Universidade de Brasília

Instituto de Humanidades

Departamento de Pós-Graduação em Filosofia

Orientador: Professor Doutor Cláudio Araújo Reis

Examinadores: Professor Doutor Gonçalo Armijos Palácios
- - - - - - - - - - - - Professor Doutor Júlio Cabrera

Mestrando: Marcus Valerio XR – 09/54535

OTIMISMO X PESSIMISMO

ANEXO I da ESTÉTICA DOURADA

www.xr.pro.br/Monografias/OTIMISMOxPESSIMISMO.HTML

Defesa de um Otimismo EXISTENCIAL

Crítica de um Pessimismo ESSENCIAL

Este texto é uma digressão da Monografia ESTÉTICA DOURADA, consistindo de um desvio do tema iniciado na Terceira Parte. Pode, porém, ser lido de forma independente, mas para uma perfeita apreciação é recomendável ao menos a leitura prévia do início da Terceira Parte, visto que alguns conceitos apresentados lá são aqui retomados.

Aproximadamente 87.500 Caracteres

Brasília, Março à Maio de 2010

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INTRODUÇÃO

Há dois tipos básicos de pessimismo, o primeiro logra demonstrar a maldade intrínseca humana, o segundo, a miséria da existência, e eles são mútua e necessariamente excludentes. Ao primeiro cabe a negação de qualquer forma de virtude, atestando que o ser humano é corrompido por natureza e absolutamente incapaz de ser bom, pelo simples fato de ser, claro, essencialmente mal. Todas as suas condutas são determinadas pelo seu apego ao benefício próprio sem qualquer consideração necessária aos demais, ou com considerações meramente utilitárias, visando usufruir deles em benefício de si próprio. Para essa noção, toda a ética não passa de um artifício para beneficiar os mais poderosos e perspicazes, que podem maximizar seus ganhos em uma sociedade mais ordenada.1

O segundo pode concordar com essa incapacidade para a virtude, mas não pela maldade intrínseca, mas pela incapacidade de se livrar da própria miséria, de modo que tem sempre que reagir desesperadamente ao ataque constante das dores e mazelas da existência, que lhe perseguem constantemente, inabilitando-o à prática do bem. E é fato óbvio que o ser humano não pode expressar o seu melhor quando está constantemente massacrado pelo sofrimento.

A incompatibilidade entre essas linhas de pensamento deriva do fato de que, para o primeiro, o ser humano, ou ao menos alguns deles, tem a possibilidade de beneficiar a si próprio, de modo que às custas do mal estar alheio, pode conseguir o bem estar, e devido a imoralidade essencial disso, a felicidade. (A não ser que se defina a felicidade como algo que deveria ser necessariamente virtuoso.) Já o segundo não pode admitir que tal conquista seja possível, pois ela seria, no máximo, um alívio para o constante sofrimento. E não é possível reduzir um ao outro sem o abandono da umas das teses essenciais, pois ou seríamos um mero reagente do mal intrínseco da existência, quiçá do universo, não podendo ser responsabilizados pela própria maldade, ou não estaríamos de fato desamparados, podendo atingir a felicidade, tornando a existência potencialmente benéfica.

Comparemos tal tensão às que podem ser encontradas entre sistemas otimistas. Um pela potencial virtude intrínseca do ser humano essencialmente bom; e outro que sustente sua mera reação a princípios de prazer; podem muito bem ser compatibilizados por um sincronismo do bem estar próprio com o bem estar alheio. É possível construir saudáveis meios termos entre éticas deontológicas, virtuosas e consequencialistas, que os danos atingirão no máximo elementos secundários, visto que a potencialidade para o Bem e o acesso a Felicidade permaneceriam como fundamentos comuns. É da natureza do Bem ser compatível consigo próprio. Distintas virtudes se harmonizam, e uma pode reforçar à outra. E é da natureza do Mal se autodestruir, e cada vício não só se antagonizar a outro, como a si próprio, o que contamina teorias que se fundamentam na maldade essencial.

Quanto a tais sistemas pessimistas, o primeiro parece já suficientemente rebatido pelas diversas tradições éticas, e principalmente por si próprio. O segundo, menos malévolo, ainda não, mas há algo que ambos têm em comum. É que necessariamente, resultam de um profundo lamento pela própria condição, e um terrível ódio a si próprio, variando somente a ordem com que se dão essas percepções, que mais uma vez são contraditórias, o que só piora a situação, visto que o indivíduo, sob pressão de duas teses contrárias, ambas horríveis, tem sua mente dilacerada pela contradição, o que serve de confirmação de ambas as teses, gerando outra contradição, e outra, numa sucessão sem fim.


1. A Exemplo do sistema de Mandeville, citado na Segunda Parte pelos comentários de Adam Smith.

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OTIMISMO X PESSIMISMO

A passionalidade do otimista é seguramente muito fundamental para poder ser colocada apenas como o resultado final de uma operação intelectual, mesmo porque, sendo centrada numa emoção, a ligação do otimismo com uma subjetividade estética é por demais íntima e incipiente, precedendo muitas vezes qualquer compreensão. Em verdade, o mesmo pode-se dizer do pessimismo, claro, mas este, por outro lado, sente uma necessidade muito maior de se justificar.

É interessante notar que enquanto o otimista pode se dar por satisfeito apenas em se sentir otimista, o pessimista, por obviamente não estar satisfeito, sente uma necessidade de amparo intelectual, de modo que invariavelmente ancora sua subjetividade numa suposta superioridade racional, colocando-o como resultado não de uma passionalidade prévia, mas de uma constatação cognitiva posterior. Daí porque praticamente todo o pessimismo se pressupõe racionalmente justificado.

O cineasta francês François Truffaut disse que "O pessimista é um otimista com experiência.", enquanto Gramsci dizia “Sou um pessimista pela inteligência e um otimista por desejo.”, e o comediante norte americano Mark Twain vai mais longe ao afirmar "Só os tolos não são pessimistas." São extremamente comuns essas associações entre o pessimismo e uma visão mais lúcida da realidade, ou mesmo à coragem, enquanto o otimismo é associado à ingenuidade ou a covardia em encarar a dita “verdade dos fatos”. E não é raro que a própria vida das pessoas que pronunciaram tais frases pareçam contradizê-las. Que Paulo Francis tenha dito “Quem não lê não pensa, e quem não pensa será para sempre um servo.”, apontando isso como indesejável, mas também tenha dito “Todo otimista é um mal informado.”, nos faz pensar em que tipo de obrigação o ser humano teria de se informar apenas para se tornar infeliz. Mas isso não deve ser problema para quem também disse “Apenas os idiotas não se contradizem.”

Todavia, mais reveladora pode ser a frase do filósofo espanhol Miguel de Unamuno, "Não são as nossas idéias que nos fazem otimistas ou pessimistas, mas o otimismo e o pessimismo de origem fisiológica que fazem as nossas idéias.", o que encontra grande respaldo na medicina, visto que pode-se deixar uma pessoa mais ou menos otimista ou pessimista, bem como feliz ou triste, simplesmente pela regulagem da quantidade de serotonina em seu organismo.

Independente disso, desde a antiguidade muitos místicos e filósofos, inclusive orientais, tem demonstrado que o fator mais significativo a determinar estados de ânimo, inclusive os relativos ao pessimismo e ao otimismo, é interno, e não externo. As evidências do mundo a esse respeito praticamente dispensam comentários, visto poder se encontrar facilmente pessoas abastadas, poderosas e bem sucedidas extremamente infelizes, e também o absoluto inverso.

A persistência da associação entre o pessimismo e a superioridade intelectual pode ser explicada pelo fato de que enquanto o pessimista parece depender de um respaldo racional para justificar seu estado de ânimo, o otimista, embora também possa tê-lo, pode facilmente dispensá-lo, afinal em geral admite que ser feliz é mais importante que ser sábio, o que pode ter como efeito colateral a sophofobia. Com esse quadro, não é surpreendente que a idéia “ignorância é felicidade” tenha tantos adeptos.

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Mas a própria filosofia já foi vista, em especial na antiguidade, como uma espécie de “ciência” da, ou para a, felicidade. O Eudaimonismo simplesmente amarra a sabedoria com a ética e com a felicidade, e tal noção ainda é muito forte principalmente na produção cultural popular, com toda a sua galeria de produtos midiáticos que associam o agir correto com a conquista de boas amizades, paz de espírito, consciência leve e, por vezes, incorporando uma poetização do universo, a idéia de que a vida recompensará os bons.

Contra as expectativas de meu projeto progressista, está um dano não apenas potencial mas frequentemente atualizado, que decorre dessa pressuposição de superioridade racional do pessimismo. É que sendo no mínimo espontâneo ao ser humano fugir do sofrimento, pressupor que o mesmo é uma derivação inevitável da reflexão racional íntima e profunda só pode ter como resultado empurrar mais e mais pessoas para as garras da irracionalidade e o conforto da acomodação à sombra do que há de mais alienante nas religiões e atitudes mundanas de fuga da sobriedade.

Se considerarmos os inegáveis males causados pela ignorância, em especial daquela orgulhosa que despreza o conhecimento, não se pode esperar da associação tristeza e inteligência outra coisa que não uma contribuição insofismável para a piora das condições de vida no nosso mundo, o que evidentemente só serve para retroalimentar essa mesma visão trágica.

Se fosse sequer possível demonstrar de modo inequívoco que esse casamento entre tristeza e conhecimento é inevitável, e que a única esperança de alívio é a irracionalidade, a ilusão e a ignorância, ainda assim seria questionável a sua validade pela sua simples inutilidade aos propósitos originais da racionalidade que, como todas as outras potencialidades humanas, são subprodutos da vida, da busca pelo prazer e da existência, e sendo assim, não se pode esperar qualquer obrigatoriedade de usá-la para o próprio prejuízo.

Mas não é nem de longe o interesse visado aqui, pois espero antes apontar a falta de substancialidade de tal presunção e demonstrar que, na pior das hipóteses, o mais profundo mergulho honesto na razão pode no máximo demonstrar uma total neutralidade valorativa. Mesmo porque, como já visto, não poderíamos superar o ceticismo fundamental.

FELICIDADE E INTELIGÊNCIA

Uma das frases mais radicais a respeito da relação pessimismo e racionalidade veio na forma de uma formulação reversa mas equivalente às anteriormente citadas. Certa vez uma cantora afirmou que “felicidade é coisa de gente burra” 2 , o que me impeliu a considerar seu merecimento por, no mínimo, uma menção honrosa na disputa pela frase mais burra e infeliz de todos os tempos.

Minha reação, evidentemente passional, já foi questionada, em especial na ofensa indiretamente dirigida à autora e aos que compartilhem da mesma opinião. Em minha defesa, não posso deixar de apontar que a frase em si já é uma ofensa contra a humanidade em peso, mais, contra a própria condição humana, e assim, não seria de se esperar que pudesse ser proferida impunemente.


2. Refere-se a cantora Maysa Figueira Monjardim (1936-1977), a frase teria sido dita numa entrevista, consta em www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a2356383.xml&template=4187.dwt

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Mas voltando ao discurso, que a frase em si é infeliz, está pressuposto e implícito na própria afirmação, que seja ‘burra’, é o que se pode discutir.

Contém o óbvio pressuposto de que pessoas ‘não burras’ não buscam a felicidade, o que nos levaria então a perguntar afinal o quê buscam, pois a vida humana é indissociável da busca de algo, ou, como diz o próprio pessimismo, da fuga de algo. Isto tende a levar a uma série de perguntas que só poderia ser encerrada num âmbito subjetivo que visa buscar um tipo de satisfação pessoal, que, como tal, é praticamente indissociável da felicidade, ou para considerar novamente o pessimismo, de algum alívio para o sofrimento, o que termina por ser equivalente.

Embora tal frase não tenha sido pronunciada por alguém que sequer se aproxime do mundo intelectual, ela ressoa entre os âmbitos pessimistas da intelectualidade, e o que mais ilustra isso é a própria pretensão de todo pessimismo em ser intelectualmente superior ao otimismo. Pretensão esta que vaza, ou inunda, ao senso comum de modo flagrante nas simples e comuns frases que gostam de confundir pessimismo com realismo.

Ao afirmar “não estou sendo pessimista, e sim realista” 3 , ou coisa que o valha, ocorre então uma tentativa de demonstrar que uma visão negativa de algo é superior à positiva, e na verdade mais próxima do “real”. Se concordarmos que valorações de tal ordem são essencialmente subjetivas, flagramos mais um exemplo da comum pretensão entre determinar o mundo exterior segundo o próprio mundo interior, ou, poeticamente dizendo, “recriar” o mundo à própria imagem e semelhança, que é, evidentemente, apenas uma possibilidade de como o Ego pode construir sua própria percepção existencial.

Não que qualquer sistema de pensamento, de que ordem for, não traga embutida sua própria pretensão de superioridade, sem a qual não haveria força motriz para se constituir. Mas o pessimismo se diferencia em especial por dois aspectos.

Primeiro, por mesclar um conteúdo subjetivo, passional, na própria evidência de superioridade. Otimismo e pessimismo repousam, sobretudo, em percepções valorativas associadas a estados de ânimo que não são plenamente traduzíveis em expressões analíticas. Minha disposição em considerar que, ser curado de um câncer e ganhar na Mega Sena ao mesmo tempo seja ruim, pode até ser de difícil justificação, mas mesmo o fato de eu não justificá-la não a torna desprovida de validade intrínseca. Pode ser difícil apresentar argumentos para considerar que ser condenado à prisão perpétua é uma coisa boa, mas mesmo jamais o fazendo, não se pode afirmar que minha convicção sobre isso seja falsa. Ou seja, há uma soberania na subjetividade que não pode ser objeto de disputa. Como, em última instância, todo e qualquer sistema de pensamento otimista ou pessimista se assenta sobre uma subjetividade, ocorre que a pretensão de superioridade de um sobre o outro se baseia, no fundo, numa petição de princípio que estabelece que a percepção do ruim é, de algum modo subjetivo, superior a percepção do bom.

Segundo que, curiosamente, a mesma pretensão não é tão flagrante no otimismo em relação ao pessimismo, pois é até mesmo comum que este traga embutido algum tipo de princípio “anti-Mill”, pressupondo que é melhor estar errado e feliz do que certo e infeliz. Ou seja,


3. Essa frase, e variações como “não sou pessimista, sou realista”, e as variações estilísticas mais óbvias de pronomes e verbos, obteve, em buscas no Google (28/11/09), mais de 7 mil referências, só em língua portuguesa.

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o otimista parece valorar mais a felicidade do que a racionalidade. Se a razão lhe for favorável, bom, se não, pode ser deixada de lado sem problema. O inverso jamais poderia ocorrer ao pessimismo, que reivindica a superioridade de sua racionalidade porque a pura e simples infelicidade em si não é suficiente. No entanto, em ambos os casos, não há diferença essencial em sua estrutura, visto que ambos usam a ‘escrava das paixões’ para justificar a própria subjetividade, até mesmo quando se diz que “é melhor ser um porco feliz do que um humano insatisfeito”.

Sintetizando, a subjetividade humana, no que se refere a seus estados emocionais, é absolutamente inviolável. E isenta de erro! Posso até estar a mentir quando digo que estou em tal estado emocional, mas se eu sinto tristeza, solidão, alegria, esperança, é inquestionável que de fato eu me sinto assim. Pode-se acusar o pessimista de inúmeros erros, mas não de que seu desespero seja irreal, pode se acusar o otimista de muitas coisas, mas nunca de que sua confiança seja ilegítima. Pode-se até, por meio de argumentos, alterar-lhe o estado de ânimo. Pode-se levar alguém da felicidade à tristeza, e pode-se considerar que as razões que justificariam um temor sejam falsas. Mas não se pode negar o temor em si. Não se pode negar que quem está feliz, realmente sente-se feliz, e é por isso que otimismo e pessimismo são fundamentados passionalmente.

Há, porém, uma vantagem que pode ser conferida ao otimista. Se por um lado é notório que pessimistas sempre se apegam a um ideário de racionalidade para justificar seu sofrimento, e que otimistas não se preocupam com isso, por outro lado a pragmática pode ser sempre levantada em favor do otimista.

Pode-se considerar que pelo fato de que ser feliz é melhor do que ser triste, algo que nem mesmo o pessimista nega, então a razão deve ser sempre posta a serviço da felicidade, no caso, em favor de uma interpretação de realidade que a justifique. Por outro lado, parece injustificável afirmar que temos obrigação de usar a razão para nos tornar infelizes, exceto apelando para uma reificação da própria razão, como se estivéssemos obrigados a um compromisso externo. Portanto, o otimista pode se justificar tanto pela via da superioridade da felicidade sobre a razão, quanto da razão sobre a felicidade se esta lhe for favorável. O pessimista, por outro lado, só pode apelar para a superioridade da razão.

O resultado final, quando condensado na psique individual, pode soar ainda mais dissonante. Sendo os seres humanos antes passionais do que racionais, o otimista parte de sua paixão para manobrar a razão em seu favor, o pessimista parte de sua paixão para manobrar a razão em seu desfavor. Por uma questão puramente seletiva, a tendência é a sobrevivência dos primeiros, cabendo aos pessimistas o consolo de uma suposta superioridade racional.

Isso, ou os pessimistas estão, no fundo, a pregar-nos uma peça, obtendo enorme satisfação pessoal em sua alegada superioridade intelectual e conseguindo, ao final, reverter seu estado de desânimo com um eficiente meio de se favorecer emocionalmente, manobrando a razão de modo um tanto mais obscuro e ousado em nome do prazer.

Afinal, num mundo onde existe o masoquismo, quem pode saber se na subjetividade do sofredor não se esconde um intenso prazer decorrente de uma estética anômala?

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As reflexões seguintes agora passarão a uma abordagem mais específica, que condensa uma série de obras distintas de teor pessimista e niilista. Entre estas, é importante destacar, estão idéias de Sade, Schopenhauer, Cioran, Saramago, Cabrera, Lez. U. Knight 4 , Benatar 5 , Cancian 6 e outros, bem como, principalmente a milenar doutrina budista, que, espero mostrar mais adiante, constitui um pessimismo muitíssimo mais radical e profundo do que os autores ocidentais jamais poderiam conceber. Assim como, também, da parte profundamente negativa de outras religiões, que impõem um forte pessimismo imanente ao mundo para salvá-lo por meio de um otimismo transcendente. Tudo isso está condensado num conceito chamado Pessimismo Essencial, que é muitíssimo coerente entre seus autores, que diferenciam-se quase que exclusivamente nos ornamentos.

É minha intuição fundamental que quase toda produção pessimista ocidental é também marcada pelo resultado de uma ruptura incompleta com a tradição religiosa, tendo a curiosa postura de rejeitar somente e exatamente o que ela tem de bom, quando o melhor seria a rejeição total e completa, ou pelo menos a rejeição somente do que há de ruim. É como deixar de crer em Deus, mas manter a crença no Diabo. Perder a esperança no Paraíso, mas acreditar que já estamos no Inferno.

Enfim, pretendo que toda minha investida otimista e positiva a respeito da existência esteja o mais desvinculada possível de qualquer bagagem religiosa, que no fundo tende a ser apenas uma reação defensiva ante um pessimismo essencial. Ainda que não seja intentada qualquer rejeição prévia a validade de vivências espiritualistas como respostas adequadas a certas experiências existenciais.

Embora possamos ter superado um pensamento clássico onde, por mais trágica que fosse nossa visão do mundo, nutria uma esperança vindoura e intangível, discordo por completo que isso represente uma destruição de valores positivos e da própria esperança em si, por que no fundo tudo o que fizemos foi mostrar que tais características que tanto admiramos não estão fora de nós, e que continuam não apenas perfeitamente válidas e experienciáveis como até mesmo ganham em acessibilidade e pragmaticidade.

EXISTÊNCIA

Cabe agora aceitar uma das maiores contribuições do pessimismo, a necessidade de se justificar o valor da existência. Pois todo sistema ético é, como já foi dito, normativo, pois a mera descritividade só é cabível na psicologia. Todo sistema de normas é obviamente valorativo, e assim, tem-se que necessariamente justificar os valores. Os sistemas, então, tendem a fundar-se no valor do Bem, ou mais apropriadamente da Felicidade, no sentido mais generalizante possível, isto é, tanto quantitativa quanto qualitativamente, tanto individual quanto coletivamente.


4. Ambientalista que prega a extinção da humanidade em prol do equilíbrio ecossistêmico. Fundador do Voluntary Human Extinction Moviment - www.vhemt.org.

5. David Benatar, autor de Better Never That Have Been – The Harm of coming to Existence.

6. André Díspore Cancian, pensador brasileiro autor do livro O Vazio da Máquina, sendo parcialmente acessível em niilismo.com.br e niilismo.net.

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No entanto, a característica principal do Pessimismo Essencial, isto é, aquele que prega a impossibilidade de uma autêntica e lúcida felicidade, é esvaziar a relevância desses valores, positivando o Mal, Sofrimento, Dor, e colocando os valores opostos na defensiva, afirmando então uma assimetria desfavorável. Em síntese, a afirmação de que o Mal existe em quantidade superior ao Bem, tornando toda forma de existência indesejável. Com isso, pretende-se esvaziar o valor da existência em si, o que por consequinte derruba todo e qualquer sistema de valores não por negar a validade do Bem, mas por torná-lo um sonho inatingível, uma ilusão anti-Leibziniana, e ao mesmo tempo tornar o Mal real, numa coisificação anti-Agostiniana.

Não sendo objetivo dos pessimistas aniquilar pragmaticamente os valores dos quais dependemos para existir (a não ser que isso puder ser feito de forma tão fundamental que proponha-se nossa completa extinção como forma mais eficiente de eliminar o sofrimento), e partindo da premissa que, apesar de tudo, ainda admitem a desejabilidade do Bem (caso contrário o pessimismo faria tanto sentido quanto o Paradoxo do Mentiroso), então resta apenas realizar aquilo que em geral os filósofos tem considerado desnecessário. Explicar porque a existência é um bem.

Desnecessário por parecer demasiado óbvio e intuitivo à maioria, que as pessoas desejam a felicidade e que para obtê-la, sendo inevitável existir, também desejam a existência em si. É claro que só a existência também permite experimentar o sofrimento, no entanto, praticamente todos os eventos que nos levam ao sofrimento estão associados a eventos que nos levam a inexistência. A doença, a morte, a dor, o medo etc, todos são fenômenos relacionados direta ou indiretamente à ameaça de extinção, e assim, como o inverso também é trivial, qualquer forma de prazer se associa a uma maximização existencial, isto é, o que está feliz parece viver mais que o que está triste, sentir prazer parece ser existir em maior qualidade e quantidade do que sentir dor, mesmo porque a dor pode ser negada, esquecida, bloqueada.

Mas isso também soa ilusório, pois em momentos de dor ou intenso sofrimento, podemos também nos sentir mais vivos que nos momentos de felicidade, e podemos também esquecer com mais freqüência o prazer e o bem estar do que a infelicidade, que pode deixar marcas indeléveis na memória, inclusive na forma de traumas que definem nossa individualidade.

Tudo isso, no entanto, não altera o fato central de que nossa subjetividade é a principal responsável pela escolha de o quê privilegiar. O segredo da felicidade, apesar de alardeado como tão misterioso, é tão estranhamente simples que por vezes pode escapar de vista pelo simples fato de insistirmos em procurar em contextos mais complicados.

Em síntese, podemos descrever tal “segredo” na forma de duas proposições praticamente axiomáticas: Reconhecer que toda e qualquer coisa apresenta aspectos agradáveis e desagradáveis, e agir de modo a maximizar os aspectos agradáveis e minimizar os desagradáveis.

“Toda e qualquer coisa” significa literalmente qualquer tipo de fenômeno existencial concebível e vivenciável. A vida mais luxuriosa, abastada e despreocupada possível apresenta os aspectos negativos da falta de desafio, da possibilidade do tédio, da desilusão, do medo da perda etc.

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A situação mais desprezível, miserável e aversiva possível apresenta os aspectos positivos da possibilidade de fortalecimento, de conhecimento de situações adversas, da oportunidade de demonstrar superação e heroísmo.

A pessoa feliz, bem como o otimista, se é que haja alguma diferença, é simplesmente alguém que enfoca os aspectos naturalmente agradáveis da situação, e como a grande maioria de nós vive longe desses extremos acima concebidos, o leque de escolhas sobre o que valorizar e maximizar é, em geral, bastante vasto. Assim, justificamos a noção trivial de que a pessoa otimista se sente feliz pelo que já conquistou e se sente animada pela possibilidade de conquistar mais, enquanto o pessimista despreza o que conquistou e sonha com o que não conquistou, e ou se concentra em sua incapacidade de conseguí-lo.

No entanto, tanto quanto em famosos outros exemplos (até mesmo a tola alegoria do copo metade cheio e metade vazio), está pressuposta uma simetria, uma perfeita equivalência entre as duas formas de percepção, as duas subjetividades. Para a construção de um Pessimismo forte, é inevitável quebrar essa simetria e construir uma assimetria desfavorável.

O mesmo pode ser dito de um Otimismo forte, embora possamos também dizer que a manutenção da simetria já basta ao otimista, ou até mesmo a aceitação de uma assimetria desfavorável que não seja muito acentuada, pois o otimismo pode simplesmente justificar sua escolha pelo princípio da preferencialidade do bem, e que quem pensar o contrário que vá “ser feliz sendo triste”!

De qualquer modo, o Pessimismo crê ser capaz de demonstrar essa assimetria de algumas formas razoavelmente simples, embora ousadas, em especial, apelando ao fato inexorável da morte, e todas as suas companheiras, isto é, a dor, doença, velhice etc. Assim, se todos os viventes estão irremediavelmente condenados à morte, e sendo a morte ruim, então a vida é maculada por sua indissociabilidade do mal da morte. Lembrando, no caso, que tal vida é a existência em si.

E quando o otimista replicar que todos os condenados à morte estão necessariamente vivos, o pessimista poderá responder, com indefensável destreza, que a morte sempre sucederá à vida, ou seja, o movimento natural é do desejável, a vida, para o indesejável, a morte, um declínio, uma perda.

E mais, poderá então ser mostrada uma assimetria ainda mais radical, pois enquanto os viventes condenados à morte experimentam o sofrimento inevitável de pura e simplesmente estar conscientes disso, por outro lado, os não viventes não só não estão condenados à morte, por não estarem vivos, como não experimentam o tal sofrimento consciencial, e, ainda mais importante, não sentem falta da vida.

Essa última característica parece ser o Xeque Mate após o último movimento possível ao otimista, ao declarar que os não viventes, tanto os mortos quanto os jamais nascidos, não gozam dos benefícios que a existência também permite. O pessimista simplesmente evidenciará o simples fato de que não existindo, jamais se sente falta de tais benefícios, enquanto o vivente não só pode senti-lo, como ainda estará, por mais prazerosa que seja sua vida, inevitavelmente sujeito não só à morte, mas a várias formas de sofrimento.

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Em síntese, tudo pode ser resumido pelo precursor filosófico notável pessimista mais antigo, o Budismo, com suas Quatro Nobres Verdades, que os pessimistas ocidentais modernos e contemporâneos se orgulham em apresentar de modo variado como se estivessem promovendo algum tipo de revolução de pensamento, dado nossa lastimável falta de intimidade com o pensamento oriental.

A Primeira Nobre Verdade de Buda é que “Tudo É Sofrimento”, ou envolve sofrimento, pois mesmo o prazer é finito, e acaba sendo vencido, afinal, pela dor e pela morte. A Segunda Verdade é que “O Sofrimento Deriva do Apego”, ou do desejo, isto é, não é o simples fato de perdermos algo, mas de valorarmos aquilo que perdemos, e fatalmente perderemos tudo o que damos valor, mas isso só fica mais claro na Terceira, que é “A Eliminação do Sofrimento exige a Eliminação do Desejo”, o que, com um mínimo de reflexão, nada mais é do que a eliminação de qualquer forma de existência, manifestada nos impulsos vitais e expectativas existenciais.

A Quarta Nobre Verdade é apenas o método para a eliminação do sofrimento, que consiste na Senda Óctupla dos Corretos Procedimentos, e é daqui que inferimos melhor a diferença essencial entre esse pessimismo oriental contínuo de 2.500 anos e os espamos descontínuos de pessimismo ocidental. Tal diferença é que o pessimismo budista é incomensuravelmente mais radical do que os suaves pessimismos ocidentais. Literalmente falando, é infinitamente mais grave, pelo fato de que nem mesmo o suicídio consegue deter o ciclo de sofrimento, na verdade o piora, visto que os seres estão perpetuamente condenados não somente a morrer, mas a renascer na roda do Samsara, isto é, o ciclo metempsicótico das encarnações intermináveis, que pode inclusive ocorrer de uma forma involutiva, regredindo para seres inferiores, o que não configura de modo algum um tipo de alívio dado a inconsciência inumana, pois restam resquícios de consciência suficiente para que a encarnação de um antes humano num animal seja uma forma hedionda de tortura. Também, a postura “ética” pessimista de não reproduzir e não colocar novos seres na indesejável existência é completamente irrelevante, pois esses irão nascer de qualquer maneira, por meio da reprodução de outrem, de modo que se sou capaz de fornecer uma vida menos sofrida a meus descendentes, é preferível fazê-lo, aumentando a possibilidade de que sua inevitável existência seja menos miserável. Diante disso tudo, o pessimismo ocidental parece, ou melhor, é, literalmente, como a entrada do Nirvana!

Um projeto otimista bem pode se preocupar menos com os generosos pessimistas ocidentais, para os quais a totalidade da humanidade tem garantido o fim de seu sofrimento, do que com os radicais pessimistas orientais, que apesar de oferecer uma solução para o problema, é de Dificilíssima implementação, e a quantidade de pessoas que de fato lograram obtê-la e escaparam da roda perpétua de sofrimento não seria capaz de lotar sequer um avião de carreira.

Encerrando essa parte, devo apenas deixar claro que minha crítica ao pessimismo essencial não implica exatamente numa repulsa ao Budismo, pelo contrário. Embora estabeleça um pessimismo insuperável, o Budismo oferece uma solução, que embora dificílima, ainda é acessível, ou ao menos tem notável grau de eficiência em reduzir o sofrimento, mesmo que não seja por completo obtida. Ademais, os budistas são notoriamente conhecidos pelo seu bom humor e benevolência, sendo praticamente

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inexistentes entre os mesmos os rompantes de fundamentalismo que tanto denigrem as religiões do ocidente, ou mesmo outras religiões orientais. O próprio método budista para a iluminação e escape do sofrimento pressupõe jamais causar sofrimento a outros, predispõe fortemente ao altruísmo e é absolutamente incompatível com posturas anti-éticas. Embora esses elementos também estejam em parte presentes nas grandes tradições abraâmicas, estas possuem uma ênfase incomensuravelmente mais fraca do que a simples observação de rituais e disposições psicológicas internas que não precisam se relacionar diretamente com atitudes externas, sem incluir o fato de ser plenamente possível a prática de atos anti éticos sob justificativas religiosas.

Além disso, no Budismo, apesar da existência perpétua ser virtualmente indestrutível, ela ainda é menos trágica do que no modelo ocidental que apregoa um inferno perpétuo infinitamente maior do que a breve vida terrena, e total e completamente permeado pelo mais puro e intenso sofrimento. Ainda que isso seja compensado pela facilidade com que se pode obter a salvação.

Outra coisa em defesa do Budismo, é que ao recomendar fortemente a prática da virtude como forma reflexiva de diminuir o sofrimento alheio e o próprio, visto que assim diminuímos nossos karmas para as vidas futuras tornando a existência menos sofrida, ainda assim ele não condena àqueles que queiram se manter na roda perpétua do Samsara. Quem pretender ficar reencarnando indefinidamente, só deve contas a si mesmo.

Mas enfim, a radicalidade do pessimismo budista é melhor apreciada pelo simples fato de ser a existência impossível de ser cessada com a pura e simples morte física, o que de fato é especialmente aterrorizante para o pessimista ocidental que, já tendo se livrado dos terrores, bem como das benesses das teologias tradicionais, vê na morte a libertação de todos os males. Ao mesmo tempo que o ocidental acredita, de um modo que me soa absolutamente contraditório, que a perda das certezas transcendentes das religiões conduz ao desespero, como se todas não tivessem um inferno pronto esperando pelo pessimista, poderiam se lembrar que tal perda, no oriente é o mais generoso dos alívios.

Isso tudo deriva, entre outros, da estranha predisposição em conceder às teologias tradicionais algum valor estético em oferecer uma espécie de esperança transcendental que, se verdadeira, justificaria a existência. O que é curioso, visto que neste caso a existência humana nada mais seria do que subserviência e escravidão, com um sentido existencial imposto de cima para baixo, e sem qualquer esperança de realização fora do ditames previstos pela divindade, ou é claro, aderindo às hostes demoníacas onde fica a perpétua dúvida de serem piores ou melhores. Arcando também com a dúvida de serem corretas as profecias de vitória total da divindade, o que tornaria as hostes demoníacas inacreditavelmente estúpidas, ou questionáveis, o que tornaria os adeptos da religiosidade ainda mais estúpidos.

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CRÍTICA DO PESSIMISMO ESSENCIAL

Chamo de Essencial, aquele pessimismo que, diferente do Existencial, que meramente aponta apenas incontestáveis agruras contidas na existência, aponta a existência em si como essencialmente má.

A minha abordagem tem basicamente três aspectos mais superficiais e um quarto mais profundo. Os primeiros são três insistências. A primeira no Ceticismo, a segunda no Internalismo e Subjetividade, e a Terceira na Simetria. A QUARTA é uma crítica mais direta do pressuposto fundamental do pessimismo essencial que teve a ousadia de questionar o suposto valor positivo da vida, e suas associadas, mas não aparentou sequer sombra da ousadia ainda maior de questionar o suposto valor negativo da morte e derivadas.

Insistindo no Ceticismo, notemos que tanto a visão Budista, quanto as formas pessimistas ocidentais para as quais a morte é o fim e a não reprodução previne qualquer forma de sofrimento, são visões dogmáticas. Isto é, afirmam verdades essenciais completamente fora de qualquer suporte fenomênico.

Como vimos no início da Terceira Parte, tanto o pressuposto de um mundo místico transcendente quanto o de um mundo materialista redutivo são apenas duas possibilidades de escape do Solipsismo, ambas apoiadas apenas na escolha subjetiva prévia de não se conformar à possibilidade de estar sozinho num universo mental próprio. Independente disso, ambas são realistas e pensam descrever o universo como ele o é, fazendo assunções arbitrárias baseadas na pressuposição de que o invisível explique o que se vê, e outra que o que se vê permite negar o invisível.

No entanto, não há, absolutamente, nenhuma garantia de que há um mundo espiritual para o qual nossas mentes escapam após a morte física, e menos ainda a garantia de que nossa existência mental irá cessar com a morte física. Digo “menos ainda” porque ainda é possível, se for o caso, experimentar a existência transcendente, ao passo que a inexistência está eternamente condenada à total impossibilidade de conhecimento.

Assim, basear toda uma estrutura conceitual na premissa de uma certeza essencial é, como já foi dito, apenas apostar numa possibilidade tão provável quanto qualquer outra, e que a derivação do desvalor da existência é no máximo hipotética. Mesmo o apelo à autoridade científica é inútil porque embora a ciência naturalista tenha demonstrado além de qualquer dúvida sua competência para entender e gerenciar o mundo fenomênico, nada pode dizer sobre o que estiver além dos fenômenos.

Insistindo na Subjetividade, podemos apontar que a simples percepção de que tudo é, ou envolve, sofrimento, e que este é quantitativamente maior, necessariamente, que o seu oposto, é, mais uma vez, apenas uma “decisão” prévia de dar mais atenção a um aspecto da experiência fenomênica do que a outro, decisão que pode jamais ocorrer a alguém sem qualquer prejuízo concebível. Ainda que a morte seja de fato a extinção, e que não possa ser mesmo evitada, não altera o fato de ser perfeitamente possível viver uma vida plena de satisfação onde o processo de morte seja insignificante. Poucos anos, dias ou horas de um sofrimento terminal, ou ainda mais uma morte instantânea e sem sofrimento,

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pouco ou nada seriam comparadas a uma vida com vastos e contínuos estados de relaxamento, diversão e boas expectativas.

Apesar de tudo, a maioria das pessoas passa a maior parte do tempo em estados de predominante saúde, e principalmente na atualidade, em estados de razoável segurança. A simples boa disposição mental permite minimizar os mais graves sofrimentos, mesmo a perda de entes queridos, e possibilita eliminar por completo a dor da perda de bens materiais, uma alternativa oferecida pelo Budismo, bem como encontrar grande satisfação nas coisas mais simples, abundantes e generosas, como a contemplação dos fenômenos naturais ou a mera satisfação dos instintos primários.

Ao menos cerca de 30 anos de uma vida normal é um constante progresso físico, que vai aumentando as potencialidades corporais progressivamente exceto nos casos de doenças ou acidentes. Alguém que subitamente morra em idade balzaquiana provavelmente jamais sequer experimentará os temidos desconfortos da degeneração.

Mesmo esta, que se imporá durante a maior parte da existência no caso de uma suficientemente longa, pode ser compensada por uma persistente progressão qualitativa das capacidades mentais, que podem permanecer em pleno aperfeiçoamento mesmo em flagrante degeneração física, e só começam de fato a degenerar seriamente num estágio bem mais adiantado, e normalmente minoritário em termos de extensão, o que tem inclusive a propriedade de poder atenuar até mesmo a percepção de tal degenerescência.

Isso inclusive pode servir de incentivo à pessoa prudente para que invista mais em seu progresso mental do que no físico, visto ser o primeiro indiscutivelmente mais rentável. Mas enfim, as possibilidades de se perceber uma vida mortal de um modo dominantemente positivo são inúmeras, e não se pode sequer conceber qualquer obrigação de se assumir uma postura contrária, de modo que a visão pessimista pode ser vista como completamente voluntária e gratuita.

Seria mais fácil considerar a superioridade racional do pessimismo se todo o pessimista fosse de fato um autêntico ex otimista, de preferência não religioso, que só se desencantou após altas e sérias considerações racionais. Mas intuo que a maioria dos pessimistas terá escrúpulos em negar que já era pessimista muito antes disso.

De modo contíguo podemos insistir na Simetria, afirmando que também tudo é, ou envolve, prazer. Comer é prazeroso, se reproduzir é prazeroso, dormir é prazeroso, e podemos inferir que a dor também sempre é interrompida pelo prazer, ou pelo alívio, o que, no caso, pode ser totalmente equivalente. Enfim, ao invés de considerarmos a vida uma constante fuga da dor, podemos também considerar uma constante busca do prazer, que é no mínimo perfeitamente acessível à maior parte das pessoas.

Somos equipados com recursos sofisticadíssimos para ignorar a dor, driblar o sofrimento e permanecer mesmo nas mais adversas condições. Não apenas nos recuperamos das doenças, cicatrizamos nossos ferimentos e superamos angústias e traumas, como ainda somos capazes de dar-lhes significados favoráveis. Essa nossa capacidade de ignorar por completo todas as más possibilidades nos permitiu até mesmo construirmos complexos sistemas de pensamento que podem nos confortar durante toda a nossa existência subestimando até mesmo a morte, convictos de uma meta existência que

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só poderá ser factualmente posta em xeque se de fato existir, e mesmo fora dos confortos religiosos, temos inúmeros recursos cognitivos para extrair satisfação de nossas vidas ordinárias a ponto de desprezar quase completamente qualquer forma de sofrimento.

Assim, abrir mão de todos esses recursos e focar a atenção do que há de pior e menos inspirador em nossas possibilidades de existência jamais poderá causar qualquer dano a simetria sem o apoio da já citada subjetividade, pois somente questionando as instâncias meta existenciais, além dos fenômenos, é factualmente possível construir assimetrias desagradáveis, e tais construções sempre serão fruto de investidas hipotéticas e incertas sobre as “coisas em si” além dos abismos fenomênicos que impedem por completo nosso acesso seguro além do próprio egocentrismo.

Essas três insistências envolvem contingências da existência, e apenas mostram a possibilidade da vida ser predominantemente desejável mesmo maculada por inevitáveis sofrimentos. Tem vasta vantagem representativa, demonstrada pelo fato da maioria das pessoas crer que sua vida vale a pena, e tal percepção, sendo subjetiva, não pode ser repreendida. É desprovido de qualquer eficácia afirmar que alguém está enganado ao dar valor demais à própria existência, ou alegar que existe alguma incompatibilidade entre a felicidade e a razão, ou a algum dever, como se estes fossem instâncias extra humanas supremas que devem se sobrepor à pura e simples experiência subjetiva.

Se é pouco eficaz convencer alguns a seguir condutas apresentadas com níveis extremos de coerência, elegância e simplicidade, como preceitos éticos claros, intuitivos e úteis, como pode-se esperar convencê-las a seguir idéias não apenas desagradáveis como anti intuitivas e inúteis àquilo que mais importa, a busca da felicidade? Ainda que fosse indiscutivelmente correto, o pessimismo ainda estaria em desvantagem não apenas por sua aversividade, mas sua inutilidade. Absolutamente nada obriga o ser humano a ter que usar sua razão, ou qualquer outra potencialidade contra si próprio, e se alguns o fazem apenas mostra o quão subjetiva é tal postura.

Isso faz com que, mesmo estando o pessimismo essencial racionalmente justificado, somente um impulso passional muito forte poderia fazer alguém considerá-lo com atenção, de modo que a contemplação do mesmo nunca poderia ser uma mera questão de racionalidade, mas sobretudo de um impulso passional que tenta articulá-lo como uma forma de resposta ao sofrimento. Enfim, não há posturas essencialmente racionais. Todas estão, isso sim, passionalmente justificadas. 7


7. Exemplo: chamo de Complexo de Paraíso Perdido a postura de declarar a piora contínua do mundo mesmo diante de evidências contrárias, como alegar que a vida humana atual tem socialmente menos valor que antes quando índices proporcionais de assassinatos, sistemas legais, mentalidade, consensos morais e o próprio crescimento vegetativo mostram o contrário, sendo inegável a inferioridade das taxas de natalidade atuais e mesmo assim a população crescer, pois as taxas de mortalidade são ainda menores. Esse Complexo (também uma das forças motrizes das religiões) pode ser parcialmente explicado como uma dificuldade freudiana em superar o fim da infância e a simbólica expulsão do “paraíso” que a inocência permite. Há comentários no ensaio crítico A Verdadeira Verdade www.xr.pro.br/MONOGRAFIAS/VERDADE.HTML, que comenta um trecho da Sétima Carta de Platão. Destaco um trecho. “...a infância seria como a Idade do Ouro, onde as pessoas, ao menos as felizardas, vivem diretamente protegidas por seus pais (os “deuses”), sem a necessidade de trabalhar, e onde a perspectiva de toda uma vida pela frente enche de esperanças as mentes sadias e promissoras. Por volta da adolescência teríamos a Idade de Prata, em parte ainda sob a proteção dos pais, isso, é claro, se levarmos em conta principalmente as camadas sociais mais abastadas, como era o caso de Platão. Nesse fase, o futuro ainda está em aberto, embora em geral com direcionamentos e potencialidades em plena atualização. A Idade do Bronze pode ser associada a vida adulta, onde o agir no mundo é posto à prova, com todas as contrapartidas entre realizações e decepções. Obviamente, a senilidade seria a Idade do Ferro...”

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POR QUE A MORTE É RUIM?

Mas vimos então que tudo isso oscilou num contexto não apenas contingente como totalmente subalterno a uma dimensão mais conceitual, tanto que os termos existência e vida, pressupondo vida humana, puderam ser usados como sinônimos. Passando para um nível mais específico, entramos na QUARTA abordagem que contesta o pressuposto totalmente não problematizado de que a morte, a dor, a velhice etc, devem ser consideradas más, ao mesmo tempo que se afirma que a vida, o prazer, a juventude etc, não devem ser consideradas boas, ou ao menos não suficientemente.

Considerando ser absurdo qualquer discurso que utilize valorações negativas se não houver valorações positivas ao menos concebíveis, é possível apontar que o pessimismo oscila entre duas posturas problemáticas, uma apenas nebulosa e outra apenas contraditória. A primeira que associa os termos ‘bom’ e ‘ruim’ de forma absoluta, rígida e não justificada, e a segunda que simplesmente nega a manifestação do bom ao mesmo tempo que afirma a manifestação do ruim, como se estes não fossem interdependentes, e que acaba inadvertidamente trocando um pelo outro.

O pessimista essencial costuma dizer que a vida é ruim por ser frágil e efêmera, mas isto se aplicaria não só a vida, ou à vida humana, mas a toda forma de existência concebível. O Universo é temporal e irá se degradar, as estrelas se apagarão e qualquer ente é tão limitado cronologicamente quanto espacialmente. Assim, não seria diferente com a existência consciente humana. A eternidade é um luxo metafísico completamente inaplicável à experiência fenomênica, que é marcada pela inevitável e perpétua mutação.

Mas por que o simples fato das coisas serem temporárias é necessariamente ruim? Acaso a vida perpétua, a imortalidade, não poderia ser considerada um mal pior que a morte? Por mais que usufruamos dos prazeres, eles sempre são limitados, e cedo ou tarde nos entediamos. Alguém pode viver plenamente a vida, cheia de prazeres, até se dar por satisfeito e então considerar que morrer é apenas descansar em paz. Por que a morte, ao menos nessas condições, deveria ser considerada ruim?

Ao lermos um bom livro, vermos um bom filme ou jogarmos um bom jogo, ele perde seu valor pelo fato de não ser infinito? O fato de estarmos saciados de um banquete significa que ele não tem valor? O fato de embarcarmos numa viagem sabendo que ela é temporária a torna menos interessante?

A maior relevância dessa reflexão é afetar a aparente necessidade com que o pessimista atribui à morte uma característica negativa, quando é perfeitamente cabível que ela tenha características positivas. Ou seja, o pessimista, como sempre, deixa de ver o lado bom da morte, ao mesmo tempo que vê o lado ruim da vida.

A contestação a esse argumento é previsível, e na verdade, invertendo a analogia enxadrística anteriormente citada, por ser apenas o movimento esperado para viabilizar o Xeque Mate, desta vez pelo otimista. O pessimista essencial poderá dizer que a morte é ruim pelo simples fato de que a maioria esmagadora das pessoas tem aversão a ela. Curiosamente, ao mesmo tempo que afirma que o fato da maioria esmagadora das pessoas ter apego à vida não deveria ser levado em conta para atestar o seu valor. Ou seja, o que temos, mais uma vez, é simplesmente uma escolha subjetiva, e injustificada, pelo pior.

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Ou, ainda mais relevante. Que apesar disto, a morte no máximo poderia ser um mal menor, uma alternativa que, à moda socrática, nos livra dos males da senescência ou de uma possível enfermidade mais sofrida. Que o ideal seria de fato vivermos indefinidamente, e somente nossa mortalidade e suas características incorporadas, a dor e a degeneração, podem ser motivos para considerar que a morte prévia, ou uma morte súbita, seja boa.

Mas aí podemos retomar a questão de se a imortalidade seria de fato algo realmente bom. Ela possivelmente aumentaria incomensuravelmente a quantidade de sofrimento pela perda de entes queridos, e ou nos condenaria à solidão, e mesmo que assim não fosse, ela sempre estaria sujeita a possibilidade da morte acidental, que tenderia a ser mais assustadora ao imortal do que ao mortal. O quanto de aflição não poderia se acumular em quem vivesse indefinidamente, sabendo que seus séculos de vida acumulam uma importância cada vez maior, tornando a morte uma ameaça ainda mais tenebrosa? 8

A não ser que se falasse de total indestrutibilidade, a imortalidade relativa ainda estaria sujeita a uma série de males que poderão ser evitados pela morte natural. E mesmo no caso da total indestrutibilidade, não seria ela uma forma de viabilizar algo muitíssimo mais cruel? O que ocorreria ao indivíduo que por algum motivo estivesse saturado da vida e que, mesmo tendo gostado de ter vivido, acha que já teve o suficiente? Ele poderia desejar única e exclusivamente a morte.

Uma coisa é, porém, certa. A maioria das pessoas deseja mais vida do que tem e é incontestável que aumentar nossa expectativa de vida produtiva e nosso período de juventude é algo desejável, algo que, por sinal, já está sendo feito não só pela medicina como pelas melhoras nas condições de vida em geral. E também, por outro lado, não só poderia, como de fato já o foi pior, em épocas quando a expectativa de vida era bem inferior, e mesmo o período de juventude dos nobres era mais efêmero, e sofrido, do que o atual período de juventude da classe média. Sem contar o fato muitíssimo mais terrível que mesmo as elites do passado experimentavam um dos piores males possíveis, a perda de seus descendentes, com uma freqüência quase impensável ao segmento social de maior contingente populacional de hoje.

A questão, por tanto, não é negar a associação da morte ao mal, mas contestar que tal associação seja absoluta e sobretudo mostrar sua fundamentação passional, pois o maior motivo para temer a morte é emocionalmente justificado.

O mesmíssimo raciocínio pode ser aplicado às companheiras da morte. A dor é seguramente aversiva, mas ela sempre o é? A dor do halterofilista que se exercita acaba em geral se tornando um prazer (“no pain, no gain”), a dor do parto muitas vezes apenas intensifica a emoção feminina de dar a luz, mesmo dores inúteis por vezes podem ser compensadas com um puro e simples alívio que nos faz lembrar o quanto é bom não senti la, e nos fazer valorizar mais nossos momentos de paz, ou, para dizer de forma mais popular, uma breve privação de algo normal e recorrente pode apenas nos fazer prestar atenção em como somos felizes apenas por tê-lo na maior parte do tempo.


8. Smith diz “...os filósofos antigos (...) laboravam para convencer seus seguidores de que acima de tudo não haveria nem poderia haver mal algum na morte; e que, se a situação se tornasse tão difícil que a constância não mais a tolerasse, o remédio estaria à mão, a porta, aberta, e quando desejassem poderiam sair sem medo. Se não houvesse um mundo além desse, diziam, a morte não poderia ser um mal; e, se houvesse outro mundo, os deuses haveriam de estar lá, de modo que um homem justo não poderia temer mal algum enquanto estivesse sob sua proteção.” (Teoria dos Sentimentos Morais, Sétima Parte, Capítulo 1, página 353,354)

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A dor, bem como o sofrimento, pode ser útil, nos ensinar, e com freqüência acabamos rindo dela no futuro. Ela pode nos fortalecer e podemos até nos orgulhar de senti la. Alguns até se divertem desafiando-a, e provocando-a de modo a aumentar suas experiências sensoriais. Não se pode negar que há muitas dores indesejáveis e que podemos dispensar sem problemas. A maioria das pessoas não se incomodaria em saber que jamais irá sofrer de reumatismo ou dor de dente, mas há aqueles que podem lamentar não ter uma experiência que os seus semelhantes tiveram, o que pode estar relacionado à estranha atração que temos, muitas vezes, por algum sofrimento, como se fosse um desafio, um jogo, uma oportunidade de nos testar.

Sem essa atração, e mesmo esse fascínio por certos tipos de sofrimento, não faria o menor sentido que apreciássemos tragédias. Se desde a antiguidade até hoje nos interessamos por toda sorte de produção artística que envolve morte, dor, tristeza, isso deve sugerir que há algo de não repulsivo nessas coisas. Ao assistir a um drama onde alguém está imerso em grande sofrimento, não raro nos identificamos empaticamente com o personagem e podemos vivenciar a experiência tanto como uma forma de lembrar que somos mais felizes do que normalmente percebemos, ou como uma forma de nos testar e enfrentar o desafio emocional com vista a algum tipo de satisfação compensatória. Em qualquer caso, há uma utilidade nítida em questão, demonstrando que embora não mude o fato de considerarmos que tais coisas sejam ruins, elas tem uma dimensão compensatória que pode ser maximizada para virtualmente compensar sua dominante malignidade.

Mesmo em nós mesmos há inegáveis vantagens que as enfermidades e acidentes nos permitem, ao menos atualmente, como faltar ao trabalho e conseguir atenção especial, a ponto de muitas pessoas adoecerem de propósito em prol dos benefícios envolvidos. E mesmo que seja fato que sempre haverá doenças e danos que preferiríamos evitar, não mudará o fato de que ainda podemos administrá-los eficientemente, e que é possível extrair benefícios sem os quais seria absurda a existência de hipocondríacos. Da mesma forma, mesmo sofrimentos atrozes, por mais aversivos que sejam, podem, posteriormente, nos compensar com nosso fortalecimento e nossa experiência.

Ou seja, embora seja perfeitamente justificável associar a dor ao mal, ela não é absolutamente má, assim como o prazer não é absolutamente bom. E enfim, talvez o pessimista esteja superestimando o sofrimento, a morte, a dor, a velhice etc, ao mesmo tempo que subestima seus opostos, tentando forçar uma suposta objetividade e externalidade numa percepção interna e subjetiva.

Escolheu o pior de todos os males, a morte, e o elegeu como nosso maior inimigo, pelo fato de ser fácil odiá-lo. E jamais caberia negar que a morte pode e deve ser sim considerada ruim, principalmente a dos outros, que nos causa a terrível dor da perda. Mas além de se ter perdido de vista o fato de ser fácil imaginar inúmeras situações onde ela pode ser boa, tornando-a relativa e arruinando qualquer pretensão de valoração metafísica, a única forma de sustentar racionalmente sua valoração negativa seria afirmar abertamente o contrário, o valor positivo da vida, que curiosamente, o pessimismo nega.

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Isso remete a possibilidade de que o pessimismo derive de uma notória covardia e fraqueza muito mais do que o derivaria o otimismo que não teria “coragem ou força de enfrentar uma teórica miséria da existência que só é inegavelmente acessível na mente do pessimista”, pois o otimista enfrenta factualmente as misérias inegáveis da existência e ainda pode fazer pouco caso delas, enquanto o pessimista as amplifica e vê monstros terríveis e assustadores que ao otimista podem ser apenas monstrinhos incômodos.

Embora o problema não seja uma mera questão de associar a coisas consensualmente negativas certa importância, mas sim de fazê-lo ao mesmo tempo que se nega a importância de coisas consensualmente positivas. Ainda assim cabe dizer mais a respeito dessa investida contra a morte que, no fundo, não é novidade a quem quer que seja, pois ninguém ignora esse fato fenomênico óbvio de que morremos e em geral não gostamos disso. Que relevância tem apontá-lo? Há também a questão de se a morte merece tamanha atenção e se isso sustenta uma visão filosófica negativista da existência.

Mas a situação é bem mais complexa, pois embora a morte seja considerada o valor negativo, o próprio pessimismo concorda com o otimismo ao reconhecer que ela ainda pode ser melhor do que certas condições da vida, embora isso possa não ser tão óbvio quanto parece, pois não abrimos facilmente mão de nossas vidas devido a qualquer momento de intenso sofrimento, nem mesmo quando não há expectativa de escape.9

Podemos imaginar que a morte seja melhor que o sofrimento apenas porque temos a experiência deste último, enquanto, internamente, não temos a experiência da morte, e uma coisa desconhecida pode parecer muito melhor do que uma coisa conhecida aversiva. Mas quem garante que um hipotético ser que “conhecesse” a morte não preferiria uma existência sofrida do que a não existência?

De qualquer modo, enfim, a única assimetria que o pessimista consegue obter aqui é subjetiva. Ele apenas dá mais ênfase aos aspectos negativos pela absolutização da malignidade de certas coisas que, em si, podem ser vistas como fenômenos onde a associação ao mal é meramente relativa.

SUICÍDIO

Talvez um dos maiores exemplos do modo assimétrico subjetivo com que o pessimista pensa encarar objetivamente o mundo seja relativo a questão do suicídio. No mínimo desde Hume argumenta-se que o suicídio só pode ser reprovado com base em crenças espiritualistas ou caso envolva prejuízo direto a outros, como abandonar uma família, fazer sofrer os amigos ou se jogar na frente de um veículo em movimento. Despojado de tais contingências, ou mesmo envolvendo-as em um grau menor, é impossível recriminar o suicida, afinal ninguém deveria ser obrigado a viver apenas em função alheia. A materialização legal disto é o simples fato de frequentemente, como no caso da legislação brasileira, não existir punição para tentativa de suicídio.


9. Uma cena cinematográfica, entre outras similares, me parece capaz de por em xeque até mesmo a afirmação de que não existir é preferível a existir em sofrimento. A cena onde o andróide, em Blade Runner, ao sentir que sua existência chegava ao fim, e que o torpor anestésico se disseminava pelo seu corpo, se machuca apenas para sentir alguma coisa. E nem precisamos apelar à ficção. Quantos de nós, após uma anestesia odontológica, não prefeririam estar sentindo algum incômodo do que aquela estranha sensação de nada?

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Disso decorre o fato óbvio de que o suicídio não é necessariamente ruim, mas os pessimistas costumam usar o exemplo da ocorrência de suicídios como uma demonstração prática do quanto a existência pode ter sua desvalia evidenciada, principalmente no caso de suicidas sócio economicamente abastados. (É fato trivial que entre os países e regiões com maiores índices de suicídio estão muitos dos de maior Índice de Desenvolvimento Humano.)

Muitas vezes o exemplo do suicídio é usado como manifestação pragmática de confrontação direta e sincera com a “realidade”, acessível mais facilmente a pessoas em melhores condições de vida, visto que nas camadas mais desfavorecidas da população, as taxas de suicídio costumam ser significativamente menores. Não raro, o suicídio costuma ser associado a alguém que teve a coragem de dar fim a um sofrimento que os demais, por covardia, não conseguiram confrontar.

Nota-se aí uma série de assunções arbitrárias, sendo que a maior delas é simplesmente pressupor que o suicida está negando sua vida como um todo, quando a única coisa certa é que ele está negando aquele momento de sua vida, e ou sua perspectiva mais imediata10. É perfeitamente possível viver bem e feliz durante muitas décadas, e um dia decidir praticar o sucídio apenas por que naquele momento ele parece uma saída mais eficaz para um sofrimento específico. Portanto, tomar o suicídio como uma evidência de constatação da miséria da existência é simplesmente tomar a parte pelo todo. Sem contar ser muito freqüente que o suicida falhe em sua tentativa, e depois acabe abandonando-o e mesmo recuperando sua alegria de viver. E, mais uma vez, que a morte esteja acessível como uma eficiente fuga de diversas formas de sofrimento é mais um argumento contra sua absolutização como má.

Outra pressuposição é a de considerar que a relação entre índices de suicídio e IDH demonstra que uma confrontação racional honesta com a existência, supostamente mais frequente entre os mais instruídos, tende a levar ao desespero. Mais uma vez, tem-se uma escolha subjetiva de dados, visto que motivos paralelos são facilmente encontrados para explicar essa relação. Um dos fatores que sabidamente incentiva ao suicídio é o clima, em especial nos períodos de inverno rigoroso, que se associa a depressão. E há uma relação quase direta entre o IDH de um local e a intensidade de suas baixas temperaturas. Bem como entre o desenvolvimento econômico e cultural e a rigidez das relações sociais, responsáveis por grande parte do estresse pessoal. Ademais, costuma-se desprezar o fato de que suicídios entre as camadas mais pobres da população acabam se confundindo com mortes decorrentes da violência urbana ou insalubridade, bem como sua negação sistemática em função da maior religiosidade.

Assim, mesmo neste tema o pessimista apenas escolhe, arbitrariamente, visualizar aspectos negativos da questão, manobrando conceitos com alegada objetividade quanto no fundo nada mais faz do que projetar sua interioridade sobre o mundo.


10. Hume diz, em Do Suicídio, citando Sêneca: “Pensas que me queixo contra a providência ou que amaldiçôo minha criação porque saio da vida e coloco um ponto final a uma existência que, se se prolongasse, me tornaria miserável? Longe de mim tais sentimentos! (...) Agradeço a providência, contudo, seja pelos bens que já desfrutei, seja com o poder com o qual me dotou para escapar dos males que me ameaçam.”

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O PARADOXO DO NADA POSITIVO

Vimos então, nesta Quarta objeção ao Pessimismo Existencial, que o modo como se associa à morte e derivadas o conceito de mal pode ser muito menos objetivo do que se pretende. Mas tudo isso configura apenas uma imprecisão conceitual, no máximo uma confusão perceptual perfeitamente compreensível. Passemos agora para, a meu ver, a falha mais grave desse pessimismo, que é, radicalizando ainda mais essa associação, terminar por simplesmente tentar empurrar o conceito de Mal ao mesmo tempo que tenta negar o conceito de Bem, sobrevivendo apenas pela inversão completa e equivalente ou pela ocultação, intencional ou não, de sua absurdidade.

Inicialmente, é simples. A Vida, que normalmente é considerada Boa, passa a ser considerada Má, porque está indissociavelmente associada à Morte, que era, e continua sendo, considerada Má. Refletindo mais uma vez o Budismo, “Tudo é Ruim”. Surge então a pergunta inevitável. O quê, afinal, é Bom?

Sim, pois deve haver algo Bom, caso contrário, o conceito de Mal fica desprovido de seu oposto complementar, e tudo perde completamente o sentido, tanto quanto Epimênides ao afirmar “Eu sempre minto.” Assim, o pessimismo essencial não apenas leva ao, como parte do, Paradoxo, sendo uma posição que praticamente só tem valor estético.

É evidente que tal problema não passa desapercebido pelo pessimista e que este lhe coloca soluções, mas o que espero demonstrar aqui é que, mais uma vez, essas soluções não conseguem estabelecer essa assimetria que, antes de conseguir demonstrar a não valia da existência, antes consegue sugerir a menos-valia do pessimismo.

Na contra mão de Santo Agostinho, que parece ter sido um dos primeiros a popularizar a positividade do Bem e vacuidade do Mal, esse pessimismo, em tom Schopenhauriano, pretende estabelecer a positividade do Mal e vacuidade do Bem. Originalmente, isso seria, mais uma vez, apenas mais uma simetria persistente, uma vez que não seria nada difícil imaginar que a luz não existe e que na realidade qualquer forma de iluminação não passa de um modo de sugar a escuridão, o que, para qualquer efeito prático, é completamente equivalente.

Também, na contra mão de Leibniz, que parece ter sido um dos primeiros a popularizar a realidade do Bem e a ilusoriedade do Mal, esse pessimismo pretende estabelecer a realidade do Mal e a ilusoriedade do Bem. Previsivelmente, isso também seria mais uma simetria que não prejudicaria nossa capacidade de ser felizes e viver na interminável ilusão uma vez que, dessasociada do Bem, qualquer compromisso com a Verdade seria totalmente absurdo, e a permanência na ilusão plenamente justificável.

Mas sendo mais específico, creio que no modo contraditório com que esse pessimismo se configura, ele nem sequer consegue criar essa pseudo assimetria reversa que no fundo seria apenas mais uma forma de encarar subjetivamente a persistente simetria, mas ainda se torna apenas um modo de eliminar qualquer racionalidade e postular de modo abusivo uma supremacia do Mal sem qualquer fundamento compreensível.

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A forma como o pessimismo crê escapar dessa irracionalidade é simplesmente postular que há sim, lugar para o bem, porém no limitado âmbito dos recursos existenciais. Embora a vida seja essencialmente má, podemos lançar mão de vários métodos para nos esquivar dessa maldade inerente e conseguir alívio, de modos que podem até mesmo fazer a existência, literalmente, “Valer a Pena”. Assim, embora postule a positividade real do Mal, ainda há algo ao qual o conceito de Bem pode ser aplicado, garantindo a oposição conceitual necessária para a racionalidade do sistema.

Mas o modo como a contradição dessa abordagem pode ser explicitada soa estranhamente simples, talvez até mesmo suspeita. Tradicionalmente, consideramos a existência positiva do Bem e o Mal apenas como sua ausência, e nos consideramos como sempre buscando bens e fugindo de males. Por outro lado, esse pessimismo considera a positividade do Mal e o Bem como sua ausência, no entanto, mantém que sempre estamos buscando bens e fugindo de males, caso contrário teríamos, mais uma vez, outra simetria absolutamente equivalente e um empate completo entre a visão otimista e a pessimista.

Ocorre que, se nos movemos em algum sentido específico, o do bem, do prazer, da alegria, etc, o fazemos tal qual a mariposa se move em direção à luz, isto é, rumo a algo específico, no caso, uma das muitas manifestações do Bem, que é Algo, de acordo com a visão otimista.

Por outro lado a visão pessimista, ao manter que nos movemos fugindo da dor, do sofrimento, da tristeza, etc, e postulando estes como reais positivos, acaba por afirmar que na realidade nos movemos em direção à nada! O bem irreal e ilusório. E se ainda não ficou claro porque isso é simplesmente absurdo, basta nos atermos a uma proposição que explicita essa contradição de um modo que pode ser ainda mais simples.

Ao mesmo tempo que postula a positividade do Mal, o Pessimismo Essencial o associa com o Não-Ser, a Inexistência, a Morte!

A incoerência pode ser apontada numa única pergunta aparentemente irrespondível: Se a Morte (Não-Ser) é o Mal, como este pode ser Positivo?!

Ou: Se a vida é ruim, e é preferível Não-Ser a Ser, então a morte necessariamente teria que ser Boa, o que inverteria por completo o sistema e se tornaria um tipo incrivelmente enfático de otimismo, uma vez que o bem de todos estaria garantido pelo simples fato de que todos irão morrer, e a breve e supostamente indesejável existência poderia ser considerada desprezível pelo simples fato de ser quantitativamente insignificante perante a virtualmente eterna inexistência, como seria paradoxalmente a única forma de se vivenciar conscientemente o valor do Não-Ser. Ou seja, ainda assim os viventes seriam privilegiados pelo fato de serem aqueles que contemplaram o incomensurável bem da inexistência de onde vieram, e para onde voltarão.

Em síntese, uma Apokatastasis inversa, um Mahapralaya às avessas que poderia ser considerado a mais radical forma de otimismo. Pois sendo o Nada o Bem, então a vida, que é algo, também poderia ser considerada boa por permitir livre acesso ao Bem.

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O pessimismo pretende quebrar a simetria opositiva entre o Bem e Mal, que, deve-se admitir, não é de fato essencialmente simétrica, visto que o Bem seria a positividade e o mal sua carência. Uma assimetria real só seria possível ao maniqueísmo.

Para estabelecer a assimetria inversa, pretende demonstrar a maior amplitude do Mal, apelando para a sua positivação. Por, assim como qualquer tradição ética, admitir a associação clássica do mal com a morte, dor, sofrimento etc, ao positivar o Mal, acaba gerando um paradoxo pelo fato de que, a não ser no maniqueísmo, o fundamento conceitual que justifica a associação mal e morte é simplesmente sua negativação.

Colocando de outra forma, a tese clássica declara que a vida é Boa, por ser existência, a morte é ruim por ser inexistência. O pessimismo essencial inverte a primeira parte dizendo que a vida é ruim, por se associar à morte. Mas para não cair na irracionalidade típica de sistemas de valores sem oposição, resguarda o bem num recuo existencial que o delimita a um local mais restrito, enquanto o mal, positivo, é mais amplo.

Mas positivar o Mal é absurdo porque sendo este Inexistência, nunca constituiria um conceito positivo, e sim, sempre, negativo, o que nos devolve à tese clássica, ou nos rouba a racionalidade, que o pessimismo originalmente pressupõe ser de seu domínio. A maior evidência dessa tensão está no fato do pessimismo não manter sua linha de pensamento constante, sempre pulando para concepções que são, no fundo, as tentativas de escapar dessa contradição.

A primeira delas é realizar a inversão completa, positivando a morte por declará-la como boa, visto que em muitos momentos fica claro nos pessimistas que o único alívio para todo o sofrimento é a morte, e assim, ela termina por de fato se positivar por meio da inversão completa dos valores. Mas isso, além de não eliminar o problema da positivação do nada, ainda inverte por completo a própria pretensão pessimista, visto que se torna então um tipo de ultra otimismo que presenteia generosamente todos os viventes com uma segura e infalível libertação de todos os males, a maravilhosa morte, que virá obrigatoriamente para todos. Ou seja, todos seremos irremediavelmente salvos e podemos mesmo nos salvar a qualquer momento. Nenhuma religião é tão generosa assim.11

A segunda é não positivar efetivamente o mal, mas manter a oposição clássica apenas sustentando que não há Bem suficiente e que o Mal por fim a tudo vencerá, visto ser quantitativamente maior, pois não só a vida como o universo deriva do Nada e ao Nada voltará. Mas isso soa ainda mais problemático, primeiro porque essa quantificação superior do nada inclui uma premissa arbitrária que não encontra sequer sustento fenomênico, pois é altamente provável que tenha havido um universo antes e haverá outro depois do nosso, bem como podem haver outros, de modo que quantitativamente, nada garante que o nada seja superior. Afirmar que a quantidade de vida é maior que a da não-vida é temerário, visto que seria necessário estabelecer um discutível limiar entre os dois, e ignorar o fato de que embora a biomassa seja incomensuravelmente inferior em quantidade que a massa bruta não biológica, por outro lado, uma única célula possui uma complexidade e uma quantidade de estruturas variadas seguramente maior do que o restante inteiro não vivo do universo. Isso sem sequer entrarmos no mérito de quanta vida há de fato neste universo.


11. André Cancian, um profundo Pessimista Essencial, declara: “Sabemos que a vida é uma brincadeira efêmera, e apenas por isso somos capazes de suportá-la sem perder o senso de humor; sem a ideia da inevitabilidade da morte, já teríamos enlouquecido diante da perspectiva aterrorizante de uma existência eterna. É um consolo saber que nossas vidas terão um fim; cada dia é uma contagem regressiva para o encerramento de uma corrida da qual nunca quisemos participar.” niilismo.net/reflexoes/morte.php. O fato de uma idéia como esta coexistir com outras de teor absolutamente contraditório no mesmo sistema de pensamento, é só uma mostra do malabarismo conceitual do Pessimismo Essencial.

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A terceira, muito mais freqüente, é ignorar todas as particularidades anteriores e simplesmente se concentrar na questão da existência sensciente humana. Pouco importa a quantidade de matéria do universo ou as estruturas não inteligentes ou ao menos não vivas, mas sim o fato bruto de que vamos deixar de existir, e que isso nos repulsa. Mas, como já foi dito, tal noção pode ser questionada, e para acrescentar algo mais, retomemos a introdução e lembremos que movimentos em direção ao nada nos aproximam, fazendo-nos lembrar de nossa similaridade, de modo que se podemos dizer algo de bom sobre o mal, é exatamente o modo como ele pode nos despertar para a mais genuína e intensa solidariedade. Ademais, para se sustentar num nível objetivo, não poderia bastar apelar a esse âmbito subjetivo para negar o valor da existência, teria-se que estabelecer exatamente um parâmetro metafísico que estivesse além de nossas considerações passionais sobre o assunto. E enfim, isso ainda não supera o ceticismo, porque ter certeza de que nosso destino é a inexistência continua sendo uma inviabilidade epistêmica, só sendo viável dogmaticamente, e somado ao fato da impossibilidade de se confirmar a hipótese de que deixaremos de existir, penso que minha doutrina desenvolvida no Projeto Meta Continuidade Mental12 pode solucionar o assunto por permitir neutralizar qualquer medo da possível inexistência vindoura.

A quarta forma de escapulir da tensão referida é algo mais sofisticada, e passa pelo estabelecimento de tipos distintos de nada, ou melhor dizendo, de movimentos diferentes em relação ao nada. Só o nada imutável seria bom, e qualquer movimento em direção ao ser seria ruim, de modo que mesmo que o movimento de volta ao nada possa ser considerado bom, ele ainda está maculado pelo fato de já ter se afastado do nada original.

Essa última derivação necessitará de uma exemplificação mais objetiva, e permitirá vislumbrar algo que poderia ser considerada uma “revolução copernicana” no modelo de relação entre os conceitos de Bem e Mal.

 

 


12. O Projeto Meta-Continuidade Mental foi iniciado em minha Dissertação 1, A Imortalidade da Alma no Fédon www.xr.pro.br/monografias/MCM1-Fedon.html, e desenvolvido em Teorias Éticas da Antiguidade, A Continuidade da Mente no De Anima www.xr.pro.br/monografias/MCM2-DE_ANIMA.html sendo principalmente caracterizado pelo ceticismo a respeito de qualquer afirmação segura sobre a existência ou não daquilo que comumente, e erroneamente, se chama “vida após a morte”. Somente o dogmatismo permite estar seguro sobre nosso futuro existencial após nossa morte física, no entanto, há a possibilidade de se desenvolver uma convicção existencial impossível de ser refutada, que é acreditar fortemente que haverá ainda alguma forma de existência, desde que não especificada. Tal crença só é passível de confirmação, visto que se for falseada, a constatação do erro será impossível, pois o resultado será a inexistência.

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ANTES NÃO-SER A SER?

Essa elaborada distinção entre “nadas” é especialmente explícita numa argumentação, cada vez mais popular, que pressupõe a curiosa situação hipotética de um pré-ser que, se consultado sobre sua possível futura existência, mesmo que a visse como recheada dos melhores prazeres e alegrias que a vida pode proporcionar, ainda assim optaria necessariamente por rejeitá la.

Se de uma contradição tudo pode ser derivado, essa parece ser a única explicação para supor que tal hipotética consulta, que sequer poderia ser feita, teria como resultado inevitável, baseando-se em pura racionalidade, o desejo de não vir a existência. O pessimista, mais uma vez, está pressupondo que a não desejabilidade da vida seja algo objetivo, inevitavelmente constatado por qualquer inquirição racional isenta de ilusões. Mas fora a já comentada arbitrariedade de tal pressuposto, temos duas formas bastante fortes de considerá-la no mínimo improvável.

A primeira é que a idéia em si já é contraditória, pois não se pode consultar um não ser, visto que tal operação já pressuporia retirá-lo do não-ser para o ser. Mas não basta trazer o não-existente à existência para tal, pois é preciso dotá-lo de todo um aparato cognitivo que só é encontrando em seres que não apenas existem, mas que já existem em quantidade e qualidade suficiente para serem capazes de julgar tal coisa. Em suma, se está nada menos enfeitando de um modo curiosamente distorcido a questão de perguntar a uma pessoa já cognitivamente desenvolvida se ela lamenta ter vindo à existência. Não há, absolutamente, nenhuma outra forma de conceber a questão do que simplesmente projetando nesse suposto “ser pré-ser”, a nossa própria existência, ou a de outrem.

Assim, então é inevitável que embora seja possível obter de fato uma resposta que rejeite a existência, afinal existem pessoas que lamentam a própria existência, seria muito mais provável obter uma resposta que desejasse existir, visto que a maioria das pessoas é apegada à sua existência seja em que condição for. Em suma, o pessimista está apenas universalizando sua própria subjetividade.

Mas a outra forma de confrontar tal idéia talvez seja ainda mais interessante. Ao invés de considerar esse pré-ser como um ser já “contaminado” pela existência, e assim já acometido de todos os impulsos vitais e passionais que o pessimista considera como única explicação para a “suposta desejabilidade da existência”, sem os quais a constatação de sua não desejabilidade seria inevitável, façamos o inverso, tentemos despojar tal pré-ser o máximo possível de tais características.

Mas para que isso não seja feito de modo completamente arbitrário, como o faz o pessimista que simplesmente pressupõe a necessidade da rejeição racional a existência, a única forma minimamente razoável seria apelar à evidência de existência mais próxima da condição pré-existencial, que é a condição do recém existente, no caso, do bebê, que quanto mais recém nascido, ou recém concebido, mais estaria próximo desse estágio de pré-ser primitivo.

Aí, qualquer chance de resposta que rejeitasse a vida cairia por terra, pelo simples fato de que desejar a não existência é uma condição contingente e minoritária só possível a um estágio já bastante desenvolvido do ser humano. No sentido contrário, o que vemos é puro pulso vitalista. O bebê, em sua aparente não cognição, é vitalidade pura, impulso existencial puro. Ele apenas quer, é, e age, características primárias da existência humana.

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Nada do que crianças fazem sugere qualquer desejo pela não existência, a não ser que se leve a sério algumas traquinagens aparentemente suicidas. O que vemos é um impulso vital tão forte que normalmente os bebês, à medida que começam a aguçar seus sentidos, não querem sequer dormir, de tão ávidos por experiências fenomênicas que são.

Reduzindo ainda mais essa existência ao estágio intra uterino, o que temos é um embrião em formação que está normalmente em confortável estado de acomodação, embora amplamente sensível, e que já começa a demonstrar suas pulsões existenciais mesmo quando seu sistema neurológico mal está começando a ser construído, e que reagirá violentamente contra qualquer tentativa de se reverter seu estado.

E regredindo ainda mais, à antes da formação do zigoto, temos entes pré-existenciais, o óvulo e os espermatozóides, que mostram de forma ainda mais escandalosa sua ânsia por vir a existir. Diante de tudo isso, imaginar a situação hipotética de emprestar alguma existência a um pré-ser esperando consultá-lo, só poderia ter como resultado não uma resposta, mas uma pulsão fortíssima para vir a existência. Enquanto o pessimista esperaria inquiri-lo e obter uma rejeição da existência, o infinitamente mais provável é que ele simplesmente pulasse rumo à existência com toda ânsia que qualquer forma de vida primitiva apresenta. Enfim, embora seja concebível um pré-ser desejar não devir, é inconcebível tal desejo ser necessário, até pelo inconveniente semântico de supor sentido em querer nada.

Ainda mais problemática do que esse curioso exercício intelectual de consultas aos pré-vivos, é a conclusão a qual pretendem chegar os que utilizam de tal artifício, o de que a não reprodução não deve ser vista como uma preferência, mas sim como uma obrigação moral. Ou, mais ainda, pela pretensão de se condenar a reprodução, no caso a humana, como um ato anti ético13. E mais ainda, pelo resultado inevitável do hipotético sucesso de tal empreitada que seria a extinção completa da humanidade, que vem sendo popularizada desde 1991 pelo Voluntary Human Extinction Movement 14.


13. Em niilismo.net/reflexoes/reproducao_humana.php há a melhor síntese desse pensamento. Faria mil comentários, mas só chamo atenção para a absoluta certeza do autor que toda e qualquer pessoa lamenta sua própria existência, necessariamente desgraçada, e somente o auto engano impede a admissão tácita disto. Do que deriva todas as suas conclusões. Mas isso seria absolutamente equivalente a afirmar que toda e qualquer pessoa celebra sua própria existência, necessariamente felizarda, e somente o auto engano impede a admissão tácita disto. Como evidência, demonstro que mesmo o autor de tamanho pessimismo possui orgulho próprio, realização pessoal pelo seu trabalho, e também quer espalhar o mais possível seu próprio ser para o mundo, não pela reprodução genética, mas memética, com eficiência em reproduzir sofrimento muitíssimo maior do que a mera reprodução física. Pois espera sinceramente que a absorção de suas idéias convença outros a constatar a própria desgraça, o que é, no fundo, seguramente um prazer para o autor como o é para todo aquele que obtém conformidade entre seu mundo interno e o mundo externo.

14. O www.vhemt.org se exibe com suposta preocupação ecológica, mas tal máscara cai no momento em que despreza a opção de apenas mover a espécie humana para fora do planeta, colonizando mundos sem vida. Por ousado que pareça, seria mais fácil que convencer a humanidade a se extinguir, exceto por massiva destruição que arruinaria a biosfera. Isso, bem como concessões à reprodução responsável, como se esta não fosse antítese da não reprodução ideológica, são meros disfarces do profundo ódio a si próprio e a toda humanidade.

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É evidente que, como tudo, a reprodução pode ser um ato anti-ético, se for vista como forma de explorar a vida da futura pessoa, sem lhe dar nada significativo em troca. “Produzir” humanos apenas em benefício próprio sem sequer lhes recompensar por isto é uma das formas mais severas de impor a escravidão. Dissertação intelectual alguma consegue mostrar isso com mais força que depoimentos baseados em motivos inquestionáveis e objetivos para odiarem a própria vida. 15

O problema está em, mais uma vez, generalizar uma visão subjetiva particular, invariavelmente sem apoio objetivo algum, logrando elevá-la a uma inquestionável objetividade universal. O mesmo pensador que flerta com a idéia de que a escolha necessária do pré-ser seria pela não existência, ao mesmo tempo pretende negar-lhe qualquer possibilidade de escolha como se isto fosse um bem, isto é, o não-ser fosse algo que pudesse ser valorado e possuído por aquele que ainda não veio a existir.

Em síntese, dar-lhe a existência seria, de certa forma, roubar-lhe algo, como se Nada pudesse ser Algo. Porém, ainda que fosse, não se teria tirado desse novo ser nada que não pudesse facilmente ser recuperado a qualquer tempo desejado, pelo suicídio, como o será inevitavelmente pela morte. Portanto, mesmo insistindo nessa curiosa acepção que se possa “roubar o não-ser de alguém”, na verdade o máximo que poderia de fato ocorrer seria tomar-lhe como empréstimo compulsório, com a vantagem que, ao devolvê-lo, ainda o seria feito com lucro, visto tal Nada ter mais valor atrativo àquele que não o tem do que àquele que sempre o teve.

Além do mais, temos o fato óbvio de que a maioria das pessoas permanece existindo por escolha própria, visto ser o suicídio um recurso extremamente acessível e mesmo podendo estar fortemente associado ao prazer. Tirar a própria vida não está necessariamente associado a um intenso sofrimento pontual, visto ser possível fazê-lo por meio de eventos que podem embutir um grande prazer pontual ao processo, como uma overdose de drogas, coma alcoólico, um impacto fulminante e instantâneo após um “vôo” em queda livre, ou mesmo métodos tanáticos de suicídio lento e progressivo por meio de maus hábitos. Métodos como o corte de pulsos, afogamento e auto combustão provavelmente são motivados muito mais pela força do símbolo envolvido, sangue, água e fogo, do que por qualquer consideração de eficiência.

E então, finalmente, aqui entramos numa resposta elegante desse pessimismo essencial focado na condenação da reprodução. A distinção entre dois tipos de nada, que, associada à questão da positivação, pode nos descortinar uma nova e revolucionária forma de ver a questão da oposição de valores Bem e Mal.

O Nada atingido pelo suicídio ou morte em geral não seria equivalente ao Nada original. Podemos ilustrá-lo melhor pela questão do movimento. Em geral, buscamos não somente o prazer, mas movimentos em direção ao prazer. Se imaginarmos uma linha entre prazer e dor, ou tristeza e sofrimento, podemos conceber que qualquer deslocamento no sentido mal-bem é desejável, e no sentido oposto indesejável. Isso explica por que sair de uma dor intensa para uma menos intensa, o alívio, é comparável a passar de um prazer menos intenso a um mais intenso, bem como cair de um prazer mais intenso para um


15. Exemplo chocante é o rap Eu Não Pedi pra Nascer, disponível em letras.terra.com.br/faccao-central/75334. Curioso é que discursos anti-natalinos são reconhecidamente inúteis exatamente onde eles seriam bem vindos, ambientes inacessíveis à reflexão cultural, só podendo ter efeito exatamente onde a probabilidade de uma vida objetivamente feliz é imensamente maior.

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menos intenso também pode ser comparado a uma amplificação da dor. Portanto, ao invés de dizer que “buscamos” o bem, o prazer, a felicidade, faria mais sentido dizer que apenas nos movemos em sua direção, visto que nunca conquistamos o bem em si.

Essa noção de tipos de nada, na verdade, realiza aqui sua inversão. Condena qualquer movimento para fora de um Não-Ser fundamental. Todo e qualquer acréscimo de algo ao nada é necessariamente ruim. Assim, o nada original é puro, e essencialmente bom, e qualquer passo fora dele é mal. Portanto, mesmo que ocorra o movimento de retorno, esta é apenas uma reação a um mal original, que foi o movimento de saída.

A conseqüência inevitável disso não é só a condenação da vida humana, mas de toda e qualquer forma de existência, apesar de muitos dos pessimistas que lidam com essa noção dignificarem a natureza selvagem em detrimento da humanidade. O pecado original, então seria a própria criação, o mal fundamental foi o Big-Bang!

REVOLUÇÃO COPERNICANA

Para se apreender a sutileza e elegância desse conceito é preciso abandonar a noção unidimensional da oposição bem e mal e ilustrá-la bidimensionalmente. E é curioso que mesmo os apologetas dessa concepção não o façam com tal clareza, embora ela esteja inevitavelmente pressupondo essa forma. Caso se dessem conta dessa decorrência inevitável, os pessimistas acrescentariam uma estética ao seu modelo que pode parecer invejável, e mesmo ensaiar um argumento definitivo contra a positivação do Bem, ou ao menos à imagem clássica que continua sendo utilizada, conscientemente ou não, em larga escala. É inevitável recorrer a ilustrações.


Nossa tradição concebe uma imagem clássica onde se coloca o Sumo Bem no centro, como um Sol, como Deus, e evidentemente considera que quanto mais próximo desse centro, melhor. O Mal seria o afastamento desse núcleo, de modo que o Nada estaria além de seu limiar, fora do alcance da “luz” divina do Bem, que é o conceito positivo, para o qual, naturalmente, devemos nos mover. A teologia até mesmo esclarece que toda a existência deriva desse centro, para o qual devemos enfim retornar.


O Pessimismo Essencial causa uma inversão parcial nesse modelo (um inversão total seria inócua), e embora mantenha o Bem no centro, remove-lhe o atributo do Ser e passa a considerá-lo o NADA, o Não-Ser, mantendo então a mesma noção de que o afastamento do mesmo é o Mal, e inclusive à este devemos retornar. No entanto, radicaliza a noção do afastamento, pois na versão tradicional é tolerável um grau mínimo de deslocamento do centro, a própria criação. É assim o Nirvana Budista.

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Mesmo em sistemas que já romperam com tradições antigas e medievais, essa imagem tradicional costuma permanecer subjacente, e no modelo pessimista, além da inversão ontológica, o núcleo é bem mais restritivo.

Parto da noção de que a inversão do Ser pelo Não-Ser do modelo pessimista está correta, embora não seja realmente nova. O modelo tradicional centraliza e monopoliza o Bem de modo a considerá-lo como uma única coisa, fazendo com que qualquer movimento em sua direção seja perder a especificidade e se submeter a uma única possibilidade específica de realização. Uma superlação da igualdade que aniquila qualquer forma de liberdade, visto que devemos nos dirigir a um único destino.

No entanto, esse modelo também disputou lugar com uma versão inversa, sugerida pela cosmologia medieval que colocava a Terra no centro do universo, e o inferno mais no centro ainda, enquanto a esfera divina estaria além da esfera mais alta, a das estrelas.

Proponho então reaproveitar tal noção num novo esquema visual.


Tal novo modelo tem a vantagem de reduzir o Nada ao que ele “é”, “algo” extremamente restrito, ou melhor, infinitamente restrito, isto é, nada! Quanto mais ao centro, mais semelhante, nada há mais igual entre si do que o Não-Ser. O Bem passa a ser expansivo, múltiplo, visualmente maior que o Mal. Na verdade infinito, com intermináveis possibilidades e manifestações, e por isso mesmo é Ser, é Positivo. Em parte isso era representado no modelo geocêntrico medieval, onde Deus estaria na nona esfera, externa, sendo então maior que o universo. Mas aqui isso não se aplica.


Lembremos que os modelos anteriores são distintos do Maniqueísmo, para o qual tanto o Mal quanto o Bem são positivos, isto é são Ser, e que todo o sofrimento deriva da convivência entre os princípios, que deverão voltar a uma separação original para restaurar a ordem cósmica.

Ainda mais importante é não confundir isso com o conceito taoísta do Yin e Yang, que nada tem de maniqueísta, e onde o Mal é a desarmonia entre os princípios, sendo o Bem, evidentemente, sua harmonia.

Em síntese, o modelo inicial coloca o Bem, Positivo, no centro, sendo o Ser. O modelo Pessimista apenas troca o Ser pelo Não-Ser, e enfim esse último modelo acima à esquerda mantém o Não-Ser no centro, mas trocando também o Bem de lugar, movendo o Mal para o centro, e mantendo sua negatividade. O Mal continuará, então, sendo Nada. Mas a imagem ficou invertida em relação ao modelo original.

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Isso vai ao encontro de nossa percepção inicial de que somos muito mais semelhantes na dor e no sofrimento do que no prazer e bem estar, e absolutamente idênticos na morte. Ainda mais em nossa natureza biológica do que em nossa humanidade, pois embora prazer e dor estejam vinculados a sensações físicas, e embora ambos possam anular temporariamente as mais avançadas concepções da atividade especificamente humana, os intervalos entre os prazeres intensos ainda nos permitem resgatar sem dificuldade nossas dimensões mentais mais elaboradas, enquanto que os intervalos entre as dores intensas tendem a ser preenchidas apenas pelo desejo de fuga e pelo desespero.

Esse desespero arrasta o ser humano rumo ao Não-Ser, fazendo-o obrigatoriamente passar pelas instâncias inumanas de sua natureza biológica, podendo reduzir sua humanidade a praticamente nada. Enquanto dois humanos repletos de realizações e prazeres podem ser muito diferentes, dois humanos repletos de sofrimentos e dores tendem a ser muito similares, por estar cada vez mais próximos da igualdade primária do Nada.

Disso decorre que o Bem é positivo exatamente por não ser algo unitário, mas múltiplo, e embora seja válido considerar a Felicidade como um Bem Supremo, podemos vê-la não como um centro restrito, mas sim como um universo de plenitude que pode ser alcançado de formas variadas ainda que relativamente equivalentes. Uma analogia útil é com relação à música, a mais abstrata das artes. Um silêncio total sempre será igual a outro silêncio total, mas as mais intensas e complexas músicas podem ser radicalmente diferentes umas das outras, e mesmo assim compartilhar sua característica fundamental de emocionar e fornecer prazer. E mesmo assim, o silêncio não é necessariamente ruim. Mesmo os maiores apreciadores de música, e os músicos, apreciam momentos de silêncio.

Por isso o Nada jamais poderá ser positivo. A dor, o sofrimento, a tristeza, são apenas variações de uma mesma natureza fundamental, que é a descida em direção ao Não-Ser. A única positivação possível é ao Ser, pois por mais variados que sejam os modos de realização do Bem, por mais distintos que sejam seus movimentos e instâncias, todos compartilham justamente a existência, que é o que permite tamanha variação.

Com isto, só resta a possibilidade de que talvez o Pessimismo Essencial não necessariamente aponte para uma positivação do Mal, mas sim uma anulação de qualquer positividade. Mas essa saída teria que lidar com a dificuldade de como seria estabelecer qualquer tipo de pensamento sobre um sistema desprovido de qualquer tipo de valor, de uma referência positiva que permite orientar e dar sentido a conceitos, o que transformaria qualquer pensamento em pura poesia.

O que, de certa forma, é o que acaba sendo feito, visto que ao negar o valor da existência humana, nega a base sobre qual se fundamenta o julgamento de desvalor da existência. Ou seja: Quem se valoriza pode valorizar algo, mas aquele que se desvaloriza não pode emitir valorações, visto que qualquer valoração deve ser baseada em um valor referencial. Que no caso, só pode ser a própria existência.

Mas até o mais radical discurso contra o valor da existência humana utiliza valores, que ele negue o valor fundamental em que se apóia, só é possível pressupondo a existência de valores não humanos, fora de nós mesmos, sendo assim, uma Certeza, ou melhor dizendo um Incerteza Essencial. Mas fato é que é necessário haver parâmetros positivos, ou o discurso se reduz a um Paradoxo de Epimênides.

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Voltando ao tema da indesejabilidade da existência, esta pressupõe uma distinção de tipos de Nada, o que incorre no absurdo de negar que um e outro Nada são necessariamente idênticos, diferente do que ocorre com um e outro Ser. O zero não tem seu valor alterado caso seja representado sozinho ou caso seja o resultado de uma subtração. Mesmo que a existência de um humano fosse terrivelmente trágica, seu retorno ao Nada anularia total e completamente tal tragédia pelo fato de que a mesma deixaria de existir completamente para ele, só permanecendo na memória dos que ainda existem.

Ainda assim, poder-se-ia justificar plenamente que não se deve trazer a existência alguém que sofrerá terrivelmente, mas quando é impossível saber se este será o caso, e ainda mais quando se tem motivos para considerar que o contrário é significativamente mais provável, como no caso de pais que honestamente querem o melhor para seus descendentes e dispõem de meios materiais e mentais para tal, é impossível condenar a geração exceto apelando a artifícios metafísicos que em última instância apenas arbitram passionalmente contra a existência se apoiando, sobretudo, em contradições, ao mesmo tempo que pressupõem superioridade racional.

E vimos que, acima de tudo, essa noção está pressupondo um esquema conceitual que tenta positivar o Nada, rompendo apenas parcialmente a tradição ao manter o Sumo Bem num centro de gravidade fazendo uma alteração cultural geo hemisférica que substitui o Ser de um Paraíso Celestial para o Não-Ser do Nirvana. Enfim, uma ruptura incompleta com a tradição, que só se consolidaria de fato por uma ruptura mais radical que não pode se contentar em apenas trocar o Ser pelo Não-Ser 16.

Enfim, não há dois tipos de nada, mas há vários tipos de nadificação, movimentos em direção ao nada, que podem ser rápidos ou lentos, sinuosos ou diretos, e não necessariamente pressupõem sofrimento. Um movimento rapidíssimo costuma ser indolor, mas o mesmo pode-se dar com movimentos lentos, tal qual um fade-out que soe como um adormecimento progressivo.

Também podem ser dolorosos, de formas distintas, e uma das mais óbvias é resultante da prévia ansiedade de alguém que se apegou tanto a existência que teme a morte mesmo sem tê-la em vista, o que é potencialmente elevado quando, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, se despreza a própria existência.

Essa contradição é o pior legado de um Pessimismo Essencial, lançado a mente num dilema cruel, ainda que voluntário, com a propriedade circular de se auto confirmar e piorar a cada instante.


16. Há muitos anos desenvolvi uma hipótese cosmogênica, www.xr.pro.br/Exeriana/Cosmogenic.html e só agora percebi a implicação desse modelo de um Bem absoluto em torno do qual se cria um vácuo existencial, o nada, em torno do qual se processa um universo local. Se conforma também à minha imagem da Galáxia, girando em torno de um buraco negro, como uma alegoria da mente humana, sugerida em www.xr.pro.br/monografias/VERDADE.html.

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VALORANDO A EXISTÊNCIA

Percorremos então uma afirmação reativa da existência, que apenas rebate argumentos que visam negar seu valor pressuposto. No entanto, ainda não postulou-se uma valoração ativa. Isso ocorre porque, principalmente, é muito mais fácil demonstrar o desvalor da inexistênca, pelo exposto acima que a associa ao Não-Ser e por conseguinte a algo desprovido de qualquer valor.

É o mesmo motivo pelo qual é dificílimo definir o Bem, embora possamos definir toda uma sorte de bens. Se consideramos que tais e quais coisas são desejáveis, como a vida, o prazer, as posses e etc, elas tem como pressuposto essencial existirem. As coisas indesejáveis, embora também existam, costumam estar intimamente relacionadas à inexistência, sendo em geral caminhos para o Não-Ser.

No entanto, vimos que nem mesmo isso pode ser considerado absolutamente mal. A dor, o sofrimento e nem mesmo a morte podem ser consideradas absolutamente más, assim como pode-se ver a vida e o prazer também não são absolutamente bons, o que parece nos levar a um impasse (ou a idéia da ilusoriedade do mal). Mas tal impasse é que é apenas ilusório, pois se podemos dizer que não existe o Mal Absoluto, podemos, por outro lado, dizer que existe o Bem Absoluto.

Isso decorre do fato que algo absoluto é algo incorruptível, não dissolvível, indestrutível, mas deve ser Algo. Tais atributos não podem ser aplicados ao Mal, porque este seria Nada! Portanto, não existe Mal Absoluto, por que no Não-Ser nada há que pudesse se dissolver.

Por outro lado, podemos falar em Bem Absoluto por sempre existir algo ao qual podemos apelar para estabelecer valorações. Embora existam miríades de bens que podemos considerar, todos são julgados sob um conceito maior, que é necessariamente abstrato. Não se deve perder de vista a imagem anteriormente sugerida de que o Bem não é um ponto de convergência em torno do qual o universo gira, mas antes o invólucro dentro do qual toda a realidade se processa, como se o universo fosse uma bolha imersa num oceano de Ser e onde os entes seriam mais reais e melhores à medida em que estivessem próximos da superfície desta esfera, estando o Nada ao centro da mesma. Esfera esta que, por outro lado, se expande e se enriquece constantemente.

Nada atesta mais a positividade de um conceito do que sua infinita capacidade de se manifestar, o que mais se harmoniza com a noção da positividade do Bem e da negatividade do Mal é o fato do primeiro ser infinito e o segundo ser zero.

Fora isso, ainda há um apelo entrópico pela superioridade da existência sobre a inexistência. É que, de acordo com os conceitos onde toda essa discussão tem se movimentado (nosso pano de fundo fortemente influenciado pela ciência, e, no caso, pelo pressuposto de que a morte leva ao nada), a existência é reversível.

Quem existe pode deixar de existir, no caso da existência consciente, ou pode manter sua existência e continuar, o que evidentemente não se aplica ao não existente.

A escolha é privilégio do existente.

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É curioso que haja quem pense fazer um bem infinito ao Nada, simplesmente pelo imperativo da não reprodução, negando às gerações do futuro, que podem ser trilhões de indivíduos, a possibilidade de optar pela existência ou não, ou concordar ou não com a malignidade da condição humana. Ou seja, por conta de uma opinião subjetiva, completamente pessoal e obviamente minoritária, lança essa consideração como verdade absoluta sobre toda a humanidade, decidindo por ela, e por cara indivíduo, que é melhor jamais existir, determinando o futuro de todos os potenciais humanos como se fosse um deus. É genial o personagem literário que, munido de tamanha presunção, ainda lança sobre os defensores da reprodução, mesmo a responsável, a pecha de Ultra Egoístas!17

 

Toda esta exposição, em especial a defesa do valor da existência, pode ser considerada uma digressão da monografia ESTÉTICA DOURADA, mas embora seja compreensível que muitos nunca tenham sentido necessidade de fazê-la, em pleno século XXI após vermos as coisas mais fundamentais serem questionadas, parece obrigatório dar respostas à solicitações que por mais anti intuitivas que sejam, são racionalmente justificáveis.

Digo isso por crer que a Filosofia é fortemente intuitiva. Embora sua característica fundamental seja a racionalidade, ela sempre parte de intuições fundamentais, ainda que muitas vezes associadas a emoções. É possível inclusive que os sistemas filosóficos já estejam previamente fundamentados e definidos intuitivamente por seus autores, e que toda sua produção intelectual nada mais seja do que uma justificação dos mesmos, de modo a tornar nossa soberana subjetividade acessível aos demais.18

E é exatamente pela preocupação com tentativas de universalizar a própria subjetividade como se fosse um dado objetivo externo à mente, e cujas idiossincrasias necessariamente devem se aplicar aos demais numa espécie de autoritarismo intersubjetivo que não respeita sequer a sensibilidade interna condenando-a como errada, que me interessei em abordar essa pretensão realista do pessimismo essencial em descrever o mundo externo e interno de cada indivíduo como se fossem objetos tangíveis.

O leitor pode, agora, retornar ao tema principal, caso não tenha se interessado apenas por essa parte.

Marcus Valerio XR

Março de 2010

Obs: O Professor Cabrera decidiu redigir uma Réplica a este texto, intitulada ACERCA DA SUPERIORIDADE INTELECTUAL E EXISTENCIAL DO PESSIMISMO SOBRE O OTIMISMO. (Download devidamente autorizado pelo autor.) No entanto, eu prefiro considerá-lo mais como um comentário, visto que meu texto não tinha o objetivo de ir direta e exclusivamente contra a Ética Negativa do Professor Cabrera. Por isso, também desenvolvi uma resposta, Tréplica, para direcionar melhor o assunto e focar num tema mais específico, intitulando recentemente como INSISTINDO NA EQUIVALÊNCIA INTELECTUAL ENTRE PESSIMISMO E OTIMISMO.


17. O personagem Thiago de Diabolis, que vive no ano 2120, em Por que Te Amo não Nascerás.

18. , Nietzsche afirma “Cada homem nasce, por assim dizer, com sua filosofia pronta, e todo o esforço de argumentação não passa de uma tentativa de adornar com um verniz de racionalidade suas preferências pessoais.” Segundo Olavo de Carvalho, essa descrição se aplica melhor à Schopenhauer do que ao próprio Nietzsche, afirmando que o sistema do famoso pessimista “...reflete menos uma busca de conhecimento do que o esforço de autojustificação de um certo sentimento do mundo, do qual o filósofo parece ter vivido imerso desde a infância.” Arthur Schopenhauer – Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão, Introdução, Notas e Comentários – Olavo de Carvalho. Pags 28 e 29

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MONOGRAFIAS
ESTÉTICA DOURADA