podem ser certezas de ordem alguma. É curioso que muitas vezes se tenha invocado para as mesmas o estatuto de verdades absolutas.

Num sentido mais direto, vejo esse Antropocentrismo como a noção de que todo o universo cultural, linguístico e conceitual gira em torno deste centro de gravidade, os múltiplos Eus que geram e ou ordenam o universo cognitivo.


20. Utilizo o neologismo ‘sensciência’ (senSciência) no sentido de auto-consciência, noção de individualidade e capacidades cognitivas básicas. É diferente do termo ‘senciência’, normalmente usado para qualquer ser capaz de ter sensações específicas como dor e prazer, ainda que esse termo seja no mínimo dispensável, visto que ‘sensibilidade’ poderia equivalê-lo. Já sensciência, vai ao encontro de significações adicionais do termo inglês sentience, que incorpora também elementos de self-awareness ou self-consciousness. Por fim, evito o termo consciência devido a sua múltipla significação, que abrange no mínimo 5 sentidos: sensorial, epistêmico, auto consciêncial, moral e místico.
21. Do grego antropos, uso o neologismo antropônico para se referir à espécie biológica Homo sapiens.
22. Uso ‘cultura’ no sentido antropológico e sociológico dominante, seja, a totalidade da dimensão metabiológica humana: linguagem, crenças públicas, superstições, valores, mística, arte, filosofia, ciência, etc.

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HUMANISMO

A diferença essencial entre este e o anterior é que o Antropocentrismo se dá mais num sentido referencial, os antropônicos ocupam posição privilegiada no universo. Já o Humanismo diz respeito a toda a produção assumidamente gerada pela atividade Antropônica, agora já investida de certa superveniência, que preconiza valores e conceitos assumidamente diretos, isto é, produzidos pelos próprios antropônicos.

Por exemplo, o cristianismo é uma produção antropônica, mas não humanista, porque pressupõe ser resultado de ação não-antropônica, no caso, divina. Muitas outras tradições, conceitos e elementos culturais que quase certamente são resultado da ação dos antropônicos, se revestem de origem transcendente, imanente, alienígena, etc, resistindo, por vezes duramente, a qualquer abordagem que as trate como produto de complexidade cultural histórica.

Nesse sentido, o Humanismo é uma produção antropônica assumidamente gerada pelo, e para, os únicos humanos que conhecemos, os antropônicos. Embora em nosso contexto atual seja possível a equivalência entre Humanismo e Antropocentrismo, as próprias palavras já sugerem sua diferença, uma vez que não usamos, em sentidos equivalentes, os termos humanocentrismo ou antropismo.

Humanidade é também um conceito mais amplo do que “Antropocidade”, daí sua superveniência. Ser antropônico é fazer parte de uma espécie biológica com características definidas, Homo sapiens. Ser humano pode ser concebido como algo mais. Como exemplo, se descobrirmos seres senscientes extra terrestres com plena capacidade de se comunicar e interagir conosco, até mesmo apresentando afinidades a ponto de gerar grande identificação, poderíamos então estender a eles o conceito de humanidade, mas não o de antropocidade. Seres senscientes de hipotéticas espécies diferentes da nossa, naturais ou artificiais, podem ser considerados humanos, nunca antropônicos.

Além do mais, dependendo das capacidades cognitivas, sociais ou éticas serem desenvolvidas ou não, pode-se negar o estatuto de humanidade a certos representantes da espécie Homo sapiens, mas jamais o de antropônico. Quando se nega a humanidade de um cruel assassino, não se está negando, sob ponto de vista algum, que ele seja um autêntico representante de nossa espécie biológica em sua constituição física.

O senso comum, em geral, costuma representar ao menos três significados diferentes com a expressão ‘humanidade’, um de ordem ética, um de ordem intelectiva, e outro, mais básico, de ordem puramente física, que é, no caso, o antropônico. Penso que utilizar tal terminologia, ou similar, para distinguir ao menos este último significado dos demais poderia eliminar metade de nossas confusões em discussões a respeito de aborto de anencéfalos ou pena de morte para crimes hediondos.

Em síntese:

- Ser Antropônico é ser da espécie biológica, Homo sapiens;

- Ser Sensciente é ter condição mental, consciência de si, individualidade, cognição;

- Ser Humano é ter a dimensão cultural mais abrangente, que pode incluir condições sociais e intelectivas mais sofisticadas.

Um homem selvagem, por exemplo, que tenha sido criado fora da sociedade ao estilo Tarzan ou Mogli, continuará sendo Antropônico e Sensciente, mas sua Humanidade pode ser disputada.

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Os termos Antropocentrismo e Humanismo ainda podem ser desconectados de outros modos. Se conhecermos sensciências não antropônicas, podemos continuar humanistas mesmo sem privilegiar os antropônicos como o centro de todos os interesses. Também é possível ser um antropocêntrico não humanista, no sentido de apenas privilegiar o lugar da espécie antropônica, porém sem os desenvolvimentos mais sofisticados de um humanismo que, mesmo antropocêntrico, não despreze as necessidades de seres não antropônicos (ainda que nesse caso seja difícil detectar ou mesmo expressar o conceito de antropocentrismo, visto que isso exigiria uma construção cultural mais avançada). No entanto, na nossa condição atual, um humanista normalmente será um antropocêntrico, ainda que possa não se dar conta disto.

Sintetizando, podemos dizer que somos, fundamentalmente, antropônicos. Nada pode mudar isso, está em nossa constituição genética e estrutura física. Normalmente, somos senscientes, mas é possível um antropônico não possuir consciência de si, noção de ‘eu’ ou as capacidades cognitivas mais básicas, e de fato, nenhum de nós as possuía até certa idade.

Um bebê nasce antropônico, sua sensciência se consolida em algum momento de sua primeira infância, exceto em alguns possíveis casos de sério comprometimento cognitivo. Já sua humanidade é um tanto mais tardia, sendo em geral consolidada ainda na infância ou pré-adolescência, mas havendo alguns casos onde jamais se consolida, como no caso de outras deficiências mentais menos graves do que as que impedem a mera sensciência.

Num nível ainda mais amplo, somos humanos no sentido de levarmos essa sensciência a desenvolver conceitos que estendem nosso universo a níveis que vão muito além dos fenômenos, desenvolvendo uma complexa rede de conceitos que constituem nossa vasta cultura. Ao assumirmos nossa produção cultural como obra nossa, estamos enfim assumindo plenamente nossa humanidade.

Entendo esse humanismo, então, como a tomada plena de responsabilidade pela própria existência. Não podemos nos esquivar de sermos nossos próprios algozes e benfeitores, deixando de lado as convicções de que somos descendentes de divindades ou temos obrigações a cumprir que vão além da humanidade. Somos nossos próprios juízes e tutores, e não nos cabe responsabilizar nenhuma instância além de nós mesmos. Assumir então as rédeas do processo histórico, ao invés de acreditar em forças invisíveis intencionais nos manipulando, é o que caracterizo aqui como a essência desse Humanismo. De certo que somos largamente dirigidos por forças inumanas, mas fundamentalmente irracionais, sem qualquer intencionalidade. Somos pressionados por instintos de ordem natural, por necessidades biológicas, condições ambientais e ainda mais por nossas tradições culturais e atitudes de nossos semelhantes. Mas nada disso nos permite ceder a um fatalismo que coloca fora de nossas mãos a construção de um futuro irrevogável.

 

 

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PROGRESSISMO

Vimos uma posição essencialmente Epistemológica, Ceticismo, seguido por duas epistêmico-psicológicas, Egocentrismo e Antropocentrismo, e uma psicológica-cultural, Humanismo. Chegamos numa posição de caráter ético-político, que finalmente apresenta posturas concretas para agir no mundo fenomênico. Em vista do antropocentrismo e humanismo, e da premissa de que seres senscientes são o que há de mais importante, é natural que posturas práticas os privilegiem, considerando a equivalência entre o Eu e o Outro, e seja buscada a máxima equivalência entre as condições de possibilidades existenciais abertas aos seres humanos.

Caracteriza o ser humano, em nosso caso, ser antropônico, egocêntrico, sensciente e dotado de potencialidades diversas psíquicas, e o mundo fenomênico assim aponta, fica evidenciada a potencial equivalência entre todos os egos. O Progressismo surge como a postura de que as condições existenciais humanas devem ser continuamente aperfeiçoadas, pela simples e óbvia detecção de que, como elas se apresentam, estão longe do que poderiam e deveriam ser para otimizar as possibilidades de realização de cada um.

Desde o princípio, no Ceticismo, ficou caracterizado que a única coisa que permite a adoção de alguma visão pessoal de realidade é uma escolha individual, íntima, e, é claro, na maioria dos casos inconsciente, mas que não deixa de ser uma escolha. É evidente que a maioria das pessoas jamais fez tal reflexão filosófica, e ao menos neste formato específico, espero ter sido o único a fazê-la, mas isso apenas mostra o grau de flexibilidade com que a existência permite à mente individual vivenciar seus próprios fenômenos.

Não há superioridade essencial alguma entre uma escolha de hermenêutica fenomênica, que interpretei como rotas de escape do Solipsismo, e outra, pelo fato de que todas são existencialmente equivalentes, e ainda que a via da intersubjetividade que desemboca no pluripsismo seja mais econômica, em termos occanianos, isso provavelmente tem mais um motivo estético do que epistêmico. No máximo probabilístico.

Reconheço que abaixo de minhas limitações físicas, também tenho limitações sociais e culturais que dificultam minhas atividades de realização pessoal, isto é, expandir minha existência fenomênica ao máximo de experiências desejáveis possível. Na minha condição estão todos os demais humanos. Como admito a equivalência entre mim, o meu eu, os demais, os outros eus, assumo que meus desejos sejam equivalentes, e assim, há muita convergência entre aquilo que potencializa minha existência e aquilo que faz o mesmo aos demais.

Aquilo que buscamos é, essencialmente, a Felicidade, obtida por meio das mais diversas atividades que me satisfazem existencialmente. O mesmo fazem os demais. Estamos, no entanto, todos submetidos a uma série de forças que nos roubam a felicidade e nos empurram para experiências exatamente opostas às que desejamos. Algumas delas são inevitáveis, outras não.

A construção de uma Teoria Ética é apenas parte dessa postura, que já não pode mais ser considerada, em si, cética, por apostar numa série de construções derivadas de uma escolha existencial, embora ainda possa invocar o ceticismo em alguns momentos, especialmente para negar certezas essenciais.

Talvez a mais importante frente dessa abordagem seja a afirmação de valores exclusiva e assumidamente humanos, pois só somos seres de fato completos nessa dimensão, fortemente

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sugerida pelo mundo fenomênico e muitíssimo coerente com nossa situação cultural, que costuma ser frequentemente atacada pela nossa herança biológica natural.

Sem abrir mão da pressuposição intersubjetiva, podemos adotar a pressuposição histórica e física que se mostra como excelente explicação para diversas contingências fenomênicas que se apresentam a nós. Quer elas tenham uma ordem real num universo material que de fato evoluiu do modo como aponta nossa tradição científica, quer elas sejam de uma ordem onírica que apenas emula tal constituição, fato é que assumir que temos uma fortíssima bagagem naturalista é algo mais que apenas explicativo, mas pode ser de fato libertário, por apontar uma teoria inteligível sobre nossas inegáveis vicissitudes existenciais.

A mim, parece predominar em nosso mundo uma constante tensão entre Natureza e Humanidade, a primeira no sentido biológico, a herança evolutiva que carregamos como antropônicos, a segunda no sentido cultural humanista que assume a responsabilidade pela própria existência. Nossos impulsos mais primitivos nos impelem a uma série de atos que visam o mero interesse particular, e nossa herança natural explica, creio, praticamente todo o fundamento de nossas dificuldades interpessoais.

Em oposição a isso temos a resistência constante de nossa humanidade, de modo que a imagem clássica da oposição entre a pureza de nosso espírito contra a impureza de nosso corpo pode ser transplantada para a tensão entre a pretensão ampla, lúcida e altruísta de nossa humanidade contra os impulsos cegos, imediatistas e irracionais de nossa naturalidade biológica.

Lamentavelmente, tem predominado em nossa história modelos de pensamento que despojam o ser humano de todas as suas boas qualidades projetando-as para fora, quer em divindades, planos espirituais ou mesmo numa natureza idealizada, e por vezes disfarçando-as e misturando-as com impulsos puramente naturais que são travestidos de coisas outras que os meros conteúdos vitais que nos impelem cegamente.

O imperativo biológico de reprodução foi transformado no mandamento divino Crescei e Multiplicai, e toda a percepção a respeito da espontânea necessidade de regras sociais mínimas que permitam nossa coexistência foi creditada a deuses, bem como também, muitas vezes, nossas características menos dignas de orgulho.

Meu projeto Progressista em questão pode ser resumido no apelo a que os humanos assumam o que tem mais de mais elevado, sua humanidade, dignificando-a, valorizando-a, e fortalecendo-a para que possamos ao máximo possível administrar nossos impulsos vitais, contendo os que forem destrutivos e incentivando os que forem construtivos.

 

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OTIMISMO

Além dos cinco conceitos que fundamentam meu sistema filosófico, permeia um sexto que, aparentemente, não pode ser encaixado na sequência, exceto talvez como secundário ao ceticismo, embora mesmo isso seja questionável, e podendo ser encaixado em qualquer lugar entre os demais, ou mesmo em lugar algum. Considerações sobre seu devido lugar seguir-se-ão a considerações sobre o mesmo.

É possível que minha filosofia seja resultado de um otimismo injustificado que forçaria os conceitos, mesmo o ceticismo, a se constituírem de modo a satisfazer uma visão existencial prévia passionalmente definida. (É também possível que a qualquer outro sistema de pensamento de qualquer outro pensador, mesmo antitético a este, se aplique descrição similar.)

Que tal otimismo seja melhor explicado como emergindo em torno do Egocentrismo, parece mais promissor. Em geral o ceticismo pode ser associado ao pessimismo, pois a impossibilidade de conhecimento certo pode ser encarada como fracasso existencial devido à impotência epistêmica. O que já pressupõe uma reificação desse conhecimento, de um acesso à verdade como definidora de sentido existencial, o que será abordada mais adiante.

No entanto, caracteriza-se na minha filosofia uma ausência completa de qualquer sentido existencial prévio à experiência fenomênica do ego, que se diferencia do Existencialismo, em especial sartreano, por não postular uma precedência da Essência sobre a Existência (antes postularia sua total simultaneidade, ou até mesmo desconsidera o próprio conceito de essência, ou questionar mesmo o conceito de ‘Ser’), ou sugerir sua total identificação com a existência. Também pela já explanada internalidade que flerta até mesmo com a possível inexistência essencial do mundo físico, mas principalmente por não ver qualquer postura coerciva, como a condenação à liberdade, como obrigatória.

O ceticismo demonstrou que qualquer conhecimento seguro além das três certezas fundamentais é impossível, e assim, não haveria qualquer possibilidade de descobrir significados prontos, supostamente externos ao sujeito. E ainda que eles existissem, sua perpétua inacessibilidade é perfeitamente equivalente à sua inexistência. O ego está total e completamente desprovido de qualquer obrigatoriedade, totalmente livre para decidir sua hermenêutica existencial. As possibilidades de se interpretar o mundo, em hipótese alguma, podem ser essencialmente confirmadas ou refutadas. Não há possibilidade de ser corrigido, e portanto, a escolha jamais poderá ser condenada.

Logo, aberta total liberdade para o Eu decidir como interpretar o universo, não há circunstância alguma além de sua própria vontade capaz de lhe mostrar a impropriedade de sua escolha. É livre para construir sua percepção de realidade e crer no que quiser.

É nesse momento que provavelmente emerge o otimismo. Não há obrigação prévia alguma. Não há compromisso. A única condição a ser satisfeita é a própria preferência, fazendo com que, epistemicamente, todo o universo possa ser tornado um parque de diversões customizável a atender a vontade do Eu, qualquer que seja, no que se refere a subsidiar sua escolha hermenêutica prévia. Desde que haja a modéstia de uma expectativa moderada, pois embora a decisão de acreditar em Deus, por exemplo, possa ser tomada sem risco de ser factualmente refutada, deve se manter num nível de flexibilidade tal que não comece a entrar em choque existencial com outros fenômenos. Quem decidir acreditar num Deus que descerá dos céus para salvá-lo num momento de perigo correrá o risco de uma terrível decepção. Ou para quem decidir crer num universo totalmente desprovido de planejamento, acrescentar a isso a crença na possibilidade factual de demonstrar a inexistência de divindades e eliminar o teísmo, também estará sujeito a frustrações.

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A crença na simples continuidade meta existencial da mente 23, por si só, jamais pode ser refutada, pois sua confirmação implicaria a extinção do sujeito, que jamais experimentaria tal inexistência. Assim, quem optar por acreditar firmemente que sua existência é perpétua, não poderá, jamais, se decepcionar. Mas aquele que decidir especificar como se dará tal meta existência, especialmente definindo seus pormenores, corre sério risco de ser confrontado com uma meta existência diferente da que esperava. O mesmo se dá com aquele que aposta na futura extinção existencial, pois ao contrário do que acontece com a postura oposta, é possível a experimentação de sua refutação.

Crenças moderadas, como a não existência de um Deus Supremo 24 em sentido amplo, a factualidade de outras mentes, ou a não existência de Destino, podem ser vivenciadas com altos graus de certeza por jamais poderem ser inequivocamente refutadas.

Tais possibilidades estão abertas a todos os egos, que as escolhem das formas mais diversificadas possível. A maioria assume riscos muito maiores do que o de permanecer na expectativa moderada, e acaba investindo sua existência em hipóteses muito mais complexas e incertas, mas isso é apenas mais uma realização da escolha pessoal, que não pode ser repreendida apenas por ser mais ousada.

Mas é certo que a maioria nunca fez tal escolha, consciente ou não, se guiando por raciocínio similar. Também é certo que muitos, na realidade, nem chegaram ao ponto de se permitir tal escolha. E pior, para muitos a possibilidade de tal escolha é desencorajada das mais diversas formas possíveis, inclusive com a ameaça metafísica mais extrema. Mas de qualquer modo, a potencialidade permanece, pois ainda não se concebeu modo algum de realmente dominar diretamente a subjetividade alheia. Tal conceito é também um impulsor forte da postura Progressista, pois na transição do antropocentrismo para o humanismo, surge a questão de que tal potencialidade, sendo inata, deveria estar acessível a qualquer um que tenha disposição em fazê-la, sem sofrer repreensões culturais.

Enfim, é possível o Otimismo emergir do Ceticismo e ou do Egocentrismo, mas poderia ocorrer também uma sensação de desamparo ante a possibilidade de estar só, que seria sanada pelo Antropocentrismo, colocando o Eu de volta em um mundo coletivo repleto de semelhantes, e daí derivar-se o otimismo. Também poderia ter ocorrido após o Humanismo, que dá uma dimensão mais ampla à existência coletiva, ou após o progressismo, com sua expectativa de melhora das condições sociais. Outrossim, essa reflexão surgiu de modo deveras sintético para ser possível precisá-lo.

 

 


23. O conceito é de minha autoria, introduzido em www.xr.pro.br/monografias/MCM1-Fedon.html.
24. Mesmo um Deus Onipotente não pode provar sua existência a um humano a não ser concedendo lhe potências suficientes para apreender tal onipotência. Qualquer demonstração retumbante de milagres ou manifestações sobrenaturais no máximo poderiam apontar para a existência de uma divindade restrita. É possível sequer conceber uma prova de onipotência? Como distinguir um suposto milagre jeovista como uma nova Abertura do Mar Vermelho ou uma Parada do Sol sobre Brasília, de uma mera pirotecnia de avançados Extraterrestres?

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Esse texto agora se divide em caminhos distintos, que podem ser seguidos de acordo com o interesse do leitor. Aquele que considerar as explanações anteriores suficientes para o estabelecimento de um fundamento aceitável, pode seguir diretamente para a próxima página sem qualquer prejuízo. Mas quem sentir necessidade de uma digressão do tema original que enverede pela seguinte abordagem paralela, pode depois retornar a este ponto.

De qualquer modo, não haverá diferença essencial nas conclusões finais.

Um dos principais objetivos é criticar a pressuposição de superioridade intelectual do pessimismo, mas o Anexo I – Otimismo X Pessimismo, deve ser lido também pelos que, além de se interessarem pelo tema sugerido pelo título, tiverem interesse num aprofundamento da questão de nossa similaridade essencial ser maior na dor que no prazer, bem como sermos absolutamente idênticos no Nada.

Há um esboço de uma Teoria Ontológica do Bem e Mal aparentemente distinta de “teorias” subjacentes que, mesmo não sendo explicitadas, costumam ser operacionais sob nossas concepções éticas de ordem ontológica ou epistemológica.

Outro elemento importante é uma defesa do valor da existência, que preferi deixar à parte por normalmente ser considerada desnecessária, ou mesmo contraproducente, exceto por aqueles que atestam seu desvalor, no que prestam um útil serviço, visto fornecerem os meios que permite fazer tal defesa de forma negativa e ou reativa.

Marcus Valerio XR

 

 

 

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DA ESPECIFICIDADE DESTA ABORDAGEM

Uma leitura atenta poderá questionar qual a principal diferença entre o sistema que estou propondo e os previamente examinados, pois espero que as similaridades tenham sido óbvias, e assim por em xeque a própria pretensão de originalidade em si, que permeou toda a exposição anterior. Creio que, além de uma fundamentação epistemológica distinta, de um apelo maior à elementos estéticos e do uso de conhecimentos advindos de ciências que eram inacessíveis no século XVIII, a principal diferença esteja na detecção da questão relativa a Descrição e Prescrição. Cumpre agora reproduzir outras partes de um trecho de Hume já citado na Primeira Parte desta monografia.

... em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. (...) essa pequena atenção (...) nos faria ver que a distinção entre vício e virtude não está fundada meramente nas relações dos objetos, nem é percebida pela razão. (Tratado da Natureza Humana, Livro III, Parte I, Seção II, página 509, parágrafo 27)

Como anteriormente comentado, essa transição injustificada é resultado da natural e necessária normatividade de todo e qualquer sistema ético. Embora haja elementos exclusivamente descritivos em todo discurso moral, o “discurso em si” só poderá ser prescritivo, e muitos moralistas acabam fazendo a transição de modo impensado, de tão espontânea que ela se apresenta. É muito curioso que entre os sistemas éticos aparentemente menos prescritivos dentre os mais difundidos estejam exatamente o de Hume e o de Adam Smith, que embora sejam ambiciosos em sua descrição, são modestos em suas prescrições. Talvez por isso Hume seja lembrado por sua Epistemologia, abordagens históricas e naturalistas, e quase nunca por sua Ética, e Smith seja da maior importância na economia, com uma obra fortemente normativa, e praticamente desconhecido em sua Teoria dos Sentimentos Morais.

Tal modéstia não impede a dimensão normativa destas teorias, como já foi abordado, e diferente destes, minha teoria é assumidamente prescritiva, não só pela já referida impossibilidade de produzir uma ética puramente descritiva, mas principalmente por pretender apontar e sugerir elementos para que se reforce esse sentimento fundamental que termina por ser a base de toda Ética, a Empatia. Tais características, absolutamente ausentes nas obras de Smith e Hume, ganharão predominante importância neste texto.

Enfim, basear a Ética na Empatia pode ser entendido de dois modos distintos. Primeiro, que nosso Senso Ético (Senso Moral para Hume) não tem origem na racionalidade, mas sim, fundamentalmente, no sentimento de empatia. Apenas posteriormente nós organizamos esse senso na forma de códigos morais, leis e deveres. Nesse sentido inicial, minha opinião é a mesma de Hume e Smith e dispensa delongas. Segundo, que a maximização de nossa Ética, com vista ao Bem individual, Comum e Geral, deve passar obrigatoriamente pelo estudo e aperfeiçoamento de nosso sentimento empático. E nesse sentido, o que proponho aqui é bastante distinto dos referidos autores.

 

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VIRTUDE E DEVER

Com isso, abrimos abordagens que podem ser associadas a estes distintos elementos de nossas tradições éticas. Parto aqui da intuição de que a virtude está mais para os sentimentos e o dever mais para a razão, pois parece impossível pensar em dever sem algum tipo de operação lógica. Por que devemos? Normalmente é possível responder a essa pergunta racionalmente. Mas se temos um sentimento a respeito de algo, perguntar o porquê disso dificilmente é racionalmente respondível, exceto do ponto de vista biológico que, para todos os efeitos humanos, não nos é suficiente.

A Empatia pode ser vista como Virtude, no sentido de ser uma potencialidade inata a ser aperfeiçoada que nos predispõe a prática do bem. Possuir sentimentos empáticos não é uma mera questão de escolha, ela nos é estrutural, embora possamos aprofundá-la ou reprimi-la. E os que porventura nascem sem tal sentimento (nossa literatura psicológica criminalística aponta ser isso possível) também parecem não ter tido escolha no sentido de possuírem ou não tal sentimento, podendo, no entanto, compensar-lha a falta pela racionalidade.

Ou seja, embora a ausência da capacidade empática possa inviabilizar a existência social e assim o auto conhecimento (visto ser impossível que este prescinda, em algum momento, de uma contemplação de outro como um espelho) 25 ainda assim, a civilização pode fornecer elementos para que esse ser carente de tal sentimento se aperfeiçoe racionalmente, de modo que sua conduta possa ser até mesmo mais eficaz. Isso se aplica não somente às raras pessoas desprovidas de empatia, mas também a sistemas de inteligência artificial que não devem demorar muito a emular o comportamento humano cada vez melhor.

É nesse último sentido que a Empatia está relacionada ao Dever. Isto é, podem ser entendidas como obrigatórias certas ações que tenham como fundamento obedecer o impulso empático. A principal distinção é que aquele que possui o devido sentimento empático poderá basear o comportamento benéfico espontaneamente, estando em conformidade a sua própria natureza, e com os demais. Já aquele destituído desse sentimento, quer por natureza, ou por forte repressão, estará obrigado pela sociedade, que poderá destruí-lo caso não se conforme, mas em geral oferece antes elementos culturais que dão a oportunidade de incorporar em si o sentimento de dever. A esta pessoa também está aberta a possibilidade de auto conhecimento, porém de um modo distinto.

Vejamos então outras distinções relativas ao comportamento ético com base na virtude empática, ou numa deontologia empaticamente fundamentada. A primeira, embora carregue a vantagem da espontaneidade, está também vulnerável ao excesso, visto que como qualquer outra coisa, a empatia também pode ser extrapolada a ponto de ser prejudicial. Como podemos estender nosso sentimento de empatia não somente aos seres humanos, mas aos animais e mesmo vegetais e minerais, uma empatia desmedida poderia impedir a pessoa até mesmo de se alimentar, visto que não suportaria a idéia de tirar a vida de um vegetal em prol da sua, projetando sensibilidade até mesmo em estruturas que, ao que tudo indica, não as tem.


25. “...aprovamos ou desaprovamos nossa própria conduta segundo sintamos que, quando nos colocamos na situação de outro homem, como se a contemplássemos com seus olhos e de seu ponto de vista, podemos ou não entender os sentimentos e motivos que a determinaram, simpatizando inteiramente com ela. Jamais podemos inspecionar nossos próprios sentimentos e motivos, jamais podemos formar juízo algum sobre eles, a não ser abandonando, por assim dizer, nossa posição natural e procurando vê-los com se estivessem a certa distância de nós.” (Adam Smith, Teoria dos Sentimentos Morais, Terceira Parte, Capítulo I, pág. 140.)

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Isto é um caso de excessiva extensão da empatia, que é comum ocorrer quando, na infância, nos apegamos a objetos, em geral brinquedos, a ponto de sofrermos pela destruição de um por termos projetado sentimentos neles. (Ao menos, esta foi uma experiência comum deste que vos escreve, assumindo novamente a força da autobiografia como determinante na construção de um sistema de pensamento pessoal.) Também pode ser considerada uma influência empática prejudicial a Super Ativação Empática, que não se dá pela excessiva extensão, mas pela excessiva identificação com outro ser, de modo que, ao se deparar com uma pessoa acidentada, pode sentir uma sintonia tão grande que não consegue ajudá-la, pois sua emulação é tão forte que a deixa em estado de incapacidade equivalente, ou por vezes até pior.

Por tanto, como teria dito Aristóteles, a Virtude poderia ser considerada como o aperfeiçoamento da empatia até o seu meio termo ideal, livrando-nos dos problemas decorrentes de sua falta ou excesso. Tais excessos, por outro lado, não poderão afetar, evidentemente, a pessoa cuja capacidade empática seja muito baixa ou nula, mas por outro lado ela estará sujeita a uma dificuldade específica, que não se aplicaria aos casos de inteligência artificial. É que mesmo desprovida de empatia, essa pessoa não é, afinal, completamente desprovida de sentimentos, e seus impulsos passionais podem então empurrá-la na prática de atos que, sem o devido sentimento empático em contrário, terminem por se manifestar em detrimento de outros, e, quase invariavelmente, que terminem por desencadear a retaliação social. (Ver Apego à Existência, na Primeira Parte.)

É, claramente, o caso dos comportamentos anti-sociais, que podem ir da mera inabilidade para bons relacionamentos, até a prática de horrendos crimes que deixam marcas indeléveis na sociedade. Por esse motivo, a pobreza ou ausência de empatia é condição necessária para o comportamento psicótico, embora ainda não suficiente, tendo que ser associada a outros impulsos emocionais muito fortes. (É bom notar que uma pessoa também pode ser levada a comportamentos anti-sociais como reclusão ou não comunicação, por excesso de empatia, a fim de se preservar sentimentalmente.)

Mesmo nos casos em que isso não se aplique, e quando a empatia pode ser compensada não só pela razão, mas por outras emoções positivas, a pessoa empaticamente deficitária ainda terá dificuldades de relacionamento advindas de sua falta de capacidade projetiva, intersubjetiva, como saber o melhor momento de evitar abordar alguém, respeitando seu sofrimento, ou o melhor momento de ajudá-la.

Agora, o passo mais significativo é lembrar que, embora toda essa reflexão possa ser aplicada a pessoas distintas, podem também se aplicar à mesma pessoa, pois nosso sentimento empático varia grandemente. Há momentos que somos muito sensíveis e momentos de insensibilidade, e as mesmas vantagens e desvantagens podem ser consideradas da mesma forma.

O adormecimento da empatia pode nos favorecer racionalmente, deixando nosso raciocínio livre de algumas interferências sentimentais, mas também pode nos privar exatamente daquilo que precisaríamos para atingir um conhecimento de modo intuitivo, ou mesmo com uma informação que, diretamente vivenciada, não necessita ser deduzida. A questão será então equivalente a saber quem realmente conhece a Música: O músico prático, sem qualquer noção de método ou teoria musical, que é capaz de reproduzir uma música imediatamente após ouvi-la, ou o erudito que domina todos os conhecimentos de forma e estrutura, sendo capaz de executar uma partitura à primeira vista, mas que não consegue apreender a música auditivamente. Evidentemente, deverá ser um meio termo, ou melhor, uma fusão de ambas as coisas.

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Voltando a uma confissão autobiográfica, estou ciente de que minha sensibilidade empática pessoal é o principal motivo de minha disposição para desenvolver uma ética sentimental, estando tranquilo de sua validade ao menos parcial, pelo simples fato de estar certo de ser um representante legítimo da humanidade, e de constatar empiricamente a existência de muitos outros indivíduos similares a mim.

Por outro lado, não posso descartar também a validade do pensamento daqueles que, partindo de uma sensibilidade menor, a compensam pela maior desenvoltura lógica, resultando em sistemas éticos que apelam mais à razão do que aos sentimentos. É meu direito, porém, considerar que sendo a maior parte da humanidade mais sensível às emoções que do que a razão, uma ética mais relacionada ao passional tem maior penetração não só numa quantidade maior de pessoas, mas também numa quantidade maior em certas pessoas. Isso tudo, porém, sem desprezar uma ética que tenha maior interesse para um outro seleto grupo de pessoas.

Ainda mais importante é observar que seria extremamente contraproducente reprimir ou permitir a repressão da manifestação empática para então compensá-la com obrigações morais externas, visto que uma vez devidamente equilibrada, a empatia aliada a racionalidade produz o melhor resultado possível em termos éticos. Essa observação previne a potencial idéia de que a empatia seja dispensável e substituída com vantagens, sempre, pela mera racionalidade, pois a razão, por si só, não pode tomar decisões sobre temas que não sejam quantificáveis, e o motivo fundamental de porquê devemos agir de tal forma se assente, em primeira e última instância, num conceito essencialmente subjetivo. (Como dito na Primeira Parte na reflexão Behemot X Leviatã)

A única objetividade pura possível seria estabelecer o valor da existência sensciente em sua mais produtiva versão possível, mas sem o apoio do simples impulso vital, isso sempre estaria sujeito ao impasse racional, visto não ser possível sequer decidir, numa base puramente lógica, a favor ou contra a existência. Na realidade, a empatia pode ser entendida como a extensão do impulso de existência primário em cada ser, que se move não somente para a quantidade, mas para qualidade existencial.

Portanto, em última instância, a intersubjetividade apenas conecta a potência de cada eu, potência esta que, abaixo de todos os conceitos e percepções é nada menos que uma inegável existência.

 

 

 

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CONSEQUÊNCIALISMO

Restam algumas considerações relativas à essa outra tradição da ética. Penso que, ao mesmo tempo que está mais próxima de uma ética de virtudes do que de uma ética deontológica, a Ética da Empatia também está muito relacionada às Consequências, ou ao Utilitarismo (visto que praticamente não se desenvolveu outra notável ética consequencialista).

Retomo, mais uma vez, minha distinção entre Éticas de Princípio e Éticas de Finalidade 26 (que embora guarde semelhança, não chega a ser idêntica as Éticas de Convicção e Responsabilidade de Max Weber, visto que estas podem coexistir pacificamente). Que também foi abordada na Primeira Parte (Finalidade e Princípio). Cabe, porém, uma explanação algo mais detalhada.

Agente - - - - - - - - - - - AÇÃO - - - - - - - - - - - Resultado
———————————————————
PRINCÍPIO - - - - - “Valoração” Ética - - - - - FINALIDADE

Uma Ética de Princípio parte da noção de que o Valor da Ação é determinado pela qualidade do ponto de partida: O ato será Bom se, e somente se, o Agente for Bom. A Ética de Finalidade valora a ação de acordo com o resultado intencionado: O ato será Bom se a Intenção for Boa. Ambos possuem problemas, visto que a Ética Finalista está considerando não os resultados efetivos, mas sim os intencionados, que podem ser radicalmente diferentes. Por outro lado a Ética Principialista ignora os resultados, se conformando a uma pressuposição valorativa normalmente difícil de definir.

O primeiro grupo, Princípio, envolve parte do Deontologismo, visto que a ação deve se conformar a alguns deveres previamente estipulados, e parte da Ética de Virtudes, pois há qualidades pré-supostas no agente, ainda que arbitrariamente. O grupo da Finalidade abrange também parte destas duas mesmas tradições, pois a Intenção está pressuposta no agente, bem como sua predisposição pode se configurar na forma de um dever que segue um princípio sentimental. A real diferença é que a intenção da ética finalista é discernível, pode ser expressa, permitindo uma discussão racional, ao passo que da ética principialista é hermética, imersa em motivações insondáveis. (Mais está explicado no texto original.)

Não se deve confundir essa Ética de Princípios, com o Deontologismo puro, porque nesta última os deveres morais supõem-se obtidos racionalmente, com apelo à universalidade, enquanto no Principialismo os deveres são arbitrariamente estabelecidos dispensando uma razão mais clara e aceitação universal. Poder-se-ia considerar então que esta Ética de Princípios é uma versão distorcida da Ética dos Deveres, o que de fato também é, e o motivo pelo qual a delineei é por considerar que, na realidade, tal distorção é praticamente inevitável. Seres puramente racionais seriam capazes de seguir uma ética Kantiana, por exemplo, mas seres sujeitos à emoções jamais poderiam superar tal bagagem emocional, o que contaminaria sempre essa ética. A mais provável contaminação é incorporar elementos virtuosos arbitrários, que se tornarão uma espécie de mecanismo de pseudo correção, na verdade ocultação, para problemas racionalmente insolúveis.

A maior evidência que posso invocar é a distorção de nosso sistema jurídico. Ora, as leis são a melhor expressão da deontologia, e tentam abarcar ao máximo possível a complexidade do mundo real, em geral por meio da complexidade dos códigos e normas. Portanto, materialmente, a legislação seria como a racionalidade pura, e em alguns poucos casos até poderia ser aplicada de forma direta, o que poderia ser feito até mesmo por computadores, sem grande dano ao Bem jurídico.


26. RÉLICA E ETIGIÃO – Desfazendo a Confusão. www.xr.pro.br/monografias/Relica&Etigiao.html, pág.17.

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No entanto, raramente isso acontece, e a lei precisa ser interpretada e aplicada por pessoas, onde frequentemente vemos o conflito entre o “Espírito” e o “Corpo” da Lei. Como já foi dito, as leis podem facilmente ser aplicadas de modo a cometer grandes injustiças, bastando para isso, contingências que sejam invisíveis para a forma, e ou apenas mera má intenção. É na subjetividade passional dos juristas que pode-se corrigir distorções que tornariam leis bem intencionadas em instrumento de opressão e injustiças, ou o contrário. O jurista mal intencionado pode usar inúmeros recursos que, mesmo sendo evidente a pretensão viciosa, muitas vezes devem ser aceitos em respeito à devida regularidade processual.

E o mais importante, é que embora o autor da deturpação legal possa estar consciente de sua própria perversão, é muito comum também que não esteja, criando mecanismos de auto ilusão para se convencer que no fundo luta por uma causa essencialmente justa, mesmo que seja impossível justificá-lo. É exatamente isso que ocorre na Ética de Princípio. Ela é o resultado, inevitável, de uma tentativa por vezes honesta de se atrelar a leis seguras, imutáveis e confiáveis, mas que inevitavelmente se revelam impossíveis de serem amplamente aplicadas devido a complexidade do mundo, o que pode levar ao desencanto com tal sistema, ou ao apelo à instâncias superiores de virtude, na tentativa, por vezes desesperada, de se livrar da aceitação de nossas limitações. Assim, o adepto deste tipo de concepção, em geral religiosa, termina por se convencer de seu acesso à uma “jurisprudência” superior, e se ver como um representante dessa superioridade, que jamais poderá ser racionalmente demonstrada.

Não à toa o deontologismo é praticamente indissociável ao menos de parte da tradição religiosa, e é lamentável que ao ler Hume, o despertar Kantiano do sono dogmático tenha sido parcial.

Por outro lado, a Ética de Finalidade também não deve ser confundida com o Consequencialismo puro, embora vá ao seu encontro por destacar a importância dos resultados da ação, pois sendo uma ética focada nas intenções do agente, é evidentemente Internalista. A questão então se desloca para a configuração dessa intenção, que poderia inclusive se atrelar a elementos deontólógicos internalizados, mas que, nesse caso, apela mais à experiência subjetiva, de modo que a internalidade esteja associada a sensibilidade.

Se tal intencionalidade estiver alinhada com a empatia, e uma devida observação da Regra de Ouro, então essa intenção não estará apelando a valores metafísicos ou transcendentes, e pode ser descrita na forma de um apelo não a universalidade transcendental, mas a universalidade da experiência subjetiva de não querer ser violada em suas características básicas. Como dito antes, nada é mais universal do que aquilo que é mais fundamentalmente íntimo e privado, que é o desejo pelo bem estar.

 

Dito isto, apenas espero destacar que podemos ter em vista uma maximização da felicidade geral num sentido até mesmo próximo ao dos utilitaristas, porém com um acréscimo radicalmente distinto: Considerar as relações empáticas dentro da “quantificação” do bem. No mesmo texto anterior onde apresentei o supra citado conceito, também sugeri que qualquer deficiência da contabilização de Bem utilitarista seria solucionada com adição do cálculo de empatia em sua fórmula de modo a torná-la algo como:

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VE = (B1 + B2 + ... + Bn) - (E1 + E2 + ... + En)

Onde ‘VE’ é o Valor Ético da situação, ‘B’ a quantidade de Bem, isto é, a satisfação, bem estar e ou prazer de cada pessoa que faça parte do contexto das ações, e ‘E’ é a relação empática entre cada par possível de pessoas no mesmo contexto. Tal relação é expressa sempre na forma de uma diferença entre o nível de bem de um e do outro. Devemos considerar também um parâmetro, onde a quantidade de Bem pode variar de +10 (intenso prazer e alegria) a -10 (extremo sofrimento e tristeza).

Assim, ao invés de afirmar que é ação é boa na medida em que promova um bom resultado pela soma das quantidades individuais de bem, essa nova fórmula mantém isso, mas também subtrai o valor das relações empáticas entre cada pessoa, na forma E1 = (B1 - B2), E2 = (B2 - B3), E1 = (B1 - B3) ... En = (Bn1 - Bn2), e assim por diante, de modo que, e isso é especialmente importante, a quantidade de relações empáticas em relação ao número de indivíduos envolvidos é definida pela fórmula:

SE = n2 - n
        2      2

Onde ‘S’ é somatório de relações empáticas. Ou seja, para uma ação que envolva apenas duas pessoas, há apenas uma relação empática, se envolve 3, passa a haver 3, se envolve 4, há 6, se envolve 5, há 10, e a quantidade de relações aumenta numa taxa muito superior a de pessoas, de modo que se envolve 12 pessoas, são 66 relações, se 20, há 190, se 1.000, há 499.500!

Há exemplos de cálculo no referido texto, que segue em anexo, mas o importante é mostrar que essa fórmula impede a distorção típica do cálculo utilitarista que permite que o famoso exemplo do Coliseu cause um problema só contornável por subterfúgios. (A situação onde milhares de pessoas se deleitam com o sofrimento de vítimas na arena, o que faria a situação em si ter um valor ético positivo, visto ser a quantidade de sofrimento das vítimas numericamente insignificante perante a quantidade de prazer sádico da platéia.) Pois embora a diferença de bem entre cada membro da platéia seja pequena, será abissal entre cada membro da platéia e a vítima, não importando que seja um milhão de sádicos e um único sofredor, porque a fórmula colocará um milhão de valores negativos, jogando sempre o valor final para abaixo de zero.

Essa mesma noção que inclui a empatia, também derruba o argumento do Monstro Utilitário 27, isto é, um hipotético ser sádico que, a cada um ponto de sofrimento alheio, obtém muitas vezes isso em prazer, fazendo com que milhões de pessoas em intenso sofrimento resulte num valor positivo porque o prazer deste único monstro supera a quantidade de sofrimento. Como a empatia teria que ser considerada também em relação a esse monstro e cada pessoa sofredora, o cálculo facilmente derrubaria o Valor Ético, novamente, para abaixo de zero.

Por exemplo, no cálculo utilitarista o monstro poderia extrair do sofrimento alheio, digamos, o equivalente a dez vezes de prazer. Supondo que 5 pessoas se encontrem em sofrimento máximo, digamos, -10 de Bem cada um, totalizando -50 na situação, o monstro estaria obtendo +500 de prazer, e mesmo subtraindo o sofrimento ainda manteria o Valor Ético em +450. Assim, todo o sofrimento do mundo poderia ser justificado pelo imenso prazer com que o diabo desfruta dele.


27. Desenvolvido por Robert Nozick em Anarchy, State, and Utopia (1974), que afirma "Utilitarian theory is embarrassed by the possibility of utility monsters who get enormously greater sums of utility from any sacrifice of others than these others lose . . . the theory seems to require that we all be sacrificed in the monster’s maw, in order to increase total utility."

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Mas, novamente, adicionando-se a questão da empatia, teríamos que subtrair do valor total a diferença de cada relação empática em questão. No caso, entre cada pessoa sofredora, como estão no mesmo nível, seria zero, mas entre o monstro e cada pessoa, seria evidentemente de 110 (os -10 da pessoa e os +100 do monstro), totalizando 550 que teriam que ser subtraídos da soma original, 450, resultando então em -100 de Valor Ético.

Com isso, só ficaria a dúvida de se esse tipo de cálculo não derrubaria o valor de praticamente qualquer situação, mesmo uma intuitivamente boa, como por exemplo uma animada festa onde quase todos estivessem se divertindo, e um único estivesse em profundo aborrecimento. Como as relações empáticas são sempre mais numerosas que a quantidade de pessoas, para qualquer valor superior a 3, essa pessoa sozinha derrubaria o valor ético de toda a situação.

Mas tal característica é externa, pois normalmente aplicamos os cálculos a situações onde todas as pessoas estejam obrigatoriamente envolvidas, em especial, nas ações que levam a tais situações, e que atingem todos por decorrência obrigatória e unilateral. Ora, os motivos do aborrecimento do participante infeliz são subjetivos e ou de sua própria alçada. Ele não está sendo obrigado a ficar ali, caso estivesse, aí sim derrubaria o valor da festa inteira, visto que esta envolveria o simultâneo sofrimento obrigatório de alguém (o que também ocorre no caso de uma festa noturna ruidosa estar incomodando a vizinhança).

Mas não sendo este o caso, não há motivo pelo qual se aplicar o cálculo. Deve-se, então, antes de fazer considerações numéricas, observar se as relações envolvidas são obrigatórias, coercitivas, unilaterais, etc, evitando que a diferença empática condene situações onde o dano não seja objetivo, mas sim subjetivo. (Ver Justificação Racional, na Parte 1)

 

Enfim, toda essa abordagem não tem como objetivo elevar o uso do conceito de empatia a qualquer relevância analítica ou matemática, mas sim apenas ilustrar que sua consideração salva nossa intuições, de modo que o que apenas nos parece subjetivamente correto, pode até mesmo ser demonstrado com números, no restrito âmbito quantificável do utilitarismo, e demonstrando também que uma ética consequencialista só teria a ganhar com advento do conceito de empatia.

 

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EXPERIÊNCIA MENTAL

Imaginemos uma situação onde, por algum motivo, as sensações das pessoas fossem compartilhadas de uma forma direta, em especial quando envolvessem uma interação específica. Se um homem grande e forte desferisse um golpe numa mulher pequena e frágil, ele sentiria, imediatamente, o mesmo nível de dor que ela sentiu, como se não somente as sensações dela fossem automaticamente copiadas para ele, mas inclusive os danos físicos. E não importa que ele seja mais resistente, pois o que ele sentiria não seria como se ela própria revidasse com outro golpe, mas sim como se ele fosse atingido por um golpe tão mais forte quanto o é o golpe dele em relação a ela.

Assim, seria impossível para qualquer pessoa ferir a outra impunemente. Qualquer dano seria imediatamente sentido tanto pela vítima quanto pelo agressor, na mesmíssima proporção. O revide, então, seria completamente desnecessário. Uma pessoa mais fraca que agredisse uma mais forte também sentiria em si própria o seu ataque, e sendo o outro mais resistente, a pessoa mais fraca sentiria como se tivesse sido atingida por outra ainda mais fraca que ela. Não é difícil perceber que isso, seguramente, extinguiria a violência, pois mesmo os masoquistas não iriam receber de volta uma dor desejável, mas sim tão indesejável quanto o foi para suas vítimas. O sádico jamais poderia provocar o sofrimento impunemente, e não haveria qualquer forma de causar dano a outrem sem a contrapartida imediata, tornando o “olho por olho” e “dente por dente” mais literal do que jamais se pensou.

Imaginemos agora a situação inversa, visto que a anterior apenas inibiria ações perniciosas. A próxima incentivaria ações virtuosas. Imaginemos que também, qualquer agrado, carícia, ajuda ou benefício desejável qualquer que fosse feito a alguém, imediatamente refletiria em grau idêntico no autor da ação. Assim, a melhor forma de fazer bem a si mesmo seria fazê-lo a outro. E imaginemos que tanto o caso anterior quanto este se aplicasse não somente às sensações físicas, mas a qualquer forma de satisfação. Ou seja, magoar, insultar, prejudicar de toda e qualquer forma, seria imediatamente revertido.

Enfim, teríamos uma situação onde seria impossível a qualquer um promover qualquer tipo de mal a outro, e onde todos estariam compelidos a promover o bem. E para radicalizar ainda mais a idéia, imaginemos que qualquer tipo de sofrimento experimentado por alguém, mesmo não gerado por outra pessoa, seria ainda assim irradiado para os demais de modo a compeli-los a eliminá-lo pela simples aproximação e compartilhamento. O mesmo se dando também com a felicidade e bem estar.

Essas idéias apontam que numa situação onde tudo isso se desse, qualquer tipo de atitude considerada anti-ética seria impossível. Ninguém faria mal a outro, e sempre buscaria toda forma de beneficiá-lo. Essa seria então nada menos do que a mais plena harmonia e união entre os seres humanos, ainda que permeada do equivalente à Super Ativação Empática. De forma análoga devemos entender a empatia, diferente por apenas simular em nós mesmos os sentimentos alheios, embora isso possa se dar com tanta intensidade que quase nos proporcione sensação física equivalente. Quanto maior for a representação do sentimento alheio que a empatia produzir, menor será nossa condição de causar-lhe mal e maior nossa disposição em causar-lhe bem, e o mais importante, tal disposição seria imune a flutuações de humor ou considerações secundárias.

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EMPATIA

Retomando o tema capital dessa monografia, o conceito de Empatia absorve os conceitos de Simpatia de Hume e Smith, como exposto anteriormente. No momento, porém, é hora de enfatizarmos o termo num sentido distinto, mais próximo do uso daqueles que o introduziram, e na verdade mais próximo do sentido Husserliano. Tal sentido está intimamente associado à questão da intersubjetividade, ou seja, a capacidade que nos permite, ou nos obriga, pressupor a existência de outras mentes. A intersubjetividade seria proveniente da, ou seria a própria, empatia.

Vimos, pelo meu sistema filosófico, que a intersubjetividade é a mais econômica e espontânea via de escape do Solipsismo. Muitas pessoas não crêem em divindades ou num universo auto-consciente, e muitos duvidam da existência independente do mundo material, mas somente um estado solipsista faria alguém não crer que seus semelhantes não sejam seres intencionais. Se a empatia está essencialmente ligada à intersubjetividade, então pouca coisa poderia ser considerada mais fundamental. (Lembrando que tal pressuposto é, na totalidade das vezes, intuitivo e espontâneo, e que poucos foram os que, por posterior reflexão racional, a justificaram.) Se existem solipsistas práticos, muito provavelmente estão entre as pessoas mentalmente comprometidas, e assim, podemos deduzir que a capacidade empática é tão profundamente estabelecida em nossa cognição que sua remoção implicaria na inviabilização da maior parte das demais capacidades. (Sem esquecer as poucas exceções anteriormente mencionadas.)

Ancorar a ética em característica psicológica tão primária terá a vantagem de torná-la muito mais resistente do que em características mais abstratas ou frágeis, e isso é importantíssimo se lembrarmos o quanto somos vulneráveis à “regressão” temporária ou definitiva de qualidade psíquica.

Os humanos tem grandes capacidades intelectivas, e são capazes de apreender com grande desenvoltura conceitos comportamentais sofisticados, bem como internalizar elementos culturais originalmente estranhos a ponto destes lhes parecerem inerentes. Mas ainda assim estão sempre sujeitos a uma queda cognitiva brusca quando submetidos a condições que sobrecarregam seus sentidos e adormecem suas qualidades humanas mais avançadas.

Os mais prudentes humanos podem cometer facilmente uma insensatez se submetidos a intensa pressão emocional, as mais sábias pessoas podem ter sua inteligência comprometida se estiverem sob estado grave de privação de necessidades primárias. Como já foi levantado antes, há uma tensão constante entre nossa herança biológica e nossa dimensão humana, e esta última sucumbe com facilidade ante a violência das necessidades primárias quando negligenciadas ou super estimuladas. É improcedente exigir de um ser humano uma conduta condizente com seus níveis mais sofisticados de humanidade enquanto este estiver existencialmente reduzido a condições limítrofes de animalidade.

Assim, nossa civilização não pode esperar jamais atingir níveis mais avançados de desenvolvimento e estabilidade enquanto perpetuar situações que permitem que milhões de pessoas nasçam sem possibilidade mínima de se tornarem plenamente humanas. Neste viés progressista, esperando contribuir com uma teoria ética que possua um núcleo coeso e estável, vejamos então se a empatia satisfaz essa condição.

Entendendo empatia, essencialmente, como a capacidade de projetar conteúdos internos em fenômenos externos, penso ser difícil encontrar algo mais espontâneo e persistente ao ser humano. Desde a infância nos acostumamos a conversar com objetos inanimados, ou mesmo com entes imaginários, ou ao menos a sentir por eles sentimentos que costumam ser mais apropriados a outros seres como nós. Acreditar fortemente que um brinquedo ou objeto qualquer ficou triste por ter sido abandonado é uma experiência que seguramente já foi vivenciada pela grande maioria das pessoas.

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Essa projeção de conteúdos internos a objetos e instâncias externas evidentemente costuma obedecer a alguns critérios não muito rígidos, mas relativamente comuns.

A projeção sugere um nível de identificação de nossa interioridade com elementos exteriores nas razões diretas de Similaridade ou Contiguidade. Duas das categorias que Hume aplica originalmente na epistemologia, aplica também na sua moral. Ou seja, quanto mais similar a nós próprios, e ou mais próximos, mais tendemos a empatizar, isto é, nos identificar. E quanto maior o nível de identificação, mais tendemos a emular em nós mesmos eventos que deduzimos estarem afetando os objetos empatizados.

Disso decorre a facilidade com que pessoas sejam mais solidárias com as outras na medida em que estas estejam passando por problemas similares aos que elas já enfrentaram, ou na medida em que estão em contato mais direto, e especialmente decorre o forte laço entre membros de uma mesma família devido à satisfação das duas condições, a similaridade genética e contiguidade convivencial.

Mesmo sozinho, um desses parâmetros tende a ser suficiente para estabelecer laço empático. A dessemelhança de uma pessoa e algum objeto inanimado pode ser praticamente total, mas se tal lhe for uma posse muito próxima, íntima, ou estiver embutida de valores sentimentais, pode gerar empatia a tal ponto de alguém ficar profundamente triste com a perda ou destruição do objeto mesmo que lhe seja perfeitamente acessível adquirir outro equivalente ou melhor. (Embora o apego sentimental ao objeto também possa estar associado a uma relação empática com outra pessoa por meio daquele objeto.)

Da mesma forma, a distância entre dois seres que vivem em pólos opostos do mundo não impede a empatia de se manifestar caso tomemos conhecimento de que tal ser está sob condições muito similares à nossa. E se desceremos ainda mais em nossas semelhanças estruturais, somos capazes de sentir piedade de animais do outro lado do mundo, que sofrem maus tratos, pelo fato de que o sofrimento deles seria muito parecido com o nosso se estivéssemos em situação similar.

Com tudo isso, o sentimento de empatia pode resistir, e até ficar mais forte, quando mais sentimos uma descida em nossos níveis mentais. Enquanto a razão facilmente sucumbe ante a dor, ao prazer, ou às emoções intensas, a empatia, estando relacionada a essas últimas, pode, ao menos em alguns casos, ser incorruptível. Mas é evidente que os parâmetros de similaridade e da contiguidade, por si só, não são suficientes, caso contrário não poderíamos explicar rupturas terríveis entre membros da mesma família, grandes desavenças entre pessoas próximas e o fato de muitos guardarem tanta mágoa de colegas que preferem vê-los arruinados.

Além do motivo óbvio de que tais casos, embora envolvam contiguidade, possam porém envolver enorme dissimilaridade, há também os casos onde mesmo satisfazendo ambos os parâmetros, não ocorre empatização. Assim, necessitamos de uma terceira categoria, na realidade, bastante simples, que nada mais é do que a capacidade interna de emulação, ou melhor dizendo, a disposição em realizar essa translocação de ponto de vista.

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Analogamente, podemos dizer que há dois parâmetros essenciais para se conseguir conhecimento, que é ter acesso a materiais de estudo, e dominar um método didático adequado. No entanto, essas duas condições são inúteis caso a pessoa não tenha disposição a aplicar o método a tal material. Assim, o elemento mais importante para a devida emulação empática não depende de um fator externo como a contiguidade, nem de uma similaridade inter subjetiva, mas sobretudo de um disposição interior.

Tal disposição, por sua vez, é influenciada por duas características internas. Uma é capacidade cognitiva de realizar a emulação adequadamente, outra, mais fundamental, é a vontade de fazê-lo. Muitas vezes, a similaridade e ou contiguidade não são suficientes para me fazer empatizar com devida pessoa por minha incapacidade de emular em mim mesmo as condições nas quais ela se encontra, e tal incapacidade pode dever-se a meu desconhecimento de elementos que tenhamos em comum, ou ao puro e simples desinteresse a considerar sua perspectiva.

O ponto nevrálgico a ser abordado mais adiante, é que este elemento final, uma volição estética, é o mais fundamental e importante de todos, pois sem ele, todos os demais são irrelevantes, ao passo que com ele, pode-se facilmente superar a deficiência dos demais. Pode-se obrigar as pessoas a seguirem regras, mas não se pode obrigar alguém a sentir, portanto, essa deficiência em se dispor ao sentimento de empatia só pode ser sanada não por preceitos ou admoestações, mas, antes de tudo, oferecendo elementos que incitem à emulação. Ou seja, não se trata de uma abordagem pragmática deontológica, calculista (no sentido utilitarista) ou de uma expectativa do cultivo de virtudes, mas sim de um estímulo estético para fomentar aquilo que já é potencial em nossa psique, e cujo embotamento sempre tem consequências trágicas.

Agora, porém, o ponto final, e muito importante, é que Empatia deve ser vista como uma Dimensão, uma linha que tende a um lado ou outro, para mais ou para menos. Não é somente num sentido positivo que ela deve ser tomada para a devida compreensão, mas também no sentido negativo, isto é, quando há pouca, ou nenhuma empatia entre as pessoas, de forma a se explicar as condutas. Em síntese, nossas ações tendem a ser mais benéficas quanto mais estamos empaticamente sintonizados com nossos semelhantes, bem como tendem a ser danosas quando estamos empaticamente desintonizados, ignorando nossa similaridade essencial.

Assim, as pessoas não são simplesmente empáticas, ou anti-empáticas, mas sim, tem níveis de empatia, sendo mais ou menos empáticas de acordo com a situação.

 

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BOA DISTRIBUIÇÃO DA VIRTUDE
(num sentido não aristotélico)

Os talentos parecem ser desigualmente distribuídos não somente entre os indivíduos, mas também entre os grupos sociais, culturas, povos e nações. O mesmo país de inclinação favorável ao empreendimento comercial pode ser desfavorável à aquisição de conhecimentos ou desenvolvimento nas artes. Com isso, tem sido fácil observar que alguns nichos culturais costumam se manter na vanguarda de certas produções artísticas, científicas, místicas ou intelectuais mesmo que compartilhando um âmbito com outros nichos com recursos para fazê-lo tão bem ou melhor.

China e Índia coexistem há milhares de anos como duas potências culturais. Mas a primeira se destacou mais por grandes descobertas como a pólvora, a bússola e o papel. Já a segunda destacou-se por sua produção intelectual, das quais a matemática é seguramente a mais notável. Alemães e italianos ainda parecem insuperáveis na sofisticação de sua produção musical, e os árabes dominaram a produção científica numa época em que a Europa se estagnava, situação que posteriormente se inverteria, o que mostra que essas desigualdades distribuem-se tanto no tempo quanto no espaço.

Nada disso parece acontecer com as virtudes e vícios. Ainda que haja contextos tempo locais que podem facilitar o desenvolvimento de uns ou outros, permanecerá provavelmente impossível demonstrar que uma nação, etnia ou tradição cultural é eticamente mais desenvolvida do que outra. Em todo e qualquer contexto sócio cultural, quer no tempo ou espaço, pode-se se encontrar toda a forma de vício e toda a sorte de virtude. Não há, em absoluto, qualquer sistema doutrinário, pressão social e sofisticação intelectual que seja capaz de prevenir a vilania ou garantir a integridade.

Os sistemas morais ou doutrinas éticas avançadas influenciam, mas em geral o fazem com eficiência somente sobre aqueles que já estão predispostos a se aperfeiçoarem, podendo no máximo alimentar o superego dos demais a ponto de lhes criar um freio comportamental. E são absolutamente impotentes contra inclinações espontâneas à perversão, inatas ou tenramente adquiridas, que ainda desafiam as explicações psicológicas, psiquiátricas e neurológicas.

Então pode-se entender que independente da sofisticação intelectual, científica, religiosa, mística, artística ou mesmo moral, não há contexto cultural que inviabilize a virtude espontânea ou o vício intrínseco (embora haja situações que podem fazê-lo), podemos encontrar pessoas amáveis ou terríveis em qualquer local, mesmo nos mais improváveis. E até a reunião artificial de um determinado ‘tipo’ comportamental não impede manifestações mais inesperadas. Pode-se encontrar anjos em presídios e demônios em mosteiros.

Isso, por si, já nos deveria mostrar ao menos a impotência da sofisticação cultural em determinar a virtude de seus grupos. A mais abrangente religião pode melhorar aqueles já dispostos a isso, mas não pode evitar os já dispostos a torcê-la fraudulentamente. E os mais avançados sistemas jurídicos, de legislações aperfeiçoadas por brilhantes investidas filosóficas, podem ser torcidos de modo a fazer terrível injustiça por meio das mais justas leis, bem como a justiça pode ser feita distorcendo sistemas legais bárbaros e primitivos.

O objetivo de toda essa reflexão é simplesmente mostrar que algo tão acessível a ponto de ser alcançado no mais ignorante e primitivo contexto, e tão resistente a ponto de não ser subjugado pelo mais avançado e abrangente sistema, só pode estar embasado em algo por demais íntimo e profundo, que não é, ou é pouquíssimo, afetado diretamente pela teia cultural.

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Este algo é exatamente o domínio da emoção e da sensibilidade, e nenhum desses é mais profundo do que aquele que interconecta nosso universo íntimo e o universo particular alheio, bem como o universo público que compartilhamos.

A capacidade inata humana para a empatia explica porque o acesso à virtude é universal, independente de grau de instrução ou complexidade cultural. Se há um parâmetro ético capaz de ser aplicado a todo e qualquer ser humano em todo e qualquer contexto concebível, este só poderá remeter a seus sentimentos mais profundos, pois somente o íntimo é juiz absoluto de alguém. Se há uma legislação divina a julgar os humanos, esta só poderia apelar a essa interioridade.

Isso não significa, de modo algum, que o uso da razão seja inútil, visto que maximiza a capacidade de fazer o bem de pessoas já dispostas a tal, e minimiza a capacidade de fazer o mal dos também já dispostos, evitando que seus feitos gerem ainda mais sofrimento aos demais, o que, invariavelmente, reduz o nível mental dos humanos aos seus conteúdos mais primários, incentivando a prática de mais atos perniciosos e alimentando um círculo vicioso. Além de, como já dito, os casos de baixa capacidade empática, que por disposição própria ou por pressão externa, podem ser facilmente compensados pela racionalidade.

Ademais, não poderia haver uso mais propício da razão do que detectar devidamente essa natureza e fazer o melhor uso possível dela no sentido de melhorar as condições existenciais ao máximo. E como, apesar de ser potencialmente intrínseca, a empatia pode ser estimulada ou suprimida, é evidente que temos um leque de ações que podem ser ou não tomados em prol do que pretendemos atingir.

A neutralização de sentimentos empáticos sempre foi largamente utilizada por gerências que visam fazer de pessoas meros objetos de execução de seus fins. Os homens, principalmente, em vários contextos culturais foram doutrinados para odiarem seus inimigos, não ter piedade, não reconhecer neles sequer sua humanidade. Desumanizar o adversário sempre foi um recurso primário para eliminar o sentimento de similaridade que pode estimular a empatia. Além dos mais óbvios mitos desabonadores alimentados sobre os inimigos, como atribuir-lhes toda sorte de vícios e más condutas, o simples desestímulo a sensibilidade é lugar tão comum que praticamente dispensa comentários. Basta associar qualquer forma de sentimento empático à fraqueza e feminilidade, empurrando a psique masculina a abraçar seus elementos mais agressivos e insensíveis, e é claro, premiando-os pela aclamação grupal. Isso para vencer a notória resistência natural que a maioria das pessoas tem com relação a cometer atos de grande violência, em especial assassinato, exceto quanto sob forte pressão emocional, que pode ser obtida não só pelo seu próprio sofrimento, mas também pelo super estímulo a instintos de horda.28

Complementando o que já foi exposto sobre Adam Smith, não é somente o estado de selvageria natural sub cultural que embota a sensibilidade empática a ponto de viabilizar toda sorte de violência. As ocorrências históricas de grandes atrocidades cometidas nas invasões, guerras, genocídios e massacres de toda ordem, tem necessariamente que ser obtidas mediante o adormecimento deliberado dos sentimentos empáticos, bem como à premiação sistemática da


28. Um texto especialmente notável sobre isto é o do Major do Exército dos EUA, David S. Pierson, chamado Natural Killers - Turning the Tide of Battle, sobre o devido uso dos raros homens que possuem impulso irrefreado para o assassinato, que, destaca, são desprovidos de empatia. web.archive.org/web/20000824083818/www-cgsc.army.mil/milrev/English/MayJun99/PDF/pierson.pdf

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perversidade. Ou a simples autoridade de um agente qualquer, investido ou não de poder oficialmente reconhecido. 29 (Ver Macho Beta, na Parte 1)

Quase sempre, visto que a empatia costuma se dar na razão direta da similaridade, o primeiro passo é desumanizar os oponentes, negando a eles aquela característica que, por si só, já nos predisporia a mais básica identificação. Mas é ainda mais comum outra abordagem, curiosamente oposta, que impinge aos inimigos toda sorte de maus feitos, vilanias, covardias e vícios em geral. Ora, como o próprio Hume já havia sugerido, somente por meio de alguma identificação é possível se revoltar contra atos desumanos praticados por alguém. Uma criança morta por uma onça é algo que nos inspira revolta muito menor do que morta por outro insensível humano. Assim, essa abordagem apela a nossa já predisposta empatia dada pelo simples fato de pertencer à mesma espécie, porém contrastada pela conduta que não deveria ser condizente com a que esperamos nesta espécie. O fato de ambas abordagens, por vezes, serem usadas ao mesmo tempo, não é um problema visto que, nesses contextos, conta-se com a racionalidade mínima, fortemente desestimulada, do alvo da manipulação.

Concluindo, deve-se tomar cuidado para não confundir a afirmação de que nenhum Contexto Cultural é privilegiado na amostragem de virtudes e vícios espontâneos, com a de que Situações Específicas que podem eliminar a empatia, e em consequência, a virtude. Uma situação de violenta guerra civil irá deflagrar a perversão tanto na mais avançada civilização quanto na mais primeva tribo, e é até difícil prever qual sucumbirá mais facilmente ao horror e desespero.

Há também situações específicas que podem ter o efeito inverso, injetando sensibilidade e ternura em multidões pela manipulação de elementos estéticos. Uma boa atividade de grupo, sabendo explorar e fazendo aflorar nossa sensibilidade natural, pode levar às lágrimas de alegria e a demonstrações abertas de afeto até mesmo as pessoas mais recatadas a aparentemente frias. Na realidade, grupos numerosos são muito mais facilmente conduzidos pelas paixões do que pela razão. O discurso coerente e analítico sempre encontra dificuldades de compreensão, mas o discurso retórico inflamado pode fazer multidões reagirem rapidamente e agirem como um único organismo direcionado por uma única vontade, quer seja para o bem ou para o mal.

Isso decorre simplesmente do fato de que as emoções não apenas superam a razão pela força, mas também que se comunicam muitíssimo mais rápido entre as pessoas. Preciso enunciar ao menos algumas frases para fazer meus companheiros entenderem uma proposição, mas basta um olhar, uma expressão, ou um grito para fazê-los compartilharem instantaneamente minhas emoções.


29. O literalmente “chocante” experimento realizado pelo psicólogo da Yale Universtity Stanley Milgram (www.stanleymilgram.com) mostra com que facilidade pessoas comuns podem cometer atrocidades devido a tendência à obedecer autoridades. No caso, a emitir choques elétricos potencialmente letais e torturantes em sujeitos humanos de pesquisa, devido à predisposição à obediência. en.wikipedia.org/wiki/Milgram_experiment

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REGRA DE OURO

Tomando a liberdade de novamente repetir a mim mesmo, trago um trecho da antiga monografia onde defendi a completa independência entre Ética e Religiosidade.

Todos os grandes sistemas religiosos do mundo apresentam algum preceito similar à "Não faças aos outros o que não gostar que façam a você", ou seu inverso equivalente "faças aos outros o que gostaria que fizessem a você."
        Essa é a famosa Regra de Ouro das religiões, que está explícita em conceitos como: "Não firais aos outros com o que vos fere" Budismo "Nenhum de vós sois um crente até devotar pelo próximo o amor que devota a vós mesmos" Islamismo "Não façais aos outros o que se fosse feito a vós, vos causaria dor" Hinduísmo "O que não queres que vos façam, não façais aos outros" Judaísmo "Ame a teu próximo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as coisas" Cristianismo “A Natureza só é amiga quando não fazemos aos outros nada que não seja bom para nós mesmos” Zoroastrismo “Considera o lucro do teu vizinho como teu próprio e o seu prejuízo como se também fosse teu” Taoísmo “Julga aos outros como a ti mesmo julgas. Então participarás do Céu” Sikhismo “Na felicidade e na infelicidade, na alegria e na dor, precisamos olhar todas as criaturas assim como olhamos a nós mesmos” Jainísmo “Não faças aos outros aquilo que não queres que eles te façam” Confucionismo.
        A Regra de Ouro me parece a melhor candidata, se não ours concours, ao cargo de essência da Ética, talvez até mesmo possa constituir algum tipo de definição de BEM. 30

Frequentemente chamada de “Regra de Ouro”, “Regra Dourada” ou “Ética da Reciprocidade”, esse conceito tem a característica de ser fortemente intuitivo e facilmente aceito, embora também esteja sujeito a incompreensões. A maior parte das críticas à mesma advém de uma ampliação ou especificação excessiva do que seja bom ou de uma falta de sensibilidade que confunde valores universais com relativos.

É obvio que considero boas muitas coisas que outros podem não considerar, mas é ainda mais trivial que todos os humanos compartilham uma vasta gama de afinidades principalmente em suas necessidades mais primárias. Assim, basta nos atermos à nossas igualdades fundamentais para atestar a validade deste princípio de reciprocidade. Ao invés de, por gostar de Jazz, eu gostaria que neste momento meu companheiro de fila tocasse algum em alto volume em seu portátil, é preciso abandonar tal especificidade em prol da generalidade de que ninguém quer ser obrigado a ouvir uma música que não aprecia.

Foram dados então dois parâmetros, o da generalidade e o da negatividade. O primeiro mostra que quando nos referimos ao que gostaríamos, não estamos entrando no terreno das especificidades que nos diferenciam, mas sim nas generalidades que nos igualam. Lembremos que tendemos a ser mais iguais na dor que no prazer, e se divergimos quanto a que tipo de satisfação gostamos mais, convergimos que não queremos ser incomodados. Ao mesmo tempo, perante a dúvida entre o agir positivamente, e o não agir negativo, a prevalência do último é sempre mais prudente no que se refere a lidarmos em contextos desconhecidos.

Se eu soubesse que todos gostam de ouvir Jazz, poderia resolver o problema, mas a falta desta informação torna mais prudente não alterar uma estabilidade de coisas acrescentando um elemento que tem maior possibilidade de prejudicá-lo do que beneficiá-lo. Podemos ter dúvidas quanto a que tipo de carícia seria bem vinda, mas não há dúvida de que a agressão será mal vinda. O parâmetro negativo sempre tem maior possibilidade de acertar do que o positivo, principalmente no que se refere a sensações básicas, e, é sempre bom frisar, somos mais semelhantes em nosso princípio que em nossas realizações.


30. RÉLICA E ETIGIÃO – Desfazendo a Confusão. www.xr.pro.br/monografias/Relica&Etigiao.html, pág. 9.

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A maior parte das críticas à Regra Dourada costuma partir de sua violação, isto é, não tratá-la com o mínimo de boa vontade que todos gostam que suas idéias sejam tratadas. Caso contrário, não teríamos críticas estranhas como a de Kant, que, ao mesmo tempo que a acusa de ser vaga, nos apresenta um imperativo categórico tão vago quanto, que pode ser facilmente reduzido à Regra de Ouro, afinal, se uma conduta está de acordo com um princípio universal que deve considerar todas as pessoas como um fim em si, é evidente que se aplicaria a nós tanto quanto o aplicamos a outrem.

Mais problemáticas são as situações onde a Regra de Ouro envolve males maiores e bens maiores, que podem ser facilmente distorcidos. É fácil concordar que devemos obrigar as crianças a estudar, contrariando suas volições que são as mesmas que nós mesmos tínhamos, porque todos nós, afinal, concluímos que essa desagradável obrigação se deu em prol do benefício maior de nossa instrução. Ao menos é muito difícil encontrar quem lamente ter sido obrigado à alfabetização, a aprender as operações matemáticas mais básicas ou os conhecimentos mais elementares. (Ainda que haja quem lamente ter sido obrigado a desperdiçar seu tempo com estudos mais avançados, como logaritmos ou química orgânica, quando tais tópicos jamais lhe foram úteis.)

Por outro lado, essa mesma noção pode ser alterada para justificar atos sabidamente hediondos. Posso considerar que devo torturar uma pessoa até que ela aceite a ‘palavra de Deus’, porque isso estará sendo feito no melhor interesse dela, trocando o mau ‘menor’ do sofrimento físico pelo bem infinitamente maior da redenção no paraíso. Mas até mesmo isso é resultado de uma má vontade em se aplicar a regra de ouro, pois o parâmetro que temos para julgar a primeira situação é muitíssimo objetivo. O simples fato de que a virtual totalidade dos adultos acredita que foi mesmo bom ter sido obrigado a frequentar a escola, enquanto não temos nenhum meio de consultar os mortos para que atestem que valeu a pena terem sido torturados porque agora estão no paraíso.

Além disso, há de se convir que o sofrimento no primeiro caso é inegavelmente menor que no segundo, e ainda que a recompensa também o seja, fica claro que a distância entre os supostos estados sensoriais é largamente desproporcional. No primeiro, se há uma distância entre o incômodo do estudo forçado e o benefício da instrução, no segundo há uma distância infinitamente maior entre a dor hedionda da tortura e suposto prazer infinito da salvação. Disso podemos inferir que justificar condutas que implicam em sofrimentos intensos só seria viável não só com garantias inequívocas de benefício como na inevitabilidade de tal abordagem, como em casos de tratamentos médicos extremamente invasivos mas vitais e de eficiência garantida.

Ademais, em todas as situações que facilmente reconhecemos como justificáveis, nunca se aplicam males horrendos como a tortura física, mas sim apenas punições ou infrações incomensuravelmente mais leves. Bem como nunca estamos oferecendo mais do que satisfações claras e benefícios discerníveis, o que não se aplica a supostas graças transcendentes e absolutas.

Também, por um abuso interpretativo da Regra de Ouro, tem sido comum invadir países alheios sob a alegação de libertá-los de tiranias internas, afirmando que gostaríamos que o mesmo fosse feito para nos libertar. Mas, aparentemente, em todo e qualquer caso isso é feito ignorando-se a manifestação de opinião aberta dos próprios supostamente beneficiados, que mesmo admitindo o problema interno, rejeitam a ‘ajuda’ militar externa.

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Enfim, a Regra Dourada só pode ser invalidada mediante sua distorção direta, devendo ser evidente que a reciprocidade em questão é íntima, não podendo ser confundida com um abuso projetivo de nossas idiossincrasias atropelando as inegáveis similaridades estruturais e profundas que todos os humanos compartilham. A afirmação de que ‘o sádico é um masoquista que segue a Regra de Ouro’, por exemplo, é uma versão mais radical da falta de disposição em observar que não se trata de pensar que o “querer ser tratado” em questão tenha a ver com emulações e simulacros comportamentais externos, mas sim de uma subjetividade mais profunda que sempre recusa o sofrimento, mesmo no caso do masoquista, que apenas tem uma vivência estética desse aparente ‘sofrimento’ distinta da maioria, mas no fundo extrai prazer daquilo que se assemelha ao sofrer.

Tentativas de aperfeiçoar a Regra de Ouro, ainda que bem intencionadas, dificilmente poderão ir mais longe. A Regra de Platina, por exemplo, afirma que “Devemos agir para com os outros do modo como estes querem ser tratados.” O que acaba perdendo de vista o elemento mais importante da Ética da Reciprocidade, a similaridade fundamental entre os humanos, detectada pela simples percepção de nossa natureza essencial sensível. Esta Regra de Platina sugere que o que “os outros” querem pode ser diferente do que queremos, o que essencialmente será falso, e arrisca-se no terreno da preferência positiva, muito mais complexo e incerto do que o da negativa. Um dos problemas decorrentes é que alguém pode desejar ser tratado de um modo que exigisse o mal alheio. Se eu desejar que você me conceda todo o seu dinheiro, pela Regra de Platina, você deveria fazê-lo.

E enfim, tentar usar a Regra de Ouro para afirmar que deveríamos deixar de punir os criminosos, afinal também não gostaríamos de ser punidos mesmo que fôssemos culpados, apenas negligencia o fato de que foi criminoso em questão que violou essa regra, e que sua punição visa apenas tentar estabelecer uma reparação, prevenir a reincidência ou desencorajar novas ações correlatas. A Regra de Ouro é um preceito ético, não jurídico.

Tal como o ouro resiste a qualquer forma de corrosão, a Regra Dourada também resiste às tentativas de distorcê-la ou reprová-la, visto que tais sempre são feitas por meio de falhas conceituais, e a importância desse conceito fica evidente quando a associamos à Empatia. A Regra de Ouro nada mais é do que a expressão inevitável de uma percepção empática, da intersubjetividade universal. Abaixo de toda diferença que nos ornamenta, repousa a similaridade fundamental. Não importa o meio, aparência ou simulação envolvida, fato é que não desejamos o sofrimento, e portanto, não devemos infringi-lo aos outros.

O mesmo se dá com a compaixão, caridade, piedade, e outros termos similares que expressam modalidades empáticas, tão comuns nas tradições religiosas. Elas podem nos mostrar que o grande sucesso populacional das religiões, além de diversos outros e principais fatores completamente desconectados da ética, também pode ser explicado pela perfeita síntese e clareza que a Regra de Ouro apresenta, em contraste com a obscuridade de muitos sistemas éticos filosóficos.

 

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ESCONDENDO O OURO

O ouro em si não pode ser corrompido, mas pode ser escondido, soterrado sob camadas de sujeira, bem como pode ser limpo, polido e mostrado em toda a sua magnificência. A mesma coisa se aplica à Empatia. Ela é latente em qualquer Humano, quer seja na acepção antropônica, sensciente ou ética. No entanto, há várias formas de reprimi-la até sua virtual extinção, que nossas civilizações têm colecionado ao longo de nossa história.

Como disse o próprio Hume “...toda virtude, quando nos reconciliamos com ela sem muito esforço, é agradável.” 31, de modo que a ação motivada pela empatia não é árdua, mas sim espontânea, o que é desagradável é o efeito da empatia em nós quando nos deparamos com o sofrer alheio, e assim, a ação visa antes de tudo o alívio, que naquele momento, será mútuo. Como foi dito na Primeira Parte (Egoísmo X Altruísmo), não se deve imaginar que uma ação possa ter como ponto de partida o desinteresse para consigo próprio, o que é absurdo, mas sim que tenha como fundamento a harmonia entre o interesse próprio e o alheio, de modo que ajudar alguém É SIM fazer algo pela minha própria felicidade, na melhor hipótese, mas é também, além disso, fazer ao mesmo tempo a felicidade alheia, fazer do meu bem o de outra pessoa e vice versa. É compartilhar e realizar intensamente aquele sentimento de união que muitas tradições sugeriram ao longo da história. De que não estamos, ou não devemos estar, isolados uns dos outros, e sim ligados e integrados numa mesma natureza, como o princípio de Interdependência Budista prega, bem como éticas holísticas.

Mas isso também, infelizmente, não muda o fato de que a falta de hábito e a frequente dessensibilização do indivíduo acabam tornando-o tão mesquinho e reativo que trilhar de volta o caminho para a virtude e o engrandecimento interior pode se assomar como tarefa impossível, a ponto de parecer que fazer o bem ao próximo signifique necessariamente causar mal a si, como se a virtude fosse um produto físico sujeito à escassez, que precisasse ser acumulado e protegido desesperadamente. (Idéia que, curiosamente, nem se aplica devidamente mesmo às riquezas físicas, pois que o progresso histórico e econômico já mostrou que compartilhar ao menos parte da riqueza só aumenta a produção e termina beneficiando a todos, ainda que as desigualdades persistam em gerar outros problemas.)

Voltando ao tema, essa preciosidade que chamamos empatia possui sua base fisiológica. Muitos estudos já a associam aos Neurônios-Espelho 32, especializados em imitação. Sabemos que o hormônio mais facilmente associado à empatia é a oxitocina, como já foi detectado em estudos recentes 33, e também sabemos que o mesmo hormônio é usado para estimular o aleitamento materno, e evidentemente, o laço entre a mãe e o bebê, sendo um medicamento já em largo uso 34.

Sabemos também que este hormônio é o mesmo encontrado na mesma função maternal nos primatas superiores, similar a outros hormônios equivalentes nos mamíferos 35, e análogo até mesmo em animais mais primitivos. A experiência comum das crianças com seus cães de estimação costuma mostrar gentilmente que basta simular o som de um choro de um filhote para uma cadela imediatamente reagir de um modo graciosamente maternal, oferecendo suas reconfortantes lambidas.


31. História Natural da Religião, UNESP 2004 pag 117.
32. en.wikipedia.org/wiki/Mirror_neuron#Empathy
33. g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL1395518-5603,00-BONDADE+E+EXPLICADA+PELA+ACAO+DOS+HORMONIOS+DIZEM+CIENTISTAS.html
34. www.bulas.med.br/p/oxitocina-4625.html
35. matrice.wordpress.com/2008/08/21/a-forca-da-oxitocina

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Os casos mais flagrantes de solidariedade animal costumam envolver fêmeas cuidando de animais de outras espécies, que, como sabemos, podem se aplicar até mesmo à espécie humana, que além do romance “O Livro da Selva”, sobre Mogli, o Menino-Lobo, e do mito de Rômulo e Remo, tem seus exemplos factuais em casos como o das meninas lobo Amala e Kamala 36, encontradas na Índia. Também o simples altruísmo costuma ter nítido valor seletivo 37 em populações animais, bem como as evidentes relações de comensalismo, mutualismo e simbiose, em contraste com o predatismo e o parasitismo.

Em síntese, espero mostrar estar ciente da base natural de nossas virtudes, bem como nossos vícios, mas também que há algo mais nas virtudes que é exclusivamente humano. Ao mito bíblico parece ter escapado o fato de que não há mal algum que um ser humano possa causar que também não o possa ser feito por um animal, exceto, é claro, aqueles que dependem exclusivamente de recursos culturais. Isso deveria ser levado em consideração ao se explicar a entrada do mal no mundo como se fosse um ato única e exclusivamente humano, e que soa no mínimo injusto associar a origem do Mal à origem do conhecimento, quando o mais espontâneo seria o contrário, como já dizia Sócrates.

Recorro agora a uma explanação minha, originalmente surgida numa resposta ao comentário de um visitante de um de meus sites.

“Os animais também sofrem, e muito, mas não tem consciência nem conceito de Mal. Os humanos além de sofrer, conseguem conceituar o sofrimento, e dar um significado mais amplo ao mesmo, o que pode atenuá-lo ou piorá-lo. Alguém pode estar sentindo uma dor, mas pensar que aquilo é para o bem dela, atrelando-a uma satisfação que alivia a dor em si. Ou pode torná-la ainda pior adicionando a idéia de que seja um sinal de uma doença muito grave, preocupando-se antecipadamente com sua saúde.

Na minha concepção, a idéia de Mal surge do sofrimento em si, que existe na natureza. Praticamente todos os males de origem humana que nos afligem tem origem em impulsos naturais. Grande parte do Bem também tem origem natural, mas os humanos conseguem passar para um nível de complexidade maior, criando conceitos e exercendo boas ações que estão além do alcance dos animais, por falta de conhecimento, claro.

Por exemplo, está totalmente além do alcance animal criar uma vacina para impedir que se contráia doenças, inclusive para ser aplicada em animais. Também está totalmente fora do alcance deles criar uma arma biológica para exterminar espécies inteiras. Portanto, só o conhecimento permite elevar o Bem e Mal a tal nível. Porém, eles não são equivalentes, há uma assimetria.

É que criar a arma biológica é, no fundo, uma exponenciação de um potencial natural, que é o matar. Nesse caso, esse conhecimento só está hiper amplificando esse impulso agressivo original, impulso este que originalmente podia ser útil para manter a própria sobrevivência. Por outro lado, a vacina vai muito além disso, pois pode envolver uma noção de proteger espécies alheias inteiras num nível que transcende a mera sobrevivência, estando atrelado a princípios morais, noções de deveres e virtudes que não podem de modo algum ser acessíveis a instintos ou "proto mentes" animais. Assim, o Ódio tem base natural direta e limitada, apenas podendo ser elevado a níveis extremos, mas o Amor, (...) pode ser estendido num nível muito além da base natural.

Assim, embora o conhecimento amplifique o potencial para o Mal, ele amplifica ainda mais o potencial do Bem, tanto que nossa civilização cresceu cada vez mais e atingiu níveis de sofisticação intelectual, ética e científica


36. en.wikipedia.org/wiki/Amala_and_Kamala
37. Richard Dawkins, em O Gene Egoísta (1976), discorre no capítulo 5 sobre o altruísmo, de base egoísta, como uma Estratégia Evolutivamente Estável, capaz de beneficiar uma população e deixá-la em vantagem em relação a outras onde há menos altruísmo.

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anteriormente impensáveis. As nossas dificuldades derivam principalmente de que nossas heranças naturais ainda são fortíssimas, tanto para o Bem quanto para o Mal, mas o último é sempre mais fácil, por isso a tendência à corrupção.

O que explica a grande quantidade de mal em nosso mundo não é nossa tendência maligna predominante, seja lá o que isso for, mas o puro e simples fato de que piorar é sempre mais fácil do que melhorar.” 38

Com tudo isso, quero mostrar que apesar de ter uma origem natural, somente o advento da humanidade permitiu elevar o sentimento de empatia, e outras virtudes, a um nível tão amplo que permitiu a emergência de todos os sistemas morais, místicos, jurídicos e éticos. Não se trata apenas de uma proto empatia entre a mãe e o bebê, mas entre quaisquer seres humanos, e mesmo entre os humanos e as outras formas de vida, e mesmo com entes imaginários!

O resultado final, é que se a pressuposição da bondade intrínseca humana for ingênua, e o da neutralidade mais adequada, por outro lado o da maldade intrínseca é completamente descabida, visto que nada há de ruim no ser humano que não seja de bagagem nitidamente natural, e assim, faria mais sentido afirmar que a maldade intrínseca está na natureza.

A sensciência tornou um benefício potencial numa virtude, visto que a empatia pode ser vista como uma poderosa meta-representação, isto é, uma imagem mental de uma idéia. Sabemos que os animais, ao menos os mais complexos, fazem representações mentais, o que lhes permite a memória. Ao ver que está sendo enchida a bacia e que se está preparando o sabão e escova, um cão, por aprendizado, pode ser capaz de deduzir que está prestes a enfrentar a terrível sina de um banho, visto que pôde criar uma representação mental para isso, que é um evento. Mas ele não tem nenhum meio de, ao fugir, comunicar a seu companheiro sobre os planos de seu dono, de modo que este possa também se antecipar e desaparecer de vista.

Os humanos, além de representações sensorialmente baseadas, podem criar representações de representações, por meio de símbolos, conceitos e idéias, o que nos permite desenvolver a linguagem, todo o nosso universo simbólico mental, e aperfeiçoar nossa projeção de sentimentos a níveis completamente inacessíveis aos animais.

A empatia está nesse grupo. Ao contemplar o outro, e tomar nossa própria experiência, deduz sua interioridade por meio de uma meta representação de nossa própria interioridade, a alma da intersubjetividade. Com isso podemos fazer algo impossível aos animais. Não estamos acostumados a ver nenhum mamífero demonstrar claramente que está incomodado com o evidente sofrimento alheio. Os bois caminham para o matadouro mesmo vendo seus companheiros sendo abatidos, e percebendo claramente seus gritos de dor e convulsões terminais. E, exceto talvez os primatas superiores, os animais não se incomodam em assistir a morte de um membro de sua própria espécie, ou de outra, podendo no máximo reagir aos estímulos sensoriais mais óbvios como a excitação gerada pelo som.

Essa manifestação empática é uma exclusividade humana, (exceto é claro, a proto empatia entre a genitora e seu filhote) e ao menos até que se demonstre um equivalente nos primatas superiores, ou talvez nos golfinhos, é algo que a natureza em si não tem para nós ensinar de forma clara. E talvez, tenha sido exatamente a negligência a esse sentimento que nos causou a ilusão de nossa perfídia natural, visto que sem ela, de fato, está aberta a Caixa de Pandora que permite uma nova e impressionante onda de males, amplificados pelos nossos poderes culturais, penetrarem no mundo causando um estrago jamais acessível aos pobres animais.


38. www.xr.pro.br/VISITANTES/VISITANTES741.HTML#754

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Infelizmente, como a dureza da vida selvagem tende a embotar a empatia, e ela foi se manifestando aos poucos, tão logo começou a surgir, suas benesses e potencialidades foram associadas aos deuses, que não hesitam em se apropriar e monopolizar nossas maiores virtudes, sendo o advento do monoteísmo o supra sumo de tal monopolização, condenando a humanidade à perpétua pecha de totalmente degenerada (que viria a ser ainda mais radicalizada no Calvinismo e Jansenismo) e dependente da boa vontade, por que não dizer da empatia, de um ser superior, que para nossa sorte, por vezes se apieda de nós.

Desse completo sequestro da virtude humana, que viria a ser denunciado de um modo mais aberto primeiramente por Feuerbach 38, resulta o principal motivo pelo qual a humanidade deve se submeter à religiosidade, da qual dependeria para a simples moralidade, e então a mesma qualidade que foi roubada seria então devolvida, porém sob a pena de um pagamento, no caso, o da aceitação de todo um sistema de crenças adicional, que no fundo custa nada menos do que a própria individualidade. Em síntese, um espetacular caso de extorsão, onde algo vital nós é roubado, para só ser devolvido mediante um preço bastante alto.

Daí que as religiões jamais tenham de fato conduzido a sociedade à virtude, quer num sentido espontâneo ou mitômano (e o maior sucesso é sempre nesse último), é algo inevitável. E pode ser, entre outras coisas, explicado pelo fato de ao mesmo tempo que nos incita a fazer o bem, embora esse costume se confundir com observação de ritos inúteis, ainda por cima nos dá exemplos terríveis de prática do mal oriundos da própria divindade que deveria ser nossa referência. São tantos atos cruéis praticados diretamente pelo ser divino, como o envio de pragas, terremotos, inundações e chuvas de meteoros sobre populações indefesas, bem como de manipulações diretas de pessoas que foram obrigadas a fazer o mal bem como de inocentes que foram cruelmente massacrados, que não é possível sequer imaginar que isso não tenha um efeito nocivo na mente dos seguidores.

Como pode ser despertado o que há de melhor numa pessoa, quando ao menos metade do que a referência suprema do Bem faz é de uma perversidade inalcançável a qualquer ser humano? A referência estética que possuímos da divindade parece uma das maiores responsáveis pelas dificuldades para que possamos aperfeiçoar melhor nossa empatia, e espero que isso venha a ficar mais claro nos próximos capítulos, ao nos aproximarmos no fim deste texto.

Atentemos agora, para o fato de que há uma nítida correspondência entre a predisposição em condenar uma etnia inteira pelo suposto crime de seus antepassados, no caso a execução de Jesus Cristo pelos hebreus, com a teologia que prega ser de procedência divina a condenação de toda humanidade devido ao erro de seus dois míticos progenitores. Bem como a condenação da humanidade à Era de Ferro, pelos deuses olímpicos, pelo infração cometida por um Titã, no mito de Prometeu, bem como pela imprudência de Epimeteu, ao deixar a Caixa sob os auspícios de Pandora. Num evidente espelhamento do mito hebraico da queda do paraíso.

Parece estranhamente espontânea à mentalidade religiosa que os filhos sejam punidos pelos crimes de seus pais, a exemplo dos primogênitos egípcios no mito de Moisés. Bem como que etnias e nações inteiras sejam exterminadas devido a não terem sido arbitrariamente escolhidas pela divindade como sua favorita, a despeito de seus incessantes defeitos. O que pode ser facilmente observado nas cruzadas dos israelitas contra nações pagãs nas lendas do Pentateuco. Não que se possa usar isso recriminar os mitos em si, que são meras expressões


39. A Essência do Cristianismo (1854)

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simbólicas da psique, mas principalmente no modo de interpretá-los literalmente, como fatos históricos, e por decorrência tomá-los como parâmetros a serem seguidos. Como tamanho mau exemplo, não é de admirar que a história registre tantos eventos que hoje nos chocam, como se fossem expressões de deveres sagrados a serem seguidos, ou manifestações da mais pura virtude divinamente inspirada.

Embora não se possa negligenciar fatores mais determinantes para terríveis calamidades que se abateram sobre a humanidade, que são nada menos que as agruras do mundo físico, em especial escassez de recursos, e os impulsos primitivos que não sendo devidamente administrados terminam por explodir de modo muitíssimo mais destrutivo na humanidade do que em outras espécies, devido a nosso poder cultural amplificar tudo o que façamos, não se pode também esquecer que essa tragédia termina por se retroalimentar por imagens referenciais nas quais nos espelhamos como padrões a respeitar.

Acima de tudo, soma-se a construção de uma identidade cultural que associa nossa felicidade e nosso próprio sentido existencial como sendo dependente da submissão a uma hierarquia procedente de um parâmetro que força uma relação entre virtudes supremas e transcendentes com entidades míticas tão primitivas quanto os povos que as criaram. A tragédia final ocorre quando uma civilização inteira passa a aceitar seu sentido existencial como determinado por uma divindade criadora que a designou para servi-la, em perfeita analogia ao sentido existencial que um senhor tem para seus escravos, ou o rei para os seus vassalos, e ainda aceita a pecha de corrompida por ter rompido com tal divindade.

A injustiça essencial intrínseca a esse imaginário império cósmico parece escapar até mesmo às melhores mentes quando tentam romper com tradições milenares mas terminam por inadvertidamente conservar os fundamentos nas quais se apóiam, e ou descartam por completo parâmetros de universalidade como se estes fossem inerentes e exclusivos aos mitos que os cooptaram. (Tema melhor desenvolvido no Anexo I.)

 

 

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ESTÉTICA

A sensibilidade estética, possivelmente mais do que qualquer outra coisa, costuma estar associada a uma forte tendência ao espontâneo compartilhamento. O egoísmo dificilmente consegue ser aplicado ao caso. Quando alguém contempla e se deslumbra com uma obra de arte, parece jamais ocorrer de guardar aquela experiência unicamente para si, impedindo qualquer outra pessoa de usufruir da mesma. Pelo contrário, o impulso espontâneo é imediatamente compartilhá-la, querer e incentivar outras pessoas a vivenciar a mesma experiência.

Como já visto, empatia também está associada à percepção estética, tendo sido inclusive o mais antigo uso do termo. Trata-se evidentemente de emular sensações evocadas pela obra de arte, possivelmente conectando o espectador com o autor. Mas mais importante é notar o quanto isso demonstra nossa necessidade e tendência espontânea a querer espelhar em outrem nossos próprios sentimentos.

A disposição em compartilhar a experiência estética é resultado direto do impulso de comunicar sentimentos, de fazer com que outros se sintam como nós sentimos. Talvez a forma mais efetiva de atestar isso é pensar no quanto é desagradável quando estamos comovidos com um filme, mergulhados num sentimento de piedade e compaixão, e um companheiro está experimentando uma sensação completamente diferente, como sarcasmo, ironia ou ridicularização.

É possível descrever a maior parte da experiência humana, se não toda, como uma incessante tentativa de tornar o nosso mundo interior e o mundo exterior, inclusive os interiores alheios, o mais similares possível, e ficamos muito agraciados quando outras pessoas concordam com nossos argumentos, compartilham nossos pontos de vista e convergem em nossas sensibilidades.

Esse impulso se dá bilateralmente. O mundo (não importa de que natureza) nos envia seus fenômenos, que ajudam a definir nosso mundo mental interior. Pela representação, temos então cópias virtuais do mundo sensível. Esse é o primeiro movimento, do exterior ao interior, isso se não considerarmos a hipótese de que, inconscientemente, estamos na verdade fazendo o exato oposto. De qualquer modo, esse oposto está ao menos parcialmente ocorrendo, visto que projetamos parte de nossa interioridade no mundo, e assim, temos uma via de mão dupla, com o interior e o exterior tentando se sincronizar, o que virá a ser intensificado à medida que tentamos entender o mundo, quer de uma forma passiva, quer ativa, projetando nossos conceitos nele. O mesmo se dá quanto o transformamos, fazendo com que se assemelhe mais ao nosso interior.

O passo mais radical, uma vez que moldar o mundo à nossa imagem e semelhança é um empreendido dificilíssimo onde só obteremos um ínfimo sucesso, será então tentar moldar os mundos virtuais dos outros seres conscientes. Posso não ter sido capaz de mudar os estados de coisas, mas posso convencer outras pessoas a percebê-los como eu percebo. Sendo o mundo mental virtual individual muito mais maleável do que o mundo externo compartilhado, nossa grande empreitada acaba sendo tentar identificar o máximo possível o nosso mundo interno com os mundos internos alheios.

Disso podemos derivar porque a arte, ao nos fascinar, incita-nos a compartilhá-la, visto que nos identificamos com algo que queremos então memeticamente 40 reproduzir. É por isso também que a crítica de arte tem um potencial tão grande para nos emocionar. Depreciações duras de obras que gostamos soam como ofensa pessoal, bem como exaltações a coisas que detestamos.


40. Ao final do Livro O Gene Egoísta, Richard Dawkins lança as bases de uma possível nova ciência cognitiva, a Memética, que trata os “entes” informacionais como se fossem genes auto duplicantes, lutando a todo custo pela perpetuação.

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Mais importante é lembrar que a apreciação estética tanto pode ser uma projeção de sentimentos que já temos, que encontram uma expressão adequada de nossa interioridade, como pode ser uma forma de mudar nossa interioridade, e, mais crucial ainda, que isso não ocorre somente com obras de arte. Também lidamos com sistemas de pensamento de modo fortemente estético, nos identificando de imediato com aqueles que ressoam nossas sensibilidades, e rejeitando os que nos estranham, ou sendo, afinal, mudados pelos mesmos, ou mudando seu entendimento por meio de nossas particulares interpretações.

Mas o meio mais rápido e marcante de comunicação externa com nossos conteúdos externos é a arte, por despertar de imediato nossas emoções, e intuições, que sendo ambas sintéticas e subjetivas, sempre se confundem. Por isso os exemplos apreendidos de forma estética, e sintética, costumam provocar imitação muito mais imediata dos que os discorridos de forma analítica. A criança não demora a imitar as outras pessoas, assimilando espontaneamente seus comportamentos, os jovens são profícuos em seguir exemplos e ignorar admoestações, apesar da estúpida pretensão de alguns mais velhos em sugerir o contrário 41 , e, como já comentado, o “contágio” emocional pode dominar uma população inteira muito antes de ser possível sequer formular uma frase.

Algumas transmissões emocionais podem conter conteúdos muito claros e precisos. A apresentação de um ato virtuoso, com o devido ornamento, pode inspirar de imediato à prática de atos similares, mas nem sempre os conteúdos esteticamente transmitidos são facilmente discerníveis, por vezes, é impossível identificar-lhes o conteúdo.

O exemplo mais significativo e á Música. Essencialmente, ela não tem significado. Uma sequência harmônica sustentando uma melodia específica é, inicialmente, apenas isso, um aglomerado de sons, e só poderá se tornar “a música de tal coisa” após ter sido submetida à constante associação. Mesmo assim, uma música é capaz de despertar sentimentos de um modo profundo, conseguindo produzir um deslumbramento puro, sem associação original com conteúdos objetivos, falando somente à insondável subjetividade de cada um. Como, em geral, somos muito parecidos em muitas de nossas sensibilidades, é comum que uma mesma música desperte sentimentos similares em muitas pessoas, e com isso, associá-la a alguma idéia mais objetiva, pode ter o efeito determinante de mudar nossa percepção da própria idéia em si, que antes poderia nos ser indiferente ou incômoda, com a música, passa a ser agradável.

Sintetizando, não à toa o tema da empatia foi inicialmente desenvolvido na estética, visto que é de sua natureza um compartilhamento sentimental que permite decisiva influência. E é sobre esse aspecto que entramos no tema terminal desta monografia.


41. Refiro-me ao dito “Faça o que eu digo mas não faça o que eu faço.”

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POR UMA ESTÉTICA DOURADA

Vimos ao longo deste texto que é possível descrever toda a ética sob o conceito central da empatia, como Hume e Smith já o haviam ensaiado. Vimos que essa abordagem, apesar de marginal na tradição filosófica, tem ganhado importância recente, em especial com o avanço das ciências naturais, e vimos que a empatia pode ser associada ao que há de mais primário na capacidade humana de se relacionar com seus semelhantes, a intersubjetividade, bem como pode ser diretamente conectada aos mais diversos elementos das distintas tradições éticas.

Mas, como exposto, a pretensão normativa deste texto é assumida, num marcado viés progressista que visa contribuir para a sociedade, e então, diferente dos escoceses do século XVIII, pretendo explicitar aqui o quê deveríamos fazer para um aperfeiçoamento do sentimento de empatia, que resultaria num aperfeiçoamento de nossas relações humanas, que são o que há de mais importante em nosso mundo.

Talvez, o grande problema dos sistemas de moral tenha sido se configurar de um modo nitidamente legislativo, normatizando por meio de regras explícitas e claras a serem seguidas, e então passando a julgar as ações de acordo com a obediência ou não dessas regras. (Ou serem simplesmente incompreensíveis.) Essa abordagem sempre resultou em caducidade, e suas normas explícitas não resistem muito ao tempo, mesmo porque, frequentemente, terminam por confundir Ética e Moral, preconizando como se fossem universais conceitos que só fazem sentido num determinado contexto. E enfim, os únicos elementos que resistem ao tempo são aqueles que já estão previsto há milênios, como a Regra de Ouro, para os quais não há necessidade de se construir um novo sistema.

Não é, nem de longe, o que pretendo fazer aqui, portanto, não apresentarei nada similar a um códice de regras, mas sim recomendações para estimular o sentimento empático exclusivamente por meios estéticos. Os filósofos quase sempre notaram que devido a associação entre o Belo e o Bom, dever-se-ia pintar o primeiro com a justiça do último, subordinando a Estética à Etica, a Emoção à Razão. Penso, no entanto, que é melhor fazer o inverso. Sendo a empatia, naturalmente, um sentimento, devemos antes condicionar o Bom ao Belo, pintando este primeiro com a beleza deste último.

Se uma imagem vale por mil palavras, a simples exibição de uma boa ação deveria superar em eficiência contínuas admoestações, e se por outro lado, por vezes uma palavra, em especial um conceito abstrato, pode valer por mil imagens, no caso que nos interessa, todos estariam relacionados ao nosso modo de agir para com os outros, que podem ser sintetizados esteticamente.

Portanto, o que proponho aqui é uma incitação estética. Jamais brusca, nunca autoritária, mas sempre pautada naquilo que, no fundo, todos apreciamos, a contemplação do belo e do justo. A união do útil ao agradável. Não se trata, portanto, de nenhuma pretensão em alterar a Natureza Humana. Pelo contrário, mas sim de manifestá-la de um modo mais espontâneo, livre dos dogmas, dos medos e das amarras culturais que insistem em massacrá-la desde a mais tenra idade, desde os primórdios da história, tentando desesperadamente transformar o indivíduo num joguete de forças culturais inconscientes, como se já não bastasse ser um joguete das forças da natureza.

Os antigos filósofos, por exemplo, se preocuparam muito em fornecer bons conselhos e regras de conduta, e muito pouco em perceber o que sua produção artística, muito mais sugestiva, oferecia. Assim não fosse, seria difícil crer que tantos elementos nada edificantes foram passados de geração em geração por suas tragédias e comédias, marcando a civilização

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com muito mais profundidade do que suas bem intencionadas mas sutis recomendações. Ao mesmo tempo que recomendavam a prática, e a contemplação, do Belo e do Justo, seus espetáculos teatrais desfilavam toda sorte de injúria, crueldade e perversão que, em si, não são o problema, mas sim o modo aparentemente passivo com que eram recebidos. Estranho perceber que a mesma civilização que nos deixou tantos bons conselhos jamais pareça ter se incomodado com o fato de suas artes maiores estarem sempre a nos mostrar a perversidade dos deuses como coisas naturais, a ponto de em momento algum haver sequer um comentário sobre o no mínimo incomodo fato dos mortais serem punidos por crimes que foram deliberadamente obrigados a cometer por forças muito maiores que eles, e contra os quais resistiram bravamente. 42

Esse mesmo descaso estético mitológico com a justiça e a beleza se transferiu ao monoteísmo posterior, onde toda a humanidade é punida pelo crime de seus pais e onde todas as perversões de uma divindade iracunda e vingativa eram expostas ao mesmo tempo que se proibia qualquer questionamento sobre o porque disso provir de uma fonte que supostamente era também a origem de todo o Bem e Beleza.

Descaso similar contaminou a produção de fábulas e contos infantis onde a tragédia se abatia contra ingênuas e indefesas crianças, não por terem se comportado mal, mas apenas por pura fatalidade, e jamais isso ser acompanhado de algum comentário relevante a respeito, relegando a “moral” da estória exatamente aquilo que uma “moral” pode no máximo ser, um preceito tempo local restrito a uma cultura.

A situação chegou aos séculos mais recentes desafiando a genialidade mesmo dos mais ilustres pensadores, impedindo o notável Kierkegaard de perceber que mais óbvio do que conceder a Abraão uma suspensão de juízo atribuída a uma superioridade moral transcendente, seria demonstrar que é impossível justificar o infanticídio divinamente inspirado pelo simples fato de este destruir por completo qualquer senso ético de um homem em prol de um delírio esquizofrênico cuja procedência é indiscernível, podendo ser divina, diabólica, psiquiátrica ou meramente proveniente de algum artifício humano perverso. 43

Os dois últimos séculos viriam a experimentar uma elevação em nossa sensibilidade. Os irmãos Grimm adicionaram alguma decência às estórias infantis, e nossos heróis passaram a se conformar de um modo mais explícito a causas nobres, ainda que sempre caricaturadas, e passamos a proteger nossa infância dos horrores da uma sociedade que perpetrava execuções em praça pública por esquartejamento, tortura e sessões de humilhação, bem como passamos a não mais tolerar queimar pessoas vivas em fogueiras por crimes imaginários baseados em fábulas, e, ao menos em nossa multi-cultura chamada de Civilização Ocidental, demos passos significativos no sentido de aumentar a sensibilidade da sociedade.

Parto aqui da idéia de que, embora os passos mais importante já tenham sido dados, ainda há muito o que fazer, e que pelo fato de qualquer progresso humano se dar com altos e baixos, e até com notáveis retrocessos, exige que sejamos sempre atentos aos possíveis resultados que a exploração estética pode exercer sobre a mentalidade.


42. Abordei várias vezes temas como esse em monografias como Kaguyahime - A Princesa da Lua (www.xr.pro.br/monografias/Kaguyahime.html), O Caos e os Anjos (sobre ”O Queijo e os Vermes”)(http://www.xr.pro.br/Monografias/Caos&Anjos.html), Hérois da Areia (www.xr.pro.br/monografias/herois_da_areia.html) e Deus Me Livre (www.xr.pro.br/monografias/DEUS_ME_LIVRE.html).
43. Mais uma vez, recorro à RELICA & ETIGIÃO, onde desenvolvi a questão de COMO SABER SE ALGO VEM DE DEUS? (página 14). Ou, como saber se uma instrução divina é justa? Pois se nós a julgamos para saber se é louvável, então somos nós que decidimos, não precisando então de divindades para proceder corretamente, mas se não podemos fazê-lo, então tudo o que a divindade ordenar é bom, não importa quão grotesco e cruel seja. É basicamente isso que constitui a chamada Ética de Princípio, em que o ato é pressuposto como Bom independente do que seja.

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O efeito mais deletério que pode-se se ter sobre a mente de um indivíduo ou de um povo é expô-lo a constantes contradições que lhe deixam preso a dilemas insolúveis, destruindo qualquer possibilidade de permitir-lhes saídas racionais e com isso embotando lhes o juízo. Cultivar a irracionalidade já é suficientemente ruim, mas talvez ainda pior seja cultivar-lhes a insensibilidade, e pior ainda fazer ambos simultaneamente.

Como isso tem acontecido em nossa civilização?

Ao mesmo tempo que temos produções artísticas louváveis, que nos inspiram os melhores sentimentos e nos fornecem exemplos de virtude, também temos sido submetidos aos mais incessantes maus exemplos que nos afetam não pelo simples fato de serem apresentados, mas pelo modo como são expostos sem uma devida crítica, permitindo que sejam absorvidos como se fossem parâmetros tão louváveis quanto os que prontamente inspiram nossa admiração. 44

Antes de adentrar o mérito mais central, recorro a um periférico que, por si só, pode ser plenamente revelador. Existe correlação entre o teor da produção estética de uma nação e sua saúde social, cultural, política e econômica? A julgar por alguns exemplos, como a já citada correlação entre a perversidade divina e condutas étnicas antiéticas, parece que sim, e podemos começar observando nosso país, e propondo a pergunta: Onde estão os referenciais estético-éticos brasileiros? Mais nuclearmente: Onde estão nossos heróis?

Quando me refiro a heróis, não estou pensando sobre bem feitores da sociedade, mas sobre símbolos. Toda civilização se edifica sobre valores estéticos que ajudam a moldar sua cultura, e destes valores, os heróis míticos costumam ser referência fundamental, a ponto de os heróis reais serem posteriormente mitificados no mesmo teor, contribuindo com a auto estima nacional.

Um herói dessa categoria reúne três características bem claras. Em Primeiro lugar, ele possui o conteúdo ético, isto é, ele luta pelo que facilmente reconhecemos como Bom. Em segundo, ele tem a força para se impor sobre o mundo, sendo capaz de transformá-lo e efetivamente torná-lo um lugar melhor. E em terceiro, ele é, ao menos parcialmente, bem sucedido em sua missão.

A história registra milhares destes mitos, sendo Odisseu, Hércules e Édipo os mais antigos, ainda que alguns tenham tido um trágico e injusto destino final após cumprirem suas missões. As lendas arturianas, do Anel dos Nibelungos, das Mil e uma Noites etc., estão repletas de estórias onde um herói surge para mudar um estado de coisas, e ainda que recebam como recompensa a tragédia, ainda restam como referenciais louváveis a ponto de seus correlatos reais passarem a ser-lhe associados como se fossem seus descendentes, pelo simples fato de terem tornado o mundo aparentemente melhor.

Nos últimos séculos, todas as nações contaram com diversos símbolos edificadores, quer fossem heróis míticos, literários ou mesmo reais, que ajudaram a canalizar a imaginação das pessoas por referências admiráveis que inspiram e servem de exemplo. Na era da cultura pop, essa tendência sofreu algumas modificações, os super-heróis e os heróis do cinema e literatura perderam, em sua maior parte, a característica revolucionária que seus predecessores tinham,


44. Numa série de ensaios iniciados em O Gênio do Mal www.xr.pro.br/ENSAIOS/Genio1.html, abordei a questão da associação da Maldade à Inteligência, reproduzida maciçamente na mídia, onde os heróis quase sempre se submetem à acríticos lugares comuns, e os vilões praticamente monopolizam qualquer reflexão crítica.

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mas mantiveram o referencial moral e a notória eficiência com que obtinham objetivos compartilhados pelos seus apreciadores. 45

Em todos os casos, eles servem como catalisadores de uma ordem de coisas, exemplos de conduta e inspiração. Podemos não ter os poderes dos ídolos imaginários, mas podemos ter suas virtudes. E ainda que muitos deles estejam contaminados por preconceitos de sua época, que reverberam até hoje, ou estejam a serviço de ideologias específicas, não altera o fato de que continuam constituindo referenciais com os quais uma população gosta de se identificar, e praticamente toda grande nação os tem em grande quantidade.

Quando nos voltamos para nosso próprio país, a ausência de referenciais positivos é tão gritante que abraçamos de imediato qualquer candidato a símbolo que possa surgir, desde esportistas, guerrilheiros estrangeiros ou personagens policiais cinematográficos torturadores. Isso tem um impacto direto na auto imagem de uma nação, que retroalimenta quaisquer outras distorções constitutivas. Embora existam alguns ícones heróicos em nossa produção cultural, eles são praticamente desconhecidos, e estamos mais habituados a personagens que flagrantemente são péssimos exemplos de caráter, que vão desde boêmios e pedófilos a golpistas e traficantes de drogas. E quando são éticos, são fracos, não passando de vítimas das tragédias que protagonizam, e mesmo quando são éticos e não fracos, acabam, de um modo ou de outro, derrotados. Não é novidade que a auto imagem do brasileiro é depreciada.

Esse simples exemplo serve para ilustrar que há uma correlação entre valores éticos de um povo e sua produção artística, e assim atenta para o fato de ser natural que um povo orgulhoso de si possua símbolos estéticos edificantes, muitas vezes em demasia.

Mas esses símbolos heróicos, por si só, não são suficientes para ajudar a aperfeiçoar nossa empatia, visto que muitas vezes os heróis estão associados a violência e desprezo pelo inimigo. A dimensão estética que quero destacar é aquela que atinge diretamente nossa potencialidade empática. Aquela que, na ausência de eventos sociais mais drásticos para atrofiar nossa sensibilidade, se apresenta na produção artística na forma de violência, crueldade e toda uma estética que por vezes é considerada visualmente atraente, mas que evidentemente aponta para ações que se concretizadas em nosso mundo real, seriam consideradas hediondas.

Estamos acostumados, desde a mais tenra idade, a consumir uma produção midiática que se não explora a violência, compactua com ela, e que, ainda pior, tenta despertar um humor perverso, que se obtêm por meio da contemplação do sofrimento alheio, em geral de uma forma cômica.

Os desenhos animados norte americanos supostamente infantis que acompanharam nossa geração, e não falo dos mais recentes, mas dos de mais de 30 a 40 anos, praticamente não conseguiam fazer piadas visuais que não fossem baseadas na agressão, humilhação e tortura física, e a grande maioria do público que se acostumou com isso parece mesmo incapaz de percebê-lo, embora aponte imediatamente qualquer violência perfeitamente equivalente nas produções atuais que seus filhos assistem. E mesmo que na maioria dos casos tais produções apresentem uma clara estilização que, entre outras coisas, trate os personagens como seres indestrutíveis, elas ainda apresentam elementos que podem ser facilmente identificados em nosso mundo real.


45. Esse tema foi explorado na monografia Heróis da Areia, www.xr.pro.br/monografias/herois_da_areia.html , que considera “Sub-Heróis” os super-heróis da produção cultural atual devido a ausência de sua característica revolucionária, e sua submissão à moralidade atual.

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Mais interessante é notar como a acomodação a certo tipo de estética parece nos tornar incapazes de perceber a violência em nós mesmos, mas nos incitam em vê-la em outros. Com o advento dos desenhos japoneses no Brasil, muito se comentou a respeito de sua violência. Costumamos compará-los aos produtos que já estávamos habituados, como se estes fossem completamente inocentes se comparados à produção oriental, que, por sinal, tinha a mesma impressão sobre a ocidental.

Ninguém poderá negar que há também uma estética violenta na produção japonesa, mas, curiosamente, há uma diferença crucial que pode ser notada inequivocamente desde que foquemos a atenção. É que a violência japonesa (exceto em algumas produções mais restritas) é feita com o intuito de chocar e jogar o público num sentimento de revolta contra o vilão (recurso também usado na produção ocidental). E tem sido assim até hoje, numa fórmula incrivelmente repetitiva e tediosa praticamente padronizada. Por outro lado, embora seja visualmente mais estilizada e tomada como menos “séria”, a violência dos desenhos norte americanos clássicos é normalmente feita com o intuito de explorar nossa perversidade e nos fazer rir do sofrimento do personagem, nunca desenvolvendo qualquer repulsa pelo autor da agressão, que frequentemente é visto como o “herói”.

Dessa forma, a violência dos desenhos ocidentais clássicos em muito parecem embutir uma estética comparável ao da Ética de Princípio, onde o personagem apresentado como “bom” está livre para praticar qualquer ato, com a prerrogativa de ser o herói da estória. Seus atos, não importam quais sejam, nunca são vistos com repreensão, não são condenados, e por outro lado o “vilão” pode ser incessantemente agredido e torturado, por que dele não se espera empatia alguma, afinal, é o vilão! E embora as fórmulas mais recentes tenham se diversificado enormemente, essa tradição clássica ainda permanece em exemplos contemporâneos.

Creio que isso seja sim um reflexo de uma tradição que se acostumou a defender valores morais não com base em proposições claras, mas na simples divisão maniqueísta de Nós e Eles. Richard Dawkins faz um relato impressionante de uma experiência realizada pelo psicólogo George Tamarin 46, com cerca de mil crianças israelenses, onde era narrada a saga de Josué invadindo Jericó e promovendo um massacre, inclusive de mulheres e crianças, a mando de Deus. Era então perguntado se Josué agiu corretamente, e 66% das crianças entrevistadas disseram que sim, justificando seus argumentos basicamente com os mesmos conteúdos previstos na Torá, como a obediência a Deus e a necessidade de eliminar as religiões pagãs.

No grupo de controle, com 168 crianças, foi fornecido o mesmíssimo relato, porém com os nomes trocados, omitindo o contexto hebraico e deslocando a cena para uma ambientação na China antiga. Desta vez, 75% das crianças reprovaram a atitude do personagem que, no caso, foi referido como General Lin. Em resumo, no mesmo contexto cultural onde 75% das crianças condenaram um ato claramente anti-ético, apenas 26% o fizeram quando o mesmo ato foi praticado em nome de sua própria divindade, e curiosamente, dentre estes, muitos se justificaram pelo fato de que Josué não precisava ter destruído todos os bens e matado todos os animais, mas que poderia tê-los saqueado para o povo de Deus.


46. Deus, Um Delírio. Cap. 7 pág. 329-332. Em elimaxinanutshell.blogspot.com/2010/01/general-lin.html há uma versão on-line em português.

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Como se não bastasse a inércia sócio-cultural que ainda impulsiona milhões de pessoas, mesmo em nossa civilização ocidental, a abdicar da própria consciência e sensibilidade em prol de uma moralidade genocida fossilizada 47 (visto que uma grande porcentagem de cristãos adultos, especialmente protestantes, tem seguramente a mesma opinião dessas crianças judias), ainda temos também produções culturais que falham em destacar que a ética não é monopólio de um povo, nação, tradição ou grupo qualquer, mas que deve ser manifestada sobretudo pela conduta prática, orientada pela sensibilidade. Infelizmente, a força da tradição maniqueísta em nossa mentalidade é absolutamente inversa à situação de ostracismo histórico da antiga religião de Maniqueu.

NÓS X ELES, O BEM X O MAL

A empatia costuma espontaneamente se intensificar com o desenvolvimento cognitivo e o amadurecimento. (E por isso mesmo, muitos terminam por bloqueá-la, conscientemente ou não, por uma simples questão de autopreservação emocional.) Visto estar associada à evolução cognitiva, as crianças demoram algum tempo para consolidá-la em maior plenitude.

Enquanto adultos se chocam com o fato de seus filhos assistirem cenas violentas na mídia, é fácil observar que as crianças parecem se incomodar menos do que os próprios adultos, que são muito mais sensíveis quando, inconscientemente, desarmam suas defesas e abrem sua sensibilidade como esperam que as crianças espontaneamente façam. Os mesmos pais capazes de ver cenas chocantes sem se incomodar, e até se divertindo, costumam ficar imediatamente perturbados ao ver que as mesmas estão sendo contempladas por suas crianças, num exemplo nítido do que chamo de ressensibilização temporária.

Por esse baixo desenvolvimento empático, as crianças são especialmente vulneráveis ao embotamento sentimental. Se hoje nos indagamos como populações civis do passado poderiam compactuar acriticamente com conceitos e eventos que atualmente condenamos, lembremos que toda sorte de horror podia ser diretamente contemplado por qualquer criança na mais tenra idade. Dessa forma, não deveria surpreender a insensibilidade das massas.

Com o advento da noção de “infância”, e dos espaços separados para o mundo infantil e o adulto, a partir do Renascimento, passamos a gradualmente proteger nossas crianças e fornecê-las um período, cada vez maior, de preparo para se integrar plenamente à sociedade. Hoje, mais do que nunca, acreditamos que devemos resguardá-las ao máximo de uma confrontação plena com o mundo, preparando-as primeiro por meio de diversos procedimentos educacionais que visam, entre outras coisas, preparar o caráter.

Nesse sentido, fornecemos a elas, desde cedo, noções éticas. Conceitos de certo e errado, drasticamente simplificados, vão desde a tenra idade ajudando a moldar o Superego e controlar os impulsos do Id, (para ceder à terminologia freudiana). Em grande parte temos sucesso nesse empreendimento, o que contribui para tornar nossa civilização atual incomensuravelmente mais ética que qualquer civilização conhecida do passado, apesar de algumas mazelas específicas. E mais uma vez estamos falando principalmente do contexto de nossa civilização ocidental. Que não é uma cultura específica, mas múltipla.


47. No ensaio Religião e Liberdade – a “Revanche de Deus”, Neo-Maniqueísmo e Fanatismo Religioso, o teólogo Jean Lauand faz uma brilhante análise desse tema enfatizando a troca da virtude da Prudentia, pela exacerbação equivocada da Temperança. Acessível em www.hottopos.com/mirand14/jean.htm.

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Uma das formas mais primárias de pensar as categorias éticas é o simples rotulamento de coisas com as denominações de Bem e Mal, e frequentemente fornecemos às novas gerações meras associações arbitrárias, na forma de simplesmente estigmatizar certas atitudes como ‘más’, ou ‘feias’, ou mesmo ‘bobas’ (reverberando a tradicional associação entre o bom, o belo, e o ‘correto’ num sentido lógico), no intuito de desencorajá-las desde cedo de certas práticas cujas devidas justificativas consideramos por demais complexas para lhes serem explicadas. Lamentavelmente, a formação de grande parte da sociedade é tão deficiente que é frequente vermos indivíduos atingirem a idade adulta, a maturidade e a senescência pensando dessa mesma forma, por meio de categorias injustificadas.

Mas o injustificado também pode se fundamentar numa noção forte, no caso, uma das mais tradicionais é a separação do mundo entre o Bem e o Mal e sua identificação com o grupo social Interno e o Externo, respectivamente. A única correlação então estabelecida é que os “Bons somos Nós”, os “Maus são os Outros”.

Como já vimos, é assim que se configura a estigmatização e legitimação da violência sobre um grupo considerado ‘mau’, justificando qualquer atitude por meio do ocultamento de qualquer parâmetro ético compreensível, e sacramentando a dessensibilização empática. A facilidade com que isso pode ser obtido é tal que dispensa qualquer sistema de pensamento subjacente, qualquer ideologia ou mitologia fundamentadora, e mesmo, sequer, uma diferença étnica, territorial ou qualquer outra. Basta ver que torcidas organizadas de times esportivos são capazes de se hostilizar uma a outra até o nível do massacre mútuo resultando até mesmo em centenas de mortes. E isso sem nenhum tipo de distinção identificadora entre os grupos exceto bandeiras que nada significam.

Como o “nós” é automaticamente convertido em “os certos”, e como tal tendência é bilateral, a mútua estigmatização do adversário tem potencial explosivo para elevar desavenças locais ao nível de inimizade mortífera. Diante dessa tendência espontânea à formação de grupos que se hostilizam entre si, que é natural de grande parte das espécies animais e que ocorre até mesmo intra espécie (os cães se tornam fiéis a seus donos, e propensos a atacar estranhos, por nenhum outro motivo do que a mera convivência), seria de se esperar que se construíssem valores a serem transmitidos às massas para refrear tais tendências. E embora isso ocorra em certa escala, em outra, a produção artística voltada ao público infanto-juvenil frequentemente aponta na direção contrária.

Diversas produções ainda insistem no viés maniqueísta de construir personagens total e completamente maus em oposição a outros total e completamente bons, e ou meramente explicitando qual lado são os ‘mocinhos’, e quais são os ‘vilões’. Dessa forma, o público é automaticamente jogado em um dos lados, quer seja pela instrução direta de a quem se deve aprovar, quer seja distorcendo um dos grupos a ponto de qualquer identificação ser impossível. Com isso, tem-se o mesmo mecanismo de associação da dinâmica de ‘nós’ contra ‘eles’, onde o que define os estereótipos do Bem e do Mal é apenas a circunscrição arbitrária em um determinado grupo.

Por sorte, em geral essas produções, especialmente as voltadas ao público infantil, costumam também vir acompanhadas de uma ética de valores absolutos que, por exemplo, impede aos mocinhos o uso de uma solução final sobre os vilões, frequentemente sob a curiosa alegação de que isso os tornaria iguais apesar de todas as demais associações de virtudes e vícios, no entanto, essa é a primeira ilusão que vem a ser derrubada pelo amadurecimento, infelizmente muito antes daquela que simplesmente faz aparentar ser possível um ser humano sem virtude alguma, somente vícios, e vice versa.

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Lamentavelmente, esse tipo de estereótipo não é exclusivo de produções infanto juvenis, sendo largamente empregado em produções para um público adulto, o que não é de se estranhar num mundo onde diversas religiões e ideologias dividem o mundo entre o Bem e o Mal por meio da mera circunscrição de um grupo e outro.

Em síntese, é extremamente frequente em nossa produção estética a apresentação e reforço de uma visão maniqueísta de realidade, onde existem forças do mal em ação que podem ser facilmente identificadas e devem ser combatidas, numa ultra simplificação que inviabiliza a percepção dos verdadeiros problemas que devem ser factualmente enfrentados. Se a inteligência pode ser entendida como estando na medida da capacidade de reconhecer devidamente as relações de causa e efeito, o mandamento supremo da ignorância ordena que se ignore a causa pelo simples desviar de atenção para causas fictícias.

A solução é por demais óbvia para merecer maior detalhamento, mas pode ser resumida na simples assunção de que não existe, nem pode existir, um conflito entre “forças” Bem e Mal, por este último ser, como examinado no Anexo I, uma mera carência, um não-ser, e assim, não pode ser um princípio ativo.

O que merece ser chamado de Mal é apenas uma insuficiência de Bem 48, de modo que poderíamos ao menos ver os grandes conflitos do mundo numa tensão entre um Bem Maior e um Bem mais restrito, onde este último apenas visa a satisfação de um conjunto limitado de interesses em detrimento de um conjunto mais amplo, e cabendo ao primeiro conseguir conciliar todos os interesses no melhor meio termo possível.

E, ainda mais importante, quanto mais amplo, mais universal tanto em quantidade quanto em qualidade, mais esta busca do Bem estará empaticamente satisfatória, visto promover a felicidade no maior âmbito possível. Enquanto a busca de um Bem restrito, menor, que vise apenas a satisfação de um grupo delimitado em detrimento, ou mero desprezo, dos demais, será evidentemente deficiente do ponto de vista empático.

 

 

 

 


48. Mais desse tema está abordado no Anexo I – Otimismo X Pessimismo.

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A SENSIBILIZAÇÃO INTER ESPÉCIE

Embora muitos não pareçam relacionar diretamente a propensão a violar a integridade de outras pessoas e a de animais, visto que muitos são mais sensíveis com estes últimos do que com os primeiros (em geral por considerá-los mais inocentes), não se pode deixar de comentar a questão de nossa empatia inter espécie. Uma característica frequentemente presente em assassinos seriais que foram devidamente examinados pelos psicólogos criminalistas, é sua propensão a, ainda na infância, torturarem animais, em especial cães e gatos. Mas não é preciso qualquer consideração mais analítica para intuirmos que a prática de crueldade para com animais seja eticamente condenável.

Talvez, mais do que qualquer outro tema, este parece ser especialmente favorável à abordagem empática, visto que nenhuma das abordagens clássicas mais comuns parece ter um parâmetro forte a condenar uma prática que se confunde com nossas simples necessidades de sobrevivência, seja o abate de animais para subsistência, ou auto defesa.

Que argumento deontológico pode-se apresentar para, inequivocamente, condenar maus tratos aos animais? Que argumento utilitarista ou perfeccionista? Podem sim, ser dados, mas sempre consumindo tempo e reflexão maior do que a simples abordagem sentimental, e invariavelmente recorrerão a ela, exceto se apelarem à possibilidades sem suporte fenomênico algum. Como entidades hipotéticas às quais deveríamos nos submeter.

Repudiamos a crueldade contra animais pelo simples fato de podermos empatizar com eles, sendo seres sensíveis, que compartilham conosco vastas estruturas neurológicas que funcionam de modo claramente similar à nossa. (Ilustrando otimamente as relações de similaridade e contiguidade, como determinantes da intensidade empática. Contrapostas pela necessidade.) Ademais, trazendo para o plano do interesse humano, não parece difícil conceber que ser cruel para com animais está ligado a pontencial crueldade para com outros seres humanos. É possível que antes do advento da escravidão humana, tenha surgido a escravidão animal, mais provavelmente por meio do pastoreio e demais criações de animais para servirem aos humanos. Com o fim oficial da escravidão humana, não é de se estranhar que movam-se forças pregando o fim da exploração dos animais em benefício humano, na grande maioria das vezes, dispensável.

Mas, como já apontado, a maior evidência de uma mentalidade visionária não pode se dar com a crítica do passado, nem mesmo com a mera crítica do presente largamente difundida, mas principalmente com projeções de prováveis futuras posturas que poderão ser tornar tão incisivas quanto as que por hoje clamam o fim da exploração dos animais para sustento alimentar, vestuário e outros, e outrora clamaram o fim da exploração humana.

Um exemplo poderia ser citado a respeito de uma exploração de animais num nível menos impactante para nossa mentalidade atual, como a mera criação de cães para efeito de proteção de território, ou ainda mais sugestivo, a criação de pássaros em cativeiro para fins de mera apreciação estética. Chega a soar como uma tragédia poética que tais criaturas sejam exploradas em função da mera vaidade humana, tendo que para isso ser privadas de uma dos dons naturais mais invejados pela humanidade. O dom do vôo. Já há alguns movimentos no sentido de se recriminar o cativeiro de pássaros. E não seria surpreendente se um dia tal prática fosse considerada um crime ecológico. E não se deve considerar o argumento de que a libertação de tais pássaros acarretaria em sua morte, por inadaptabilidade ao meio selvagem. Visto que isso apenas perpetua um delito original, condenando todas as futuras gerações ao mesmo estado. Em algum momento, esse ciclo tem que ser rompido, mesmo que com algum sacrifício.

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Por fim, não temos, absolutamente, nenhum tipo de dever para com os animais, ou a natureza em geral, que não seja imposto por nós mesmos. Mas há muitíssima desejabilidade de os respeitar pelo simples fato de que isso é necessário à nós mesmos, quer seja num nível de sustentabilidade de nossa existência sentimental, ou num nível estético que estimule nossa sensibilidade empática com seres com os quais compartilhamos tantas similaridades.

A solidariedade, caridade e compaixão podem ser estendidas à níveis imprevisíveis. Porque não incluir o máximo de seres possíveis? Cultivar nossa empatia com os animais e a natureza em geral seguramente se relaciona com cultivá-la para com nossos semelhantes.

O CULTO DA PERVERSIDADE

Abunda em nossa civilização, sobretudo agora na era da internet, uma vasta produção pornográfica cuja variedade de fantasias e fetiches é capaz de surpreender até mesmo os mais versáteis e dinâmicos apreciadores do gênero. Embora tenha sido duramente combatida por segmentos moralistas da sociedade, essa produção ainda escapa com notável eficiência à maioria das tentativas de se demonstrar sua nocividade factual.

Na realidade, não é difícil perceber que a maior parte da crítica a esse tipo de conteúdo se baseia mais num puritanismo exacerbado do que em qualquer consideração ética legítima, e é desencadeada mais por uma afetação a temas sexuais, tão brutalmente marginalizados por uma cultura de moralismo questionável, que se torna impossível considerar seriamente a maioria de seus argumentos. Grande parte do tradicional moralismo tem uma base maniqueísta, visto ser a carne, integrante no mundo físico, o domínio imanente do Mal pela religião de Maniqueu. Noção que mesmo tendo sido oficialmente repudiada por Santo Agostinho, curiosamente permaneceu como uma marca indelével de sua produção e de toda a tradição cristã subsequente.

Ademais, nota-se facilmente que tal disposição ao moralismo facilmente desvia as preocupações de problemas reais da ética, transferindo-a para a arena fantasiosa da associação prazer e pecado, e para a demonização da sensoralidade. Com tudo isso, o liberalismo e o progressismo não demoraram a se desvencilhar de tal carga conservadora, e com isso a considerar irrelevante qualquer preocupação com a produção pornográfica, tendo, afinal, temas mais sérios com os quais se preocupar.

Apelando a qualquer parâmetro ético concebível dentro do espírito da Regra de Ouro, e da mera empatia, fica realmente inviável condenar qualquer forma de estímulo ao prazer que se dê na forma de manifestações reais ou virtuais consensuais, seja com que propósito forem, isto é, sensoriais, estéticos ou comerciais. Poder-se-ia criticar a exploração financeira disto, mas isso soa inconcebível num ambiente de liberalismo, e mesmo os viesses progressistas menos economicamente liberais tem que se render ao fato de que o gasto com consumo de pornografia é, principalmente na internet, praticamente voluntário e resultante de um mero comodismo, visto que a pirataria de conteúdos, um dos aspectos de uma revolução digital que realiza no mundo virtual o que Marx previra para o mundo físico, praticamente aniquilou a concentração de conteúdo e sua propriedade exclusiva, inclusive a propriedade dos meios de produção digital, os softwares.

Pode-se também objetar o teor francamente androcêntrico da maior parte da produção pornográfica, visto ser voltada para o público masculino, onde a mulher é vista como um mero objeto de satisfação para os homens, a ponto de imperar um rito padrão de iniciar e finalizar toda e qualquer sequência de relação heterossexual como uma idolatria do falo, onde o prazer

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feminino parece subordinado ao masculino. No entanto, não se pode negar que, apesar disso, há uma troca de interesses legítima, visto que as mulheres lucram centenas de vezes mais com a produção pornográfica do que os homens, e podem também ser vistas como detentoras de um poder sedutor sobre eles.

No entanto, nem toda produção pornográfica é voltada a uma celebração do prazer entre partes mutuamente dispostas. Uma notável parte dela é voltada para uma estética sádica, em geral, associada a uma estética masoquista. Como foi dito anteriormente (Parte I em Sadomasoquismo), há uma falsa associação entre Sadismo e Masoquismo, que não são, de modo algum, compatíveis. O masoquismo, que é apenas uma forma incomum de se vivenciar o prazer, é um desejo da parte passiva, representada como uma vítima, e sua realização e satisfação é impossível sem o consentimento e colaboração da outra parte. Já o Sadismo pode ser satisfeito com ou sem tal consentimento, e na realidade, só é plenamente satisfeito sem ele.

Uma sensibilidade sádica só pode ser totalmente saciada não com a mera simulação de uma parte que representa o papel de vítima, em troca do que quer que seja, mas sim com a real manifestação de sofrimento e desespero da vítima, sem qualquer tipo de consentimento. Por isso, enquanto uma disposição masoquista é praticamente inofensiva, uma disposição sádica tem um potencial intenso para aflorar das formas mais temíveis, e isso tem ocorrido com frequência em nossa civilização, não somente pelas mais variadas formas de crimes hediondos, em especial dos psicopatas com motivação invariavelmente sexual, bem como por diversas manifestações de relações sexuais desiguais, onde uma parte física, mental e socialmente mais forte subjuga uma mais fraca, o que pode se manifestar na forma de pedofilia, prostituição infantil ou tráfico de escravas sexuais.

Com tudo isso, o estímulo a perversidade sexual é algo que deveria ser visto com cuidado. Parece necessário prestar mais atenção a esse fenômeno no sentido de examinar até que ponto ele pode ser considerado inofensivo ou não, até que momento pode se permiti-lo em nome do liberalismo de costumes, e a partir de que momento ele assume feições que se tornam intoleráveis ante a pretensão de construção de uma civilização ancorada em valores estéticos saudáveis e na sensibilidade empática.

Devido ao desastroso viés puritano, qualquer repreensão a esse tipo de prática costuma ser associada à repreensão não somente contra a pornografia em geral, mas até mesmo contra a liberação sexual em si, e então parece não ser diferenciável uma coisa da outra. Mas como dito, há uma diferença essencial. Uma está voltada a uma celebração do prazer irrestrito, para todas as partes, enquanto outra está voltada a uma exploração parcial e perversa que extrai o prazer do sofrimento alheio.

Nesse sentido, a perversidade é a pior forma de dissintonia empática, visto não se tratar apenas de uma falta de conexão intersubjetiva entre as partes, mas sim de uma conexão intensa, porém no sentido absolutamente contrário ao da Regra de Ouro. Ao invés de uma subjetividade beneficiar a si própria por meio do benefício à outra, e vice-versa, promovendo o sentimento de união de interesses, a perversidade extrai um prazer diretamente do sofrimento da outra parte, o que é uma violação direta e total da Regra de Ouro, ou melhor dizendo, é nada menos que sua inversão completa.

Em que medida pode ser considerada liberal uma postura cuja essência intencional é o pior tipo de violação da liberdade alheia? A causa primeira das ações humanas é a disposição mental. Evidente que sem a propensão à algo, seria impossível sua materialização em ato. É falho alegar que tais disposições obedeceriam a livre escolha individual por que evidentemente

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não correspondem a uma operação racional de decisão, mas sim são o resultado compulsivo de algum tipo de mau direcionamento de pulsões primárias, muitíssimo provavelmente conduzido por contextos culturais que, estes sim são potencialmente destruidores de decisões livres, condenando o indivíduo à ruptura interna entre seus instintos primários de busca de prazer e fuga da dor, e sua capacidade intersubjetiva e necessidade de socialização.

EXCESSO DE LIBERDADE

Venho desenvolvendo o tema do Paradoxo da Liberdade 49. Isto é, o fato desta não ser um valor que permita indefinida acumulação estável. O ponto ótimo de liberdade num sistema qualquer que não pode ser excedido, pois esta começa a se tornar o seu contrário. Diferente da Igualdade, que pode ser intensificada indefinidamente até a absoluta identificação de dois entes, a liberdade não pode ultrapassar um certo ponto de equilíbrio sem que comece a se auto destruir.

Por exemplo. Uma pessoa sozinha, vivendo numa ilha deserta, goza de um alto grau de liberdade, mas ela ainda está regulada por uma série de cuidados com si própria que visam manter sua integridade. Além de um ponto ótimo, exceder e tentar vivenciar uma liberdade ainda maior só poderia ter como resultado a auto destruição. Se as obrigações de auto preservação, trabalho para sobrevivência ou respeito aos limites do próprio corpo não forem observados, o excesso de liberdade termina por causar um dano ao indivíduo que o deixará em um estado menos livre do que antes.

Entre duas pessoas, por exemplo, pode-se atingir um grau ótimo de liberdade mútua. Mas passar deste nível tende a causar a violação da liberdade do outro, o que termina por diminuir a quantidade de liberdade desse pequeno sistema social. E pode inclusive gerar retaliação a ponto de reduzi-la ainda mais.

Assim, o que ocorre com a sociedade em geral é evidentemente correlato. Sem leis, regras, códigos de conduta, etc, é impossível sustentar a liberdade mínima suficiente para que todas possam buscar livremente sua realização pessoal. Infelizmente, certos excessos de liberalismo parecem ainda não ter se dado conta do quanto a liberdade, se excessiva, tende a se autodestruir. Enquanto acredita-se estar incentivando e aperfeiçoando uma sociedade liberal, certas permissividades terminam por causar o exato contrário, visto acabarem liberando uma série de ações de algumas pessoas contra outras, ou contra si próprias, que resultam numa diminuição da liberdade anterior, podendo facilmente gerar uma sequência de eventos com potencial para arruinar a liberdade mínima do sistema.

Apesar disso, a mera restrição de certas liberdades na tentativa de preservar um nível ideal, apesar de inevitável, sempre será apenas mais um conjunto de regras que, como já dizia o mito do Éden, os humanos são sempre tentados a burlar. Uma redução muito mais efetiva sobre as verdadeiras causas de certas liberdades menos essenciais que resultam em violações de liberdades mais fundamentais poderia ser feita com a simples desestimulação estética do hábito.

Enquanto não apenas existir a possibilidade da violação, mas também uma produção cultural que a incentiva, se não idolatra e venera, é absolutamente quimérico esperar que as meras legislações e códigos possam extinguir aquilo que tem origem irrestrita onde regra alguma jamais pode atingir. Pode-se citar inúmeros exemplos de flagrantes incentivos estéticos completamente irrefreados que necessariamente levam a atos previamente coibidos legalmente. Citaremos apenas alguns.


49. Mais especificamente num texto sobre a Fraternidade (www.xr.pro.br/ENSAIOS/Fraternidade.html), que é parte de uma série de ensaios que constituiu uma dissertação para a disciplina de mestrado Tópicos Especiais de Ética e Filosofia Política.

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Bullying

A produção artística norte americana é tão profícua em mostrar exemplos do típico instinto de horda se manifestando em jovens que formam quadrilhas para perseguir indivíduos desprotegidos, que não se pode pensar que isso não reflita uma realidade onde tal prática não é apenas permitida, mas sobretudo, incentivada.

A preocupação com este fenômeno num nível de destaque social é estranhamente recente, e durante ao menos um século ele correu de modo completamente descontrolado, desde que a rigidez de sistemas conservadores que, apesar de outros problemas, o continham, deram lugar a uma liberalização que, mais uma vez, não parece ser capaz de discernir o que é livre expressão de personalidade e o que é esmagamento da personalidade alheia por meio da violência.

A estética do bullying é, na realidade, bastante simples. É da natureza da mentalidade norte americana, pautada por um liberalismo radical, depositar no próprio indivíduo a responsabilidade pela maior parte de sua própria preservação. A sociedade presta apenas uma pequena atenção às ameaças contra a pessoa, em geral quando em estados extremos, e não raro, demasiado tardios. Assim, espera-se de cada indivíduo que seja capaz de se cuidar por contra própria, impondo sua personalidade, fazendo alianças e desenvolvendo suas habilidades interpessoais de forma a reunir em torno de si algum poder social. Aqueles que disso não sejam capazes, estão condenados a serem virtualmente devorados pela competição selvagem intra-social, e tal destino é visto como apropriado numa cultura que preza pela competição e despreza os perdedores.

A motivação principal de tais investidas é a perversidade, e as consequências disto, como sabemos, são nefastas. Além de notável índice de suicídios por depressão objetivamente causada pela violência física e psicológica de grupos em condições de extrema desigualdade de forças, temos toda uma sorte de danos psicológicos que se arrastam com a vítima por toda sua vida, repercutindo de formas imprevisíveis mas invariavelmente trágicas. E no extremo oposto, temos a afloração de um sentimento de vingança que pode se manifestar das formas mais violentas, pela extrema insociabilidade, e que não raro afloram na forma de assassinatos seriais ou assassinatos em massa.

Lamentavelmente, a estética do bullying ainda é vista com alguma benevolência, como se fosse um estágio necessário de preparo para enfrentar a vida social, e está indissociavelmente ligada a um excesso de liberalismo que ao invés de garantir a todos a liberdade mínima para a própria auto realização, termina por permitir a tirania de grupos mais poderosos sobre outros desfavorecidos. Daí, que se desenvolva a nível macro econômico distorções como o Neoliberalismo, que nada tem de ‘neo’ e muito menos de liberal, ou a tendência a política internacional que acredita ser válido forçar a democracia pelas armas e intervenção não requisitada, é algo que não deveria surpreender.

Apologia das Drogas, sobretudo Álcool

O consumo de drogas legais ou ilegais em nossa civilização é seguramente impossível de ser detido enquanto não se atacar frontalmente as causas primárias do problema, que estão, como sempre, nas disposições psicológicas ao entorpecimento. Embora haja motivos razoáveis para ocasionais experiências psicotrópicas, a necessidade constante de tais não deveria ser jamais vista como algo desejável pelo simples fato de derivar necessariamente de um sentimento de insuficiência psicológica que necessita de uma abordagem interior, e não de paliativos exteriores. Em suma, é um atestado de incompetência pessoal sobre sua própria gerência emocional, que entra em flagrante conflito com o culto do “melhor” em termos competitivos.

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E embora já haja toda uma vasta campanha contra o consumo de drogas ilegais e até mesmo de drogas legais, além de haver uma produção artística que ainda as associa à independência, rebeldia, talento artístico, etc, existe em paralelo uma esmagadora apologia do alcoolismo, a droga legal que, sozinha, causa um estrago social imensamente superior ao de todas as demais drogas legais e ilegais combinadas, incluindo os crimes derivados do narcotráfico. A quantidade de vítimas de acidentes de trânsito causados por alcoolismo em um ano supera a de qualquer guerra já ocorrida no mesmo período, e os crimes de violência praticados sob seu efeito são responsáveis, ou diretamente se associam, à maior parte dos assassinatos e lesões corporais não somente em locais públicos, mas sobretudo privados.

Apesar da maioria das famílias possuir históricos internos de problemas com o alcoolismo, e do flagelo inequívoco que este causa a civilização, o álcool permanece fortemente protegido contra críticas, sendo venerado como símbolo de liberdade e acesso a felicidade, e seu consumo é fortissimamente encorajado não apenas pelo comércio, mas sobretudo pela cultura, com imensa frequência dentro dos próprios lares, sendo quase impossível na maioria das famílias que alguém não seja pressionado, ridicularizado ou submetido a toda sorte de reprovação pelo simples desejo de não consumi-lo.

Talvez mais do que nunca possamos, aqui, evocar imagens virtualmente onipresentes na produção artística. Como a cena praticamente obrigatória em inúmeros filmes para cinema ou TV, onde o protagonista, o “herói” com o qual muitas vezes se espera identificação, é adepto do consumo “social” de bebidas alcoólicas fortes. Ou o hábito de, ao chegar em casa, o primeiro ato seja encher um copo de uísque. Por exemplos assim, bem como pela vasta admiração pela embriaguez, podemos ter um exemplo bem mais claro de como a alteração de valores estéticos poderia ajudar a ao menos deixar de incentivar comportamentos que são no mínimo potenciais causadores de incalculáveis prejuízos, e que é o referencial central para o consumo de todas as demais drogas, visto a compartilhar a mesma predisposição mental ao entorpecimento. 50

Campanha Anti-Intelectual

Possivelmente um dos maiores danos causados pela nossa tradição cultural é a associação entre Inteligência e Maldade, levando inúmeras fontes a promoverem subrepticiamente a mensagem de que os ‘mocinhos’ são ingênuos, simplórios, ou no mínimo intelectualmente primários, ao mesmo tempo que os ‘vilões’ esbanjam informação, intelectualidade e o virtual monopólio do discurso.

Essa associação remonta seguramente ao mito do Éden e da Árvore do Conhecimento, que é também a origem do Mal, bem como da curiosidade como sendo a geratriz de todas as mazelas, como bem ilustra Pandora. Temos então em nossa tradição um perpétuo conflito entre a lição socrática e a lição bíblica, disputando se a origem do mal deriva da Ignorância ou do Conhecimento.


50. Abordei esse tema numa série de ensaios que levam a discussões detalhadas de várias questões envolvidas. - A Droga da Incoerência xr.pro.br/ENSAIOS/Drogas.html, Droga de Elite xr.pro.br/ENSAIOS/ELITE.html, Lei Sóbria X Adoradores do “Demônio” xr.pro.br/ENSAIOS/Lei_Sobria.html e A Defesa do Demônio xr.pro.br/ENSAIOS/Defesa_do_Alcool.html.

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Com isso, temos uma afloração de protagonistas que não prezam pela inteligência no sentido intelectual, embora possam fazê-lo no sentido pragmático, como meio para solução de problemas práticos e alcance de objetivos imediatos. E toda e qualquer manifestação de pensamento crítico, sobretudo ao estado de coisas social, é associado aos megalomaníacos vilões, bem como costuma ser associada uma profunda erudição e inteligência aos assassinos seriais.

Este foi outro tema desenvolvido em alguns ensaios em meu site, que contém uma vasta gama de reflexões sobre o assunto. 51

Estética Machista

Uma das maiores frentes emancipatórias da história progressista é o da conquista de equivalência dos gêneros. Talvez mais do que em qualquer outras instâncias, obteve-se uma sucesso retumbante em integrar às mulheres, antes restritas à vida privada, em praticamente todos os setores da sociedade, de modo que na atualidade ocupam posições de destaque e poder em quantidade simplesmente inconcebível em qualquer período histórico conhecido.

No entanto, essa emancipação ainda está longe de atingir o patamar ideal, visto só ter sido obtida para alguns segmentos da sociedade, em geral os mais abastados, e mesmo neste ainda estar sujeita a uma rejeição simbólica que associa a independência e poder pessoal a elementos incompatíveis com a feminilidade. Em suma, um dos maiores baluartes de resistência contra a plena emancipação feminina é afirmar sua incompatibilidade com a auto determinação, pregando ser de sua natureza à submissão ao masculino.

Importante, primeiro, destacar que deve-se preferencialmente falar em emancipação feminina, no sentido de emancipar a feminilidade, e não meramente as mulheres, visto que estas, tanto quanto os homens, são seres mistos que integram elementos femininos e masculinos em quantidade em geral predominantes em relação direta com o seu sexo, mas sem um limiar definido. Não se trata apenas de integrar as mulheres na sociedade, mas sobretudo de um melhor equilíbrio entre aspectos psíquicos universais.

É curioso que a tradição filosófica ocidental não tenha sequer terminologia para se referir a isso, o que na tradição oriental pode ser deixado claro simplesmente pelo apelo à harmonia entre o Yin e o Yang. Na Psicologia Analítica de Jung, pode-se referir a tal idéia como a devida integração da Anima e do Animus. Que compõem a estrutura psíquica de ambos os sexos humanos.

A falta de melhor nomenclatura na tradição filosófica pode ser explicada por que nossa mentalidade sobre o assunto sofreu uma certa cisão desigual. Enquanto a psique masculina parece ter sido conservada com bom grau de integração, a psique feminina passou a ser fortemente dividida em duas entidades distintas.

Ao arquétipo masculino uso o termo simbólico de aspecto Adão, que reúne numa só essência toda a complexidade de seu universo psíquico. Por outro lado, o arquétipo feminino foi dividido em dois símbolos, os aspectos Eva e Lilith. Ao primeiro, cabe o papel da mãe, a mulher respeitável, de família, restrita à vida privada, obediente aos costumes e socialmente aceita. Ao


51. O Gênio do Mal (www.xr.pro.br/ENSAIOS/Genio1.html). A Ameaça do Gênio (www.xr.pro.br/ENSAIOS/Genio2.html), O Gênio na Lâmpada (www.xr.pro.br/ENSAIOS/Genio3.html).

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segundo, cabe o papel da mulher sensual, sedutora, livre, dona de seu destino e essencialmente insubmissa. 52

Esta, evidentemente, é estigmatizada sob o rótulo do meretrício. Provavelmente não deve jamais ter havido um único caso de uma mulher independente, soberana e capaz de impor sua personalidade sobre o mundo, que não tenha sido acusada de prostituição em algum grau, abertamente ou veladamente, ou ao menos apontada como sexualmente ativa além dos limites que a imagem conservadora da mulher respeitável pode tolerar.

O desafio progressista do futuro é a completa integração dos dois aspectos femininos num único, e enfim, o desenvolvimento equilibrado de ambos os arquétipos Yin e Yang na sociedade. Mas além de forças ativas de repressão, mais uma vez, aponto à força da estética retrógada que ainda insiste em associar à mulher a uma condição de passividade, vulnerabilidade, subserviência etc, como se estas fossem características necessárias de sua natureza. Raramente isso aparece de uma forma explícita e claramente identificável, e na verdade temos tido abertamente até mesmo uma aparente imagem inversa sendo reforçada pela grande mídia, que mostra mulheres em papéis cada vez mais masculinos. No entanto, não se deve confundir a emancipação do arquétipo feminino com sua mera cooptação de elementos masculinos, como sugere as cada vez mais frequentes imagens de mulheres lutadoras e heróicas ao melhor estilo violento que outrora era exclusividade dos homens.

Embora isso possa ser simbolicamente bem vindo, é preciso enfatizar antes de tudo a independência psicológica e a capacidade de decidir por si, pois pouco ou nada importa, para efeito de afirmação da feminilidade, que as mulheres demonstrem grandes capacidades pessoais que, entretanto, sirvam à causas que são essencialmente masculinas, como a guerra e a dominação pela força.

Ademais, predomina ainda, com muita intensidade, a imagem da mulher que embora já tenha conquistado seu papel na sociedade, ainda se sente simbolicamente submissa ao homem, o que pode ser notado das mais diversas formas, como insistir em se relacionar sempre com homens mais velhos como se coubesse a eles à maturidade, ou com homens mais ricos mantendo a imagem de que cabe a ele sua proteção financeira, ou mesmo homens sempre mais altos independente do quão alta a mulher já seja, pela necessidade de um símbolo protetor físico. Bem como a admiração pelo comportamento ciumento e possessivo, como se isso fosse garantia de interesse e responsabilidade.

A quantidade de mulheres atraída pelo estereótipo do homem violento, autoritário, controlador, que invariavelmente moverá tais características contra ela, ainda é tragicamente comum, com repercussões que nossos jornais não cansam de registrar. E grande, provavelmente a maior, parte de tal atração é reforçada por uma estética que ainda prega uma imagem que confunde virtudes como a coragem e serenidade com vícios como avareza e covardia.


52. Esse tema foi examinado em meu ensaio Os Gatos e a Feminilidade (www.xr.pro.br/Ensaios/GATOS.html), onde apesar da apresentação descontraída, fiz uma análise da correlação da simbologia dos gêneros com os ícones dos gatos e dos cães, e do modo como essa relação simbólica se traduz em posturas concretas maciçamente promovidas na sociedade. A divisão da feminilidade nos arquétipos EVA e LILITH contém a chave da explicação não apenas para grande parte de nossos problemas sociais, como pela quase inexplicável repulsa por gatos, manifestada em larga parcela da população. Há inclusive dados estatísticos de pesquisas da UnB e do polêmico neuropolitics.org.

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Enfim, muito mais poderia ser dito sobre este, e temas correlatos, no entanto, toda essa exposição tem a finalidade de apontar que nossas condutas, conceitos e valores são fortissimamente influenciados por elementos estéticos que vão sendo transmitidos e reforçados de modo predominantemente inconsciente, e por vezes até mesmo bem intencionados, mas equivocados, pela nossa vasta produção cultural, sobretudo artística, que tem um poder de formação de mentalidade que nossas tradições filosóficas, científicas e religiosas ainda estão longe de se equiparar.

Por lidar diretamente como que há de mais forte e intenso nos humanos, nossos sentidos e emoções, a arte tem um poder de manipulação que ainda escapa à nossa compreensão, e se conecta diretamente com nossa mais profunda interioridade de um modo que todos certamente já sentimos, e certamente não somos capazes de explicar. E é certo que de formas bastantes explícitas, nossa civilização está bem a par disso.

Se a sociedade não estivesse fortemente convencida do poder da estética em produzir comportamentos, não existiriam comerciais associando produtos à celebridades, e a situações agradáveis, não haveria a falácia do espantalho e ninguém seria sensível a argumentos que visam deturpar posições simplesmente associando-os a ícones reprováveis, como atacar o vegetarianismo e abstinência do álcool pelo apontamento de tais qualidade em Hitler, ou alegar que comunistas são pedoantropófagos.

Assim, não existe abordagem mais poderosa do que a estética para estimular ou reprimir o sentimento de empatia, e qualquer interesse em aumentar a sensibilidade dos indivíduos a fim de construir uma civilização mais solidária, não pode jamais se dar por satisfeita com uma mera campanha educacional. Com isso em mente, e antes de passar para a reta final desta monografia, vamos dedicar alguma atenção a uma forma de arte e entretenimento surgida somente a partir da década de 70, mas só mesmo maximizada ao ponto de real interesse praticamente na virada do milênio.

 

 

 

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CRUELDADE VIRTUAL

Talvez nenhuma produção tecnológica humana tenha evoluído de modo mais espantoso do que os videogames. Em menos de três décadas eles passaram de meros quadrados coloridos e sons primevos para ambientes tridimensionais interativos ricamente detalhados, ornamentados por trilhas sonoras orquestradas e exigindo dos micro processadores um desempenho só comparável aos computadores de aplicações científicas de ponta e sofisticadas ações de tecnologia militar.

A produção dos jogos mais sofisticados da atualidade envolve centenas de pessoas, movimenta bilhões de dólares e está em fina sintonia com o avanço informático, se não liderando esse avanço, e se há um dado capaz de falar por si, está o fato de que vendas vistosas de avançados aparelhos de videogames para locais historicamente hostis às grandes potências mundiais já despertaram preocupações pelo receio de que sua poderosa arquitetura eletrônica pudesse ser adaptada para fins militares.53

Os jogos eletrônicos permitem uma experiência que nenhuma outra forma de mídia pode oferecer, eliminando a mera passividade do espectador e tornando-o agente efetivo. Antes, as opções de ação eram limitadas, mas com o avanço dos sistemas, têm surgido jogos que permitem uma variedade tão vasta de decisões e abordagens, muitas das quais até mesmo imprevistas pelos programadores, que é possível realizar, “virtualizar”, praticamente qualquer ação concebível. Dessa forma, em alguns, de um roteiro de ação originalmente previsto, o jogador pode optar por realizar uma série de atos paralelos num mundo virtual cada vez mais similar ao real.

Com esta crescente gama de possibilidades, não é de se admirar que com o passar dos anos, o objetivo de muitos jogadores tenha deixado de ser enfrentar soldados inimigos, derrotar dragões, repelir alienígenas ou prender bandidos, para se concentrar em atos que embora sejam possíveis de serem feitos no mundo real, provocariam reataliação imediata da sociedade. Cada vez mais estão disponíveis jogos, com as devidas recomendações parentais, onde os mais diversos impulsos de perversão podem ser postos em prática, simulando assassinatos em massa de civis indefesos, crimes hediondos sobre mulheres e crianças, violações sexuais, tortura e toda sorte de autênticas depravações.

Embora muitas vezes isso ocorra em jogos onde não é este o objetivo principal, apenas há tanta versatilidade de ação que tal se torna possível, em outros casos tem sim surgido produtos direcionados especialmente na realização de perversões. 54 (E isso nos restringindo apenas à grandes produtoras, pois jogos de menor complexidade já são produzidos por amadores em computadores caseiros, também evoluindo cada vez mais, sendo hoje possível a um único programador talentoso desenvolver jogos antes somente possíveis às grandes empresas.)


53. Por exemplo, a paranóia gerada pela compra de cerca de 4 mil unidades do console Playstation 2 pelo Iraque na véspera de natal de 2000, muito alardeada pela mídia especializada. (www.wnd.com/index.php?pageId=7640) Centrais de Inteligência apontaram a possibilidade que seus processadores pudessem ser usados em rede para realizar tarefas que fossem desde o controle de mísseis até a invasão de sistemas informáticos do exército norte americano. (Ainda que as possibilidades sejam remotas devido a insuficiência tecnológica de nações menos desenvolvidas em conseguir adaptar tais hardwares e ou desenvolver um software adequado.)
54. Como por exemplos os polêmicos jogos GTA (Great Thief Auto), Bully e Rapelay (onde o objetivo é estuprar mulheres e meninas, e no caso de engravidarem, forçar o aborto). Também já existe uma categoria dos jogos independentes, que podem ser jogados de graça na internet, especializada em tortura.

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Com grande frequência, esses jogos costumam ter sua comercialização, distribuição e até posse proibidas em alguns locais, e têm sido feitas algumas campanhas reativas, até com notável repercussão. No entanto, praticamente toda essa reação vem de setores de mentalidade conservadora, que muitas vezes tem dificuldade em distinguir eventos que, se tornados reais, seriam seguramente anti éticos, com eventos que seriam apenas imorais. Muitas dessas proibições tem como alvo apenas atos sexuais normais, ou imagens consideradas satânicas ou associadas à bruxaria, mesmo quando são retratadas como vilões do jogo, a serem enfrentados pelo jogador.

Ou seja, o apelo da universalidade ética, ancorada na repulsa de todo ser humano ao sofrimento, acaba sendo confundido com contingências morais que sentem-se afetadas por mitos remetentes à símbolos religiosos ou à repulsa puritana pelo prazer sexual convencional. Ao mesmo tempo, correntes liberais e progressistas tem fechado os olhos para todo esse fenômeno de mídia como se a permissividade contra atos de perversidade que se concretizados seriam crimes horrendos, fosse indissociável das conquistas libertárias que desvencilharam nossa civilização do escravismo, sexismo ou tirania política e social.

Há uma série de argumentos que são levantados a favor dessas formas perversas de expressão, tanto nos videogames quanto em filmes, websites ou outras formas de mídia, e todos podem ser resumidos a basicamente três. Um é o já comentado Apelo à Liberdade de Expressão, acompanhado sempre da acusação de que restrições a tais produções são da mesma ordem das censuras sobre liberdade de pensamento político, confissão religiosa ou preferência sexual. Outro, um Argumento da Descontinuidade, que apenas afirma que a apreciação de tais expressões em nada se relaciona com suas materializações factuais, e que mais importa a capacidade de distinguir o Real do Virtual. O Terceiro, que curiosamente contradiz o anterior apesar de frequentemente ambos serem usados pela mesma fonte, afirma que ao contrário de tais expressões estimularem a concretização de tais atos, elas na verdade os desestimulam, por servirem como uma Válvula de Escape Inofensiva para os impulsos, diminuindo sua manifestação concreta.

Como já dito, a simples proibição sempre se mostrou de baixa eficácia em evitar novas infrações, por isso tais argumentos não podem ser simplesmente ignorados e combatidos com a pura força bruta legal, e muito menos com abordagens moralistas. Embora todos possam ser facilmente confrontados com outros argumentos, o simples apelo à empatia pode, como espero mostrar adiante, desmascará-los e inviabilizá-los em poucos passos. Isso deveria nos mostrar que muito mais do que lidar com regras e deveres, deveríamos pedir o motivo da apreciação de tais formas de expressão. O que se sente com isso? Por que se aprecia o sofrimento brutal de uma vítima?

 

 

 

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ARGUMENTO DA DESCONTINUIDADE x ARGUMENTO DA VÁLVULA DE ESCAPE

Toda explanação contra a estética da perversidade sempre será alvo do mais previsível dos contra argumentos. Quando se aponta a potencialidade nociva de produção artística em incentivar comportamentos anti éticos, é quase automático o revide que delimita uma separação estanque e intransponível entre a ficção e a realidade. Assim, as ações esteticamente negativas do mundo imaginário não teriam efeito sobre o mundo real devido ao fato de não se vislumbrar um devido nexo causal, e ou, não raro, se inverte a proposição para sua contraditória, atentando que a existência de tais elementos no mundo fictício serviria de válvula de escape segura dos impulsos naturais, removendo-os do mundo real.

Para o último, poderia-se requisitar a mínima evidência que seja de que o aumento de produção de conteúdos voltados para a estética da perversidade possa ser correlacionado a qualquer diminuição da prática desta, mas basta apontar que a exploração, sobretudo comercial, de um tipo de predisposição mental, jamais poderia esperar a diminuição do mesmo, e sendo esta a causa primeira dos comportamentos, seria no mínimo imprudente compactuar-se com um tipo de produção que dependa da manutenção perpétua da causa fundamental dos comportamentos cruéis.

Mas o enfoque inicial que quero dar é sobre o argumento que prega ser possível separar de modo decisivo as instâncias da apreciação estética e da manifestação factual.

A humanidade parece severamente submetida a duas patologias cognitivas, entre muitas outras, com incrível potencial de dano. Uma preconiza a identificação de entidades que embora guardem similaridades, são essencialmente distintas. Outra, afirma a absoluta descontinuidade de entes que, embora sejam essencialmente distintos, estão conectados.

Em síntese, uma afirma que duas coisas distintas são “a mesma”, outra que duas coisas interligadas “em nada se relacionam”.

Mas um mínimo de filosofia nos demonstra que todos os entes no universo estão de um modo ou de outro conectados, e que, ao mesmo tempo, dois entes, por mais similares que sejam, jamais são idênticos um ao outro, e isso se aplica também aos conteúdos culturais e à sua matriz primordial, a mente.

Muitos preferem pensar que entre um psicopata da pior estirpe e uma pessoa inofensiva existe uma distinção essencial que jamais pode ser transposta. Mas é mais realista crer que embora haja uma imensa distância, ambos estão no espectro de possibilidades de comportamento, e somos enfim separados por quantidades, não por qualidades. Ninguém se torna um assassino serial ou assassino em massa repentinamente. Há todo um processo de construção psicológica, com inúmeras etapas, até que o indivíduo decida externalizar os conteúdos que foram cultivados em sua interioridade, e ainda mais até que decida torná-los atos extremos com consequências sociopáticas.

Entre as pessoas que jamais farão extremo mal a outras e aquelas que frequentemente o fazem, estão aquelas que possuem algum potencial para oscilar entre diversas atitudes mais ou menos graves, e provavelmente estes constituem a maioria dos cidadãos. Pode ser difícil saber se uma pessoa instável, quer seja por uma inerência ou por danos sofridos em sua criação, irá ou não se direcionar para práticas temíveis, mas parece bastante intuitivo que pessoas nesse limiar não deveriam jamais ser incentivadas à violência e a práticas nocivas em geral.

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Com muita evidência, sabemos disso de uma maneira claríssima. Quando alguém se vê ameaçado por um agressor que lhe aponta uma arma, e não havendo boa possibilidade de se defender, não costuma ocorrer a infeliz idéia de incitar tal agressor a ir mais adiante na escala de delinquência. Não nos ocorre deixá-lo ainda mais nervoso, ou fornecer-lhe qualquer informação que potencialmente lhe incentivará a ser tornar ainda mais ofensivo.

Isso também é facilmente notado em situações mais incipientes. Quando nossos filhos demonstram alguma tendência agressiva, que tipo de brincadeiras preferimos lhes oferecer? Aquelas que podem acalmá-los e desenvolver-lhe um lado menos agressivo, ou aquelas que incentivam ainda mais essa agressividade? E no caso de cometermos esse último erro, apelemos à experiência dos pais e indaguemos quando, numa situação dessas, promover brincadeiras agressivas terminou por deixar as crianças menos agressivas?

A simples experiência de criação nos mostra que a potencial agressividade das crianças não é contida pela estimulação, como se isso fosse esgotá-la. Isso pode até ocorrer temporariamente, por fazê-la se cansar. Mas o impulso agressivo vai retornar posteriormente, e possivelmente com ainda maior intensidade. Exceto nos casos em que retaliamos com agressividade ainda maior, o que pode ter efeito também temporário, mas isso apenas reprimirá uma agressividade que continuará crescente.

O redirecionamento de impulsos agressivos para atividades construtivas é frequentemente uma opção utilizada. Quer seja canalizando-as para as práticas esportivas ou artísticas, ou remodulando-as para atividades intelectuais. Mas não costuma nos ocorrer que a melhor solução para um jovem com potencial para agressividade é envolvê-lo com brigas de rua, gangues e criminalidade.

Com isso tudo, mostramos que não existe uma separação estanque entre um grupo de pessoas “malignas” e as pessoas normais, embora seja justo estabelecer distâncias quantitativas relevantes. Não parece haver muitas dúvidas que contingências inversas podem levar uma pessoa de um estado de neutralidade para destinos radicalmente antagônicos, e assim, qualquer produção no sentido de incentivar estados mentais potencialmente lesivos deveria ser visto com um mínimo de prudência.

E se essa explanação ainda não foi suficiente, porque é fácil imaginar certos contra argumentos prontos, é justo imaginar que tais argumentos estão em geral se fundando em alguma especificidade. Como por exemplo, achar que o caso do meu filho contradiz o exemplo, ou que pessoas que conheço não seriam vulneráveis a tais contingências e etc. Mas basta generalizar um pouco mais para essa resistência se tornar insustentável.

Perguntemos a uma mulher minimamente razoável se, numa situação em que fosse obrigada a ficar sozinha algum tempo restrita em um local com um homem desconhecido, e que lhe inspirasse alguma desconfiança de potencial agressividade, e se lhe fosse dada a incumbência de selecionar algum filme para assistirem enquanto esperam passar o tempo, se ela não iria preferir um filme de teor mais inofensivo ou tranquilo do que um que mostrasse violência sexual, ou alguma produção pornográfica sadomasoquista?

Isso nos mostra que o argumento da descontinuidade, achar que não existe relação entre uma produção midiática agressiva e possíveis manifestações agressivas reais, não passa de um escapismo. Nós não confiamos nele! Caso contrário ninguém se incomodaria em, estando sob o poder de sequestradores, assistir a um filme que explorasse brutalidade ao invés de uma inofensiva comédia romântica. Afirmar que não é uma mídia agressiva que pode induzir alguém ao comportamento agressivo só parece minimamente viável quando estamos nos referindo a um grupo já conhecido, quer seja confiando em nós mesmos, ou em nossos amigos.

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Por isso, embora seja verdadeiro que nem todas as pessoas são tão facilmente influenciáveis, e aliás, a maioria de fato não é, é inegável que existem sim pessoas que são influenciadas pela produção artística, como as simples recomendações parentais já nos indicam, e ainda mais o fato de que somos claramente inclinados a não recomendar certas produções a certos perfis de pessoas caso uma possível incitação de sua potencial agressividade nos incluir em seu círculo de alcance.

Ao lançar mão do argumento da descontinuidade, o usuário conta com a certeza da própria segurança, de que ele ou os que lhe são próximos, não são vulneráveis à influência potencialmente nociva do conteúdo. Em suma, já está, num outro nível, invocando outra descontinuidade, no caso entre ele e o âmbito potencialmente afetado pelo fenômeno que pretende negar.

Isso fica ainda mais evidenciado quando analisamos o outro argumento, que prega ser na realidade vantajoso que exista tal produção, por canalizar eventuais ações concretas para o mundo virtual. Ora, que tal argumento parte de uma premissa essencialmente contraditória ao do argumento da descontinuidade, é evidente, visto que está afirmando haver uma relação causal entre essa estética e o ato concreto. Apenas está atestando o caminho inverso, isto é, ao invés de admitir que apreciar a estética violenta levará à ações hediondas concretas, é o potencial para ações hediondas concretas que levará à apreciação da estética da violência.

E é evidente também que ambos os casos podem coexistir, ou seja, haver esse tipo de escape de ações concretas para o âmbito virtual em um determinando tipo de público, e ao mesmo tempo, em outro, haver uma mera apreciação dissociada do potencial de concretização. Mas ainda assim, o argumento de descontinuidade fica comprometido, visto que admite relação entre a disposição estética e a predisposição à ação. A única diferença é que a descontinuidade é transferida para uma linha demarcatória que separa dois grupos distintos, mais uma vez, proclamando que não existem casos intermediários e preconizando uma cisão do mundo em grupos estanques.

O argumento da válvula de escape pode, então, ser invocado em quase todas as situações anteriormente citadas. Suponhamos que não há forma de refrear a agressividade de nossos filhos, então iremos preferir que eles se dediquem a expressões artísticas violentas do que à violência real. Suponhamos que estamos obrigados a conviver por um momento com alguém potencialmente perigoso e que esteja em vias de nos atingir com sua agressividade, então iríamos preferir que ele direcione tal agressividade para uma atividade virtual do que a uma atividade real.

Mas o uso do argumento soa no mínimo incômodo, visto que já parece sugerir que o público alvo deste tipo de produção artística pervertida é realmente um segmento social potencialmente perigoso, e por decorrência estigmatiza ainda mais os que consomem tal produção de um modo ainda mais incisivo do que as críticas dos conservadores costumam fazer, visto que em geral estão mais preocupadas com o sentido contrário desta influência. Mas, e por falar nisso, por que achar que essa conexão entre o potencial para ação concreta e a apreciação estética só pode se mover num sentido? Isto é, o da capacidade de produzir eventos reais para a disposição em vivenciá-los na mera produção artística?

Por que essa predisposição não poderia, então, levar aos apreciadores da violência artística à potencialidade de materialização de crimes? Acaso o fã de filmes de artes marciais não costuma ser, muitas vezes, um praticamente de tais artes? O apreciador de futebol não tem frequentemente a disposição para jogar factualmente o jogo ao invés de apenas assistir? Aquele que joga jogos de aviação frequentemente não gostaria de ser um piloto? Então porque alguém que aprecia jogos de tortura, estupro ou massacre não poderia também possuir uma disposição para tais práticas no mundo real?

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Não se trata de afirmar que todos o teriam, seguramente. Mas que dentre o grupo dos apreciadores do gênero, haveria tanto os que saem do real para o virtual quanto os que fazem o movimento contrário. E apenas alegar que tal movimento contrário seria muito mais custoso e arriscado não elimina o fato de que inúmeros indivíduos, de algum modo, saíram do plano da imaginação para o plano concreto a despeito de todo o risco e do custo.

Para praticar um ato de extrema crueldade contra alguém, é necessário eliminar qualquer sintonia empática com esta pessoa, e a apreciação disso num nível meramente estético pode ser apenas o primeiro passo.

Por fim, antes de se concentrar na questão empática, é bom lembrar que há um limiar claramente distintivo entre a periculosidade de estéticas de mera ação, ainda que violenta, mas contextualizada, como batalhas entre exércitos, lutas entre guerreiros, ou tiroteios entre bandidos e policiais, daquelas que envolvem estupros, violência contra pessoas indefesas ou crueldade contra os mais fracos.

Os perpetradores de massacres em escolas norte americanas tem dificuldade de serem associados a jogadores de jogos de ação, porque eles não se inspiraram de fato em jogos deste tipo. Caso contrário teriam entrado atirando em delegacias de polícia, bases militares ou casas de traficantes de drogas repletas de seguranças armados, ao invés de abrirem fogo contra pessoas desarmadas. Por outro lado, há que se considerar que a facilidade com que os jogos permitem aos jogadores um poder muito superior ao dos inimigos, como diversas vidas e armas superiores, seja praticamente correlato ao de, na vida real, usar armas de verdade contra pessoas indefesas.

Mas de qualquer modo, ainda há uma diferença estética entre um confronto entre partes armadas e uma violência desigual contra os indefesos. E será neste último ponto que focaremos o argumento final contra a estética da crueldade.

 

 

 

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APENAS UM JOGO...

...ou um filme, desenho animado, histórias em quadrinhos, etc. Este é um argumento comum que, de certa forma está sintetizando os demais. Ao restringir a estética perversa a apenas uma expressão cultural, pretende-se afirmar sua descontinuidade com a realidade, bem como invocar sua suposta imunidade cultural, apoiada no relativismo.

Mais uma vez, esse argumento costuma envolver dois aspectos contraditórios. Por vezes, quer invocar que apesar de sua potencial nocividade, sua validade como expressão cultural deveria lhe legitimar, da mesma forma como outras expressões potencialmente nocivas são legitimadas, do contrário, muito países laicos teriam que proibir certas religiões. Por outro lado, está atestando sua inofensividade, baseada em geral no argumento de descontinuidade.

Quando a livre expressão, lembremos mais uma vez que esta jamais significou a liberação irrestrita de qualquer conteúdo, ou a apologia ao nazismo não seria proibida em diversos países, bem como a apologia a certos crimes não seria em qualquer local da civilização ocidental, ou a calúnia e difamação. Discursos que sejam considerados potencialmente perigosos são constantemente proibidos ou regulados. Sistema jurídico algum permitirá que alguém mova uma ampla manifestação pública incentivando à prática de um crime. Se marchas em favor da liberação das drogas já são frequentemente proibidas, que dizer de discursos a favor do direito de assassinar, sequestrar, roubar ou qualquer outra ação que atente diretamente contra a liberdade de alguns em prol da superlação de liberdade de outros?

Mas temos visto inúmeras produções artísticas de extrema perversidade passarem incólumes em diversos veículos de comunicação e serem amplamente distribuídas. E quando ameaçadas de restrição, discursos liberais são invocados não apenas pelos seus apreciadores, mas até mesmo por aquele que tem repúdio pelo material em si, investidos de uma consideração exacerbada e equivocada sobre o que vem a ser o benefício da liberdade, que jamais deveria ser vista como um fim em si, mas sim como um meio para a conquista da felicidade e auto determinação, o que é claramente incompatível com um estado de coisas que permita a ocorrência de violações ao que há de mais fundamental ao indivíduo, e nem mesmo apologias a tais violações. E assim, por que permite a apologia da estética de tal violação?

Ao mesmo tempo, o ataque contra tais formas de expressão costuma focar-se invariavelmente em bases morais, e quando muito, no mero repúdio pessoal, tentando encontrar paralelos legais para justificar sua proibição. Curiosamente, o motivo fundamental do repúdio da maioria das pessoas sobre tal produção costuma ser omitido, se não deliberadamente mascarado. E esse motivo é simplesmente uma sensibilidade que se mostra chocada com tais expressões, e tal emoção é o resultado direto de uma disposição empática resistente.

Com essas considerações, faremos um breve exercício de pensamento que, espero, consiga trazer o cerne da questão à tona, sem disfarces.

Vamos propor alguns novos jogos que devessem ser lançados em larga escala, pela grande indústria. (Pois em escala menor, por programadores independentes, já existem alguns similares.)

Massacre na escola. O objetivo é o jogador, equipado com diversas armas, matar o máximo possível de alunos, professores, funcionários e se possível até pais de alunos em um cenário escolar qualquer. Todos, evidentemente, desarmados.

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Campo de extermínio. No controle de um campo de concentração, o jogador deve administrar os recursos da forma mais eficaz possível para exterminar judeus, homossexuais, russelitas, comunistas, etc. Tentando obter o maior número de execuções possível.

Serial Killer. Como o nome sugere, tem como meta traçar um perfil de vítima e sequestra-las, torturá-las e executá-las na maior quantidade possível, ao mesmo tempo que evita ser pego pela polícia.

Infanticídio. A meta é procurar crianças, de preferência bebês recém nascidos, roubá-los de seus pais e depois executá-los com requintes de crueldade. De preferência infringindo muita dor, e com bônus especiais se feito diante da própria mãe, assistindo desesperada e impossibilitada de intervir.

Porões da Ditadura. No papel de investigadores do DOPS nos anos de chumbo, o objetivo é torturar subversivos para extrair informações sobre possíveis comandos revolucionários ou de resistência ao regime.

 

Poderiam também ser meros filmes onde, ao contrário do que normalmente ocorre, tais eventos fossem vistos sob uma ótica aprovadora dos atos, passando uma lição de que tais atitudes são desejáveis.

É evidente que algo desse tipo despertaria, de imediato, uma reação feroz da sociedade. Os movimentos que se lançariam não só para proibi-los, mas para punir os responsáveis seriam muito mais intensos do que as fracas campanhas moralistas que tem sido movidas contra outros produtos similares mas ainda nem tão ofensivos.

E então, recolocaremos os mesmos argumentos defensivos de tais produtos. Não é apenas um jogo? Não é uma legítima expressão cultural, amparada pela liberdade? Não é uma expressão virtual que em nada se relaciona aos eventos reais? Não há um limiar absoluto entre apreciar tais práticas no mundo imaginário, e executá-las no mundo real? Não seriam eficazes meios de desviar potenciais crimes reais para serem executados apenas na virtualidade? Não é uma mera questão de saber separar o real do virtual? (Embora um dos principais objetivos da indústria de videogames seja exatamente eliminar essa diferença o máximo possível.)

Obviamente, nenhum destes argumentos seria aceito para justificar tais jogos, ou filmes, ou demais expressões artísticas que se configurassem de tal forma. Eles escandalizariam e seriam repudiados por muitas pessoas que antes não se importavam com os demais casos polêmicos.

E por quê?

Por que eles chocam! Eles agridem nossa sensibilidade. Eles machucam nossos valores e sobretudo, atentam contra o que prezamos como fundamental. Eles ofendem por que empatizamos com as vítimas reais de tal forma que tal empatia se estende para seus correlatos virtuais. E ao encontrar pessoas que consumissem tal tipo de conteúdo, deveríamos sempre indagar o “porquê” de tal apreciação.

Em suma, é nossa sensibilidade emocional que nos mostra que expressões de perversidade de tal ordem não podem ser disseminadas irrefreadamente. E se permitimos que outras produções que não são de modo algum distintas em gênero, mas somente em grau, isso só mostra que já perdemos a sensibilidade para com as vítimas representadas nesses produtos. Banalizamos essa perversidade e compactuamos com sua representação.

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Qual o limiar que separa essas sugestões dos exemplos factuais que já estão disponíveis no mercado? Há uma diferença qualitativa? A única distinção qualitativa é demarcada muito aquém do limiar que tais produções factuais já ultrapassaram. Uma coisa é representar a competitividade, a luta pela sobrevivência, a guerra entre forças equivalentes ou conflitos entre partes dispostas a tal. E outra bem diferente, e representar a pura perversidade de alguém que não está emulando sentimentos de coragem, superação, habilidade, mas sim, apenas se deliciando com o sofrimento de vítimas indefesas.

Apelando então para a liberdade. Não seria muito mais libertário controlar impulsos que se materializados causariam terrível estrago a outros e a si próprio? Ceder a pulsões destrutivas, estar a mercê de forças inconscientes, jamais foi um caminho para a liberdade.

A causa primeira de todas as ações humanas está na mente. Que sentido faz repudiar seu efeito, a consequência concreta, se não o fazemos com sua causa?

Aquele que protesta contra a produção artística perversa faria melhor em não explorar argumentos moralistas ou conservadores, apelando a instâncias arcaicas que não tolerariam tais produções virtuais mas as toleravam como manifestações reais. E aquele que as permite hoje deveria pensar se não há tensão entre repudiar a materialização mas não sua virtualização.

Em suma, é uma questão de consistência. Mesmo não se tratando de estabelecer proibições terminais a tais produtos, esse tema deveria ser sempre abordado. Críticas sólidas devem ser feitas, e mostrados os verdadeiros motivos por que rejeitamos a estética da perversidade.

Não se combate símbolos, imagens, idéias e mentalidades com meras leis, regras e repreensões morais. Mas, principalmente, com símbolos, imagens, idéias e mentalidades opostas, ancoradas no que temos de melhor.

 

 

 

 

 

 

 

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Nota Final. Devido a nítida incompletude deste trabalho, pensei em titular esse fechamento como "PseudoConclusão". De fato, além de um desenvolvimento maior de alguns tópicos teóricos, pretendo ainda explanar muito mais sobre aplicações práticas desta Ética, que apesar de assumidamente prescritiva, não pretende normatizar preceitos éticos diretos, mas sim estéticos. Ou seja, há lugar para um breve sistema de regras para serem aplicadas à produção, e principalmente a apreciação cultural. No fundo, ademais, trata-se antes de tudo de um apelo à um forte senso crítico, e sobretudo auto crítico, pois, como sempre e enfim, toda forma de conhecimento e aperfeiçoamento pessoal passa pela via do auto conhecimento e da auto determinação.

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CONCLUSÃO

Esse último capítulo evidentemente representou uma mudança de estilo em relação ao restante desta monografia, não apenas retomando elementos intuitivos e mais livres típicos da Primeira Parte, mas na verdade enveredando por uma abordagem muito mais passional, apelativa e apologética. Espero finalizar este texto com uma justificativa desta abordagem, e ao mesmo tempo com um resumo explicativo do que foi exposto, expondo definitivamente toda a essência deste sistema.

A Ética é possivelmente o tema mais importante da Filosofia, não somente por sua abrangência histórica, mas por seu interesse e relevância para toda a sociedade, tendo repercussão factual no mundo concreto. Foram desenvolvidos diversos sistemas éticos, que influenciam de formas diversas nossa moralidade, legislação, expressões culturais e sensibilidade. Mas imanente a tudo isso, temos uma base emocional e intuitiva que na realidade fundamenta os princípios primários de toda a ética, que tem apelo universal, e que se assentam sobretudo na empatia, expressos pela Regra de Ouro. Tal abordagem foi minoritária na tradição, mas parece ganhar cada vez mais importância, se não na filosofia, ao menos fora dela, e os filósofos não podem se dar ao luxo de ignorar isso.

Não se trata, porém, de criar um novo sistema de regras, visto que já temos deveres e legislações em grande quantidade, e que diretrizes jamais foram totalmente eficientes. Mesmo porque pode-se preconizar o cumprimento de normas específicas, mas não se pode ordenar as pessoas a serem mais sensíveis, e mais empáticas.

O que se pode fazer é incentivar esse sentimento fundamental, que é a base de nossa capacidade de emulação, de nosso reconhecimento da subjetividade alheia, e nossa sensibilidade estética, e assim tal incentivo deve ser feito pela mesma via na qual tal sentimento se funda, a imitação comunicativa, que pode transmitir sinteticamente uma quantidade e qualidade de conteúdos que a razão e o discurso jamais poderiam lograr.

Para aperfeiçoar e aprofundar essa sensibilidade humana, a forma mais eficaz se dá por nossa produção artística cultural, que transmite nosso universo simbólico coletivo e se comunica com nossa intimidade estrutural, e isso deve ser feito não apenas na forma de conteúdos que elevem a empatia e purifiquem nossas emoções, mas também pela restrição, vigilância e principalmente crítica sobre conteúdos que tenham o efeito contrário.

Por isso o nome deste texto, ao fazer alusão à Regra de Ouro, não poderia se limitar a um sistema ético, mas antes de tudo, a um apelo estético. Não basta ancorar definitiva e explicitamente uma Ética Dourada, que de certa forma já reverbera em nossos sistemas legislativos, religiosos, morais e intelectuais. Mas antes de tudo, apelar a uma insistente associação entre o belo, o correto e o justo, com base fundamentalmente emocional, e também racional. É trazer à luz o que temos de melhor em nossa interioridade, nosso potencial para nos associar intimamente, transmutando o aparente chumbo de nossos impulsos primários na áurea força intersubjetiva de nosso valor essencial.

Ansiando por uma Estética Dourada.

Marcus Valerio XR

Abril de 2010

 

 

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SEGUNDA
PARTE
Por uma
ESTÉTICA DOURADA

MONOGRAFIAS