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TERAPIA

Dois dias depois outro pequeno veículo aéreo saía dos limites da Primeira Cidade, a bordo Ange e Hane, que parecia divagar na estranha sensação de voar dentro de um veículo pequeno, o que não estava habituado.

Nessas divagações Ange também se voltava para a introspecção, ainda digerindo parte das informações que recebera de Ekzar, e no dia seguinte, de Nani, que ao ouvir tudo o que ela tinha a dizer, por vezes riu as gargalhadas com a ousadia do físico em não poupar detalhes.

Nani observara Ange com cuidado, se poupando até saber exatamente o quanto Ekzar lhe contara e então por fim ficar mais a vontade, e completar com várias outras informações.

Já no outro dia fora a vez de Hane lhe contar outras novidades e saber, por intermédio dela, coisas que nem ele conhecia. Justo ele que sabia de coisas que os outros rapazes não sabiam. Por fim, Ange entrou no seleto grupo de pessoas que conheciam segredos ocultos à imensa maioria da população. Isso os tornou ainda mais íntimos, mais cúmplices.

E hoje, ainda antes de sair de casa, de manhã, ao falar com o namorado, mal conseguia se concentrar. Era difícil guardar tanta coisa, não compartilhar aquilo com seu companheiro, quase noivo, e de quem ela quase se esquecera nos últimos dias, se penitenciando internamente por não dedicar ao menos alguns minutos de seus pensamentos diários para o homem com quem trocara juras de amor.

Agora Hane ia com ela até a casa de Luri, que voltara após uma quinzena de desaparecimento. Era uma situação delicada, Hane se preocupava com Luri, mas no momento também precisava dele para que fizessem as sondagens necessárias no espaço, o que apenas Seki e Doni, surpreendentemente, vinham fazendo com incomum dedicação. Hane estava convencido de que Ange podia mesmo ajudar Luri, principalmente depois de sua última conversa.

Ela fora a única mulher a olhar direto em seus olhos naturais pela primeira vez sem se assustar, e mesmo com a viseira Ange parecia conseguir fitá-lo diretamente nos olhos, ou algo parecido, como ele podia deduzir, uma vez que era oftamologicamente cego.

Nesse momento Ange por vezes fitava Hane, que olhava para baixo provavelmente imaginando como seria a sensação de ser uma pessoa normal voando naqueles veículos frágeis, que à mínima intempérie, o mínimo defeito, podiam cair e matar seus ocupantes.

- Como vocês vivem? - Perguntou Hane intrigado. - Eu nunca entendi realmente. Como é ser feito de uma matéria que se desfaz com tanta facilidade? - Hane perguntou de modo espontâneo, incomum.

Ange respondeu. - Um antigo ditado da velha Mãe-Terra costumava dizer que "a carne é fraca". Mas tinha uma conotação sexual, embora a denotação também faça sentido.

- "Sim." - Pensou Hane. Ainda imerso no pensamento de como seria possuir um corpo tão frágil, não poder voar, não poder se privar de ar nem mesmo por alguns minutos. Era muito estranho para ele, e Ange entendia.

Ela pensava agora em tudo o que havia sido dito. Que os Moduladores de Força tinham seus limites, cedo ou tarde não mais conseguiriam se reproduzir, por isso, garantiam os cientistas, os rapazes não eram imortais, mas ninguém sabia ao certo o quanto eles iriam viver.

"Por enquanto eles não dão qualquer sinal de enfraquecimento." Dissera Nani, mas com certeza eles irão se degenerar, embora muitos cientistas envolvidos em sua criação, segundo lhe disseram, apostassem numa vida útil e plena de mais de um século.

"Primeiro os moduladores deverão começar a cessar, e o primeiro sinal de seu envelhecimento seria a perda progressiva dos poderes". Foi o que Nani soubera por intermédio de outros pesquisadores. Porém, a partir daí, ninguém tinha uma noção muito precisa de como se daria sua degeneração. Era certo que mesmo sem nenhum dos poderes mentônicos, eles ainda seriam muito mais fortes e resistentes que qualquer outro ser vivo conhecido, mas não poderiam mais ser o que eram. Não poderiam mais voar.

- "Sim". - Pensou Ange. "Um dia você saberá o que é não poder voar." Disse para si mesma olhando para Hane, e mergulhou em pensamentos ainda mais densos. Seriam eles de fato seres humanos como ela, ou apenas simulações de altíssima precisão? Obedeceriam à Lei da Consciência pela Complexidade? Estariam mesmo existencialmente satisfeitos? E quanto a seus inúmeros e rígidos determinadores comportamentais neurológicos artificiais, que os impediam de tomar uma série de atitudes? Que nível de liberdade individual eles realmente tinham? Como reagiriam sabendo que são filhos de um planeta que foi sacrificado, se tornando uma breve estrela? Só Hane sabia, agora, por que Ange lhe contou. E ele ficou chocado. Ela mais ainda por ficar impressionada com o fato de eles não saberem tanta coisa sobre si mesmos. Hane até desconfiara se as alegações de que o sistema Orizon tivera uma terceira estrela não eram mais que especulações vagas, ainda que isso tivesse sido muito antes da chegada dos humanos. E Ange refletia sobre o que Ekzar quisera dizer sobre a possível presença dos Zenitrons em Orizon há mais de um milênio atrás.

Ange foi pega de surpresa quando Hane interrompeu suas divagações. - É aqui. - Disse, ordenando à nave que pousasse. Desembarcaram num jardim agora limpo e organizado. Cuidadoso trabalhos de zeladores e jardineiros enquanto Luri esteve fora.

Ange, ansiosa mas comedida, acompanhou Hane que a guiou casa adentro, cuidadoso, até que finalmente encontraram Luri numa sala vazia, como se meditasse, vestindo apenas roupas folgadas e brancas.

O ambiente era azulado devido as cortinas azuis translúcidas. Luri parecia sempre ficar distante da claridade, meio enclausurado. Ele se levantou devagar e se virou para ver seus visitantes, sabia que era Hane e uma mulher, mesmo assim se assustou quando viu Ange. Era como se estivesse vendo uma outra Erika. De forma nada cortês saiu da sala as pressas, Hane o seguiu. - Luri! Espera! Vem cá!

Ange não precisou de mais que meio segundo de expressão facial para perceber que ele estava num acesso de tomar todas as mulheres pela atitude de uma. E mesmo de outro cômodo, conseguiu acompanhar a lenta e paciente investida de Hane para convencê-lo a se deixar ver.

Num certo momento Hane disse. - Luri... Tem alguma coisa nessa mulher. Ela é diferente. Eu tenho certeza que você vai gostar dela. - E depois de muita insistência complementou quase num tom de súplica. - Luri... Amigo... Por favor...

Minutos depois Luri mudara de roupa, como se fosse voar em missão a qualquer momento, sentou-se na mesa da cozinha e ficou a esperar, Hane trouxe Ange, que o cumprimentou discretamente sem esperar resposta.

Primeiro Luri a fitou, fez uma expressão de curiosidade, então desviou o olhar. Hane decidiu deixá-los a sós e esperar do lado de fora da casa, atento a tudo, ainda que não tivesse maiores preocupações, Luri estava até bem mais tranquilo do que ele esperava.

Ange ficou minutos a fio fitando Luri, identificando sinais em seu rosto e sua expressão. Luri não se importava, estava ausente, e Ange pensava, media, calculava cada palavra a ser utilizada, cada tom de voz, respiração, até por fim lembrar do que conversara com Erika, quando recebeu a valiosa informação de que Luri se sensibilizara com um discurso mais subjetivo. Então agiu, calmamente, se aproximando de modo maternal.

- Não deve ser fácil ser orfão de sua genitora... Sua mãe.

Luri fez uma expressão de interrogação, e a olhou curioso. Ela quase viajou no olhar dele, só então se deu conta do quanto era bonito, não só o olhar, mas tudo.

- Orizon 9... - Completou ela. - Virou uma estrela, e logo em seguida morreu, para dar a vida a vocês 4.

Luri tentou disfarçar mas foi como se uma pedra o atingisse, baixou a cabeça e esfregou os dedos na testa, olhando para o vazio num sinal claro de quem acaba de chegar a uma reposta para um enigma que vinha remoendo há anos. Ele ficou abalado, e gostaria de ouvir mais, mas não se daria por vencido tão fácil.

- Foi há 27 anos, o que significa que daqui a apenas dois anos a colônia humana em Sirenia Menor estará vendo as imagens do colapso de Orizon 9, e eles estudarão o fenômeno, e não saberão que estarão testemunhando o seu nascimento.

Pela expressão dele ela percebeu que ele sabia sobre a provável colônia humana em Sirenia Menor, estrela a 29 anos-luz de Orizon, onde parte da população original migrara, antes que o planeta Orizon 5 fosse domado. As últimas mensagens chegadas de Sirenia Menor indicavam uma civilização em crescimento modesto, dada as condições dos planetas habitáveis, mas confortável e segura, pelo menos sem nenhuma raça alienígena fotoplásmica contra a qual lutar.

- É irônico não? Pensar que eles partiram antes de começar a guerra, numa das últimas naves interestelares que ainda funcionava, e agora, as imagens da guerra chegam até eles.

Luri também pensou se talvez a própria guerra não chegara até eles, e Ange imediatamente completou. - Isso se a própria guerra não chegou até eles. Nem sequer podemos saber se os Ians os seguiram.

- O que quero que entenda Luri, é que sei que você é muito especial... Todo o Sistema Estelar estremeceu no seu nascimento, embora quase ninguém saiba disso. E acho que da mesma forma algo em você estremece refletindo o eco do parto que te trouxe à vida, você sente, mas ninguém sabe, e nem tem idéia do quanto você é diferente, e do quanto sente falta de algo que nem sabe dizer o que é. Mas eu também sei que você não queria ser tão diferente. Queria poder entender as pessoas com mais facilidade, e eu sei, que pelo que você é, isso é uma experiência muito diferente, e eu nem saberia por onde começar. Mas eu gostaria muito de poder te ajudar.

Luri ouviu cada palavra com atenção, e teve a sensação que podia prever cada sílaba que ela estava prestes a dizer. Mesmo assim estava surpreso. Nunca ouvira aquilo, daquela forma. Nenhum dos outros terapeutas antes tivera uma primeira aproximação tão suave, sem perguntas diretas, sem painéis de informações para os quais olhavam de minuto a minuto. Ange não trazia nada consigo, não parecia de modo algum uma psicoterapeuta, era apenas como alguém desabafando.

Pela primeira ele vez esboçara um sorriso.

Ao fim do dia Ange e Hane partiram, após este último conversar com seu irmão. Não havia como negar o sucesso do primeiro encontro. Luri não disse uma só sílaba, e mesmo suas expressões e trejeitos eram difíceis de interpretar, mas o simples fato de ele ter ficado a vontade já fora um grande avanço.

No dia seguinte Hane acompanhou Ange novamente, mas não permaneceu lá o dia todo, já no terceiro dia Ange foi sozinha, continuou conversando de modo aparentemente informal, sem qualquer intenção terapêutica aparente. Pareceria a nós, deste mundo e desta época, que ela era a paciente, e ele um psicanalista apenas a ouvir e coletar dados.

Nesse terceiro dia pela primeira vez Luri disse algo, pouco antes de ela ir embora. Disse: "Orizon 8 ainda está triste."

Ange quase cancelou a viagem que teria que fazer logo a noite para rever seu namorado nos poucos dias de disponibilidade dele. A bordo do vôo para a Quinta Cidade, na mesma rota onde meses antes os heróis impediram uma tragédia, ela devorou informações dos mais diversos tipos, e pensou muito, pois aquela única frase de Luri lhe fornecera um vasto material.

É famoso o dilema filosófico entre Determinismo e Liberdade. Se tudo o que ocorre obedece a uma razão, então nossos atos também o fariam. Assim, não teríamos decisão autêntica, e sim seríamos escravos de forças causais que nos precedem, possivelmente, disparos cerebrais eletroquímicos que determinariam nossos comportamentos e decisões. No Determinismo, a liberdade é ilusão.
ESTRANHOS SINAIS

Seki e Doni acabavam de voltar do espaço após horas rastreando um outro campo de asteróides. Estavam tão cansados que vinham a bordo de uma nave, que os levava até um encontro com um cientista. Sozinhos a bordo da nave automática, conversavam sobre sua investigação ao mesmo tempo oficial e particular.

Graças a sua própria travessura Seki soubera por onde começar a procurar sinais estranhos, e de fato acertou em cheio quando notaram evidências da passagem de sondas nunca antes vistas, mas nada comunicaram à Defesa Planetária. Seki percebeu no local que várias rochas haviam sido irradiadas por ondas específicas que ele liberara quando preparou o arremesso do asteróide contra seu planeta, e se o lugar fosse exaustivamente sondado com sensores novos, poderia ficar evidente que um deles estivera ali na hora do último e quase fatídico evento.

Eles destruíram várias pedras no local para eliminar provas e ao mesmo tempo criar um álibi caso radiações similares às deles fosse detectadas lá, mesmo assim, ainda estavam inseguros quanto ao que uma vistoria com novas técnicas poderia detectar.

- Eu não sei Doni... Começo a achar que podem nem ser Ians, o rastro é muito diferente. Nenhum de nossos sensores detectaria essa frequência.

- Já pensou se essa coisa, caso não fosse Ian, tivesse registrado o que você fez? E se ela revelasse tudo?

- Não é hora para pessimismo. A única coisa que temos que nos concentrar agora é em que tipo de tecnologia pode gerar esses sinais. Escolhi falar com o Xistus por que ele além de ser bem recatado é meio sonso. Não vai ligar uma coisa com a outra se fizermos perguntas muito incomuns.

- E é um dos maiores especialistas em radiações que temos.

- É... Estamos chegando.

A nave acabava de pousar. Na verdade o principal motivo de preferirem não vir voando por suas próprias forças era evitar as câmeras de TV que os seguiam sem cessar.

Desceram discretamente em cima de uma montanha pouco habituada a presenças humanas. Se fossem vistos de longe, de algumas outras montanhas ou construções altas que havia ao redor, ninguém desconfiaria serem eles.

Chegaram à frente de uma casa pequena, tanto que nem parecia uma residência. No topo da montanha havia enormes antenas, o que fazia o local parecer uma mera estação de transmissão e recepção. A porta se abriu antes de eles sequer pararem de caminhar. Entraram e logo viram que era apenas uma entrada de superfície e um elevador os conduziu para uma ampla habitação subterrânea.

Xistus tinha a barba por fazer e parecia usar o que nos lembraria um par de óculos, mas toda a população de Orizon, geneticamente aperfeiçoada, não sofria de disfunções visuais, e aquilo na verdade era um sistema de lentes de aumento compactados de alta sofisticação, capazes de amplificar uma imagem mediante um simples arregalar de olhos.

- Mas vejam só... Em geral não gosto de ser interrompido mas não é todo dia que se recebe uma visita como essa não? - Disse sorridente chegando de súbito pelo corredor que se revelou ante a saída do elevador.

- Xistus. - Disse Seki. - Está diferente. - Fazia tempo que não se viam, e nem eram muito de se falar mais por falta de tempo do que afinidades. Enquanto desciam uma escada que dava para um complexo de laboratórios Doni perguntou. - Quantos trabalham aqui?

- Só eu. Mas estou conduzindo várias pesquisas. - Disse enquanto apontava suas salas, onde se destacavam um pequeno laboratório de biologia, repleto de microscópios e um imenso laboratório de física, com direito a aceleradores de partículas de dezenas de metros. - E vocês, o que os fez vir até aqui?

- Bem. - Começou Seki. - Uma vez que você é o maior especialista na área... Queríamos saber sobre uns certos padrões de radiação. - Completou puxando um pequeno painel visual.

Xistus o pegou, num toque ativou os dados e pediu em voz alta a seus computadores que lessem as frequências. Logo uma série de gráficos eram apresentados em alguns visores.

- Onde acharam isso?

- Num cinturão de asteróides. - Respondeu Seki. - Sabe o que é?

Xistus pensou um pouco e teclou alguns comandos, vários itens surgiram no visor, tocou alguns e acessou uma lista de frequências que passaram a ser comparadas, 4 foram isoladas.

- Que tipo de nave poderia gerar essa radiação? ...E essas frequências de onda... Aqui? - Perguntou Seki enquanto teclava no computador um ícone de recepção e logo em seguida enviava de seu próprio cérebro um sinal eletromagnético. O computador avaliou e instantaneamente apresentou uma série de gráficos que cruzavam os dados, com algumas opções que exibiam inúmeras fórmulas e dados.

Xistus fez uma autêntica expressão de curiosidade e após uma notável compenetração, e deslizar e clicar itens em vários pontos do visor, bem como anunciar oralmente instruções em uma língua que os rapazes nem conheciam, finalmente se virou para eles.

- Contem essa história direito. Como foi isso?

Os heróis se entreolharam e Seki explicou todo o processo de rastreamento após alegar ter detectado o sinal inicialmente por pura sorte.

- Bem. - Iniciou Xistus. - Nenhuma máquina Ian ou nossa geraria esse tipo de radiação, que parece um detrito de um tipo de impulsão fotônica ultravioleta muito sutil e pouco potente. É evidente que o robô que usa isso quer ser imperceptível.

- Que tipo de robô pode ser? Uma sonda? - Perguntou Doni.

- Sim... Possivelmente. Pequena, discreta... Observem esses padrões aqui. - Disse Xistus apontando pela tela. - Deixa claro que o tal objeto ficou um tempo emitindo um resíduo mínimo, como em espera, então se moveu, como vocês podem ver nessa crista de onda. Calculando isso aqui por aproximação... - Deslizou outros visores transparentes e fundiu uns gráficos. - Dá pra deduzir até a velocidade e potência... Vejam só! Uma coisinha minúscula, se movendo quase como um fantasma, tão sutil que só mesmo poderia ser notada para quem estivesse muito próximo dela. Vocês realmente deram uma sorte incrível.

- Mas qual seria a função dessa sonda? - Perguntou Seki, sempre prudente para antecipar qualquer sugestão de Xistus em contatar outros especialistas ou perguntar o que a Defesa Planetária tinha achado.

- Em uma só palavra... - Respondeu o cientista. - Comunicação! Creio que seja um tipo de rede de comunicação de médio alcance, a julgar por essas frequência que você reproduziu. Olhe isto aqui! Essa frequência seria abafada pela liberação de qualquer motor que possuímos, ou mesmo os que os Ians usavam. Mas com essa impulsão sutil, essa sonda poderia usar enviar e receber instruções de forma dissimulada, pois a frequência poderia ser abafada pelo simples bip de sondagem de fundo emitidos pelos sensores. É uma tecnologia genial... Nunca tinha pensado nisso. Mas... Ei! Espera!

Xistus então selecionou dois dos gráficos anteriores e os maximizou.

- Epa! Espera aí! É isso! Eu já vi isso! Agora lembrei! - Animou-se o cientista, deslizando e maximizando vários outros gráficos em telas flutuantes, e enquanto as lentes de seus óculos giravam ampliando a imagem.

- O quê?! - Se impacientou Seki.

- Num dos projetos antigos... Do tempo da guerra! E... - Xistus teve dúvidas em contar sobre algo altamente secreto, capitulou e finalmente olhou para os rapazes e confessou. - Olhe! Eu não sei porque sempre quiseram esconder certos projetos de vocês mas... Isso aqui foi comentado num antigo artigo dos estudiosos de tecnologia Ian. Achavam que podia ser um tipo de projeto do inimigo para desenvolver novo impulsores de íons impossíveis de detectar, com a função de reconhecimento e espionagem. A maioria achava que não daria certo, mas pelo jeito, eles fizeram.

- Então temos um novo tipo de inimigo? - Perguntou Doni.

- Sinceramente? - Disse Xistus - É bom saber que estão por aí, mas não acho que sejam motivo de preocupação. São basicamente transmissores e receptores... Não tem muito o que fazer aqui. Sondas mais convencionais podem fazer o mesmo a distâncias bem maiores. Além disso não há qualquer indício de que haja armamentos Ians pesados na proximidades. O máximo que essas sondinhas poderiam fazer é convocá-los, mas nesse caso nossos sensores normais os captariam muito antes de estarem a distâncias efetivas.

Xistus disse tudo com muita tranquilidade, de modo que por um lado aliviou Doni, mas por outro preocupou Seki. Não só pelo fato de não justificar tanta investigação e não servir como um bom álibi, mas também por que algo lhe dizia que aquilo era só a ponta de um iceberg.

- Uma coisa eu garanto. - Retomou Xistus. - Isso aqui não empurrou aqueles asteróides.

Doni não perdia uma chance de lançar olhares repreensivos para seu companheiro.

Xistus deu um suspiro de conclusão. - Bem... Vamos nos comunicar com a Central de Ciências e a Defes...

- Espere! - Interrompeu Seki, que espertíssimo, já bolara uma boa saída. - Disseram para conduzirmos isso de modo mais reservado, pessoalmente e discreto. Por isso viemos na nave. Sabe como é, com esses espiões por aí é melhor evitar transmissões de rádio sobre o assunto, principalmente de longa distância. Levaremos as informações aqui mesmo. - Concluiu mostrando o painel de dados.

- É... - Admitiu Xistus. - Tem razão. É melhor que essas coisas não saibam que sabemos não?

- E Xistus... - Insistiu Seki. - Isso é muito confidencial. Melhor não comentar nada com ninguém por enquanto... Até termos mais novidades. Tudo bem?

O cientista achou um pouco estranho, mas não era de se preocupar muito. - Está bem. Espero vocês entrarem em contato. Não devo sair daqui nos próximos dias. A Central de Ciências me encomendou uma série de estudos que vou fazer por aqui mesmo.

Seki então pediu novas indicações para pesquisas e Xistus citou vários pesquisadores, entre eles Ekzar e Nani. Logo depois se despediram e deixaram o cientista em paz com seu trabalho. Do lado de fora, rumo a nave, conversavam.

- Tem algo mais por trás disso. Não sei o que é... Mas tem. - Disse Doni. Vamos visitar mais alguém agora?

- Não. Por hoje chega. - Respondeu Seki. - Daqui a pouco esses respeitáveis cientistas estarão dormindo. Melhor deixar pra amanhã.

- Está bem. Ei! Não vem pra nave?

- Ah! Já voamos demais nesse treco hoje! Chega de trabalho, vamos relaxar. Nessa hora sempre há festas nas praças da Quarta Cidade. Vamos nos divertir um pouco.

E então arrancaram rumo aos céus e logo atingiam velocidade muito superior a da nave, que foi instruída a voar automaticamente de volta a base da Defesa Planetária.

Doni ainda esperava investigar mais, mas concordou que haviam trabalhado arduamente por dias seguidos. De fato Seki estava se redimindo.

Dois fachos verdes queimavam os céus.

Se o Universo não for determinado, mas sim caótico, isto é, estiver totalmente ao sabor do acaso, também não haveria liberdade, pois todas as nossas decisões seriam eventos aleatórios ocorridos em nossa mente. Um Deus Onipotente que tudo controlasse, ou um universo totalmente desprovido de qualquer direcionamento, inviabilizam igualmente a liberdade.
OBJETIVIDADE EM RISCO

Ange voltara muito emocionada de seus dias com seu namorado, que agora prometera um compromisso sério. Sentia-se amada como há muito não sentia, e chegara a se esquecer de tudo pelo tempo em que esteve com Lence, aquele que parecia cada vez mais o homem de sua vida.

Ao voltar ao trabalho, se dirigindo novamente para a casa de Luri, demorou a se concentrar, mas quando o fez voltou a ser totalmente uma profissional, com um interesse extremamente objetivo.

Já totalmente absorvida por sua profissão, desembarcou, entrou na casa e procurou Luri. Ele não estava mas minutos depois entrou por uma das janelas. Por um segundo, parecia distante como antes, mas depois foi relaxando novamente.

- Olá. Onde esteve? - Perguntou sorridente.

As expressões faciais e os trejeitos dele disseram que apenas passeava. Ange já conseguia ler os modos de Luri a ponto de as vezes ter a impressão de que ele falara. Insistiu nos detalhes do passeio. Luri contou que apenas fora ver o nascer da estrela vermelha, mas o "ver" em questão, no seu correspondente idiomático, também tinha a conotação de "ouvir" que por um momento passou desapercebida por Ange.

Disposta a se concentrar na única e curiosa frase oral que Luri lhe dirigira 3 dias antes, Ange reunira um material sobre astronomia, e conotações psicológicas dos Astros celestes.

- Orizon 8 ainda está triste. - Repetiu ela. - O que quis dizer Luri?

Curiosamente ele se sentou perto dela, e ficou a fitar seus olhos como se procurasse alguma coisa, depois parecia entrar num breve transe, ainda que com os olhos fixos em sua testa como se houvesse um ponto focal nela. Ange esperou pacientemente até que ele relaxou e se recostou na cadeira, com os dedos no queixo, pensativo.

Ela fez algumas perguntas. Ele não reagiu. Parecia ausente, por fim, após quase uma hora, onde Ange aproveitou para examinar alguns dados em seu painel, ele falou subitamente em voz baixa mas clara. - Perdeu sua irmã.

"Perdeu sua irmã" - Pensou Ange. Era evidente ser um pensamento poético, algo que ela já percebera que Luri apreciava. Pelos seus modos, Ange deduziu seus pensamentos e disse. - Você não gostaria de perder um deles, não? - Se referindo a seus irmãos. Ele balançou a cabeça em confirmação da negação. Então levantou e trouxe uma caneca de chocolate, que ofereceu a ela. Um gesto inédito.

Ela aceitou e agradeceu.

Durante 3 dias Ange contou histórias, confessou impressões e observou pacientemente a reações do super humano. Já conseguia compreender perfeitamente tudo o que ele parecia falar, e já havia percebido muitas coisas.

Uma delas que Luri, apesar da aparência inicial, não gostava de falar sobre seu trabalho, parecia em alguns momentos nem lembrar de quem era, Ange sentia que as vezes ele queria ser diferente, ou melhor, ser igual às outras pessoas. Mas isso era apenas uma máscara, uma espécie de defesa que ele criara para evitar algo que ela ainda não entendia.

Ele fugia, por exemplo, das publicidades como se fossem ameaças mortais. Não havia nenhum visor na casa, nem mesmo instrumentos de telecomunicação. Nenhuma máquina, quase nenhuma tecnologia eletrônica.

Havia muitos gatos, que Luri por vezes acariciava com muita delicadeza, em especial um de pêlo azul. Ange contou a ele sobre alguns significados simbólicos dos gatos, inclusive o da independência e solidão, e contou estórias, mitos e lendas sobre gatos que haviam na antiga Terra.

Esse era um assunto que parecia sempre despertar a atenção de Luri. O berço da humanidade. Falou sobre crenças antigas e por fim sobre oráculos e Astrologia. Em meio a uma frase em que dizia que os antigos pensavam que os Astros lhes diziam coisas, Luri a interrompeu de forma brusca embora simpática, e oral.

- Os Astros falam!

Ange ficou espantada e curiosa, então pensou numa abordagem menos direta.

- Você vê TV Luri? - Ele fez que muito raramente, e que via mais antigamente. Ange notou a total ausência de visores na casa, e já esperando a resposta perguntou como ele fazia.

Ele apenas apontou o próprio cérebro. Claro! Luri, uma das maiores antenas já criadas, podia captar tudo, diferente de seus irmãos que só detectavam sinais conversíveis em áudio.

Luri era capaz de interpretar as imagens e qualquer outra forma de dado, a qualquer momento. De fato não havia a menor necessidade de aparelhos de recepção. Sendo assim, Luri também podia captar qualquer outra frequência eletromagnética, ou seja, para ele, as estrelas falavam!

Ela ficou boquiaberta com a constatação, inclusive com a demora em perceber isso, pois só agora se dava conta da importância.

Notando seu entusiasmo Luri também se animou, e já caindo a noite, fez um convite a ela. Ir ouvir as estrelas.

Era necessário ir além da primeira cidade, rumo ao outro lado do planeta, onde a sobrecarga de sinais artificiais não prejudicava a recepção dos sinais naturais. Ange entrou em seu carro aéreo, ainda sem saber aonde iam, Luri voou logo a frente, e de repente ela o perdeu de vista.

Enquanto o carro voava automaticamente, ela checava os radares em busca dele, quando de repente o veículo, que se movia a cerca de 150 m/s, foi violentamente acelerado para bem mais que o dobro.

Ange quase desmaiou, mas logo se recuperou do susto, para ver o velocímetro já passando do triplo da velocidade máxima de 240 m/s. Luri empurrava a nave ao mesmo tempo em que ia derretendo e moldando partes da fuselagem de modo a suportar a resistência do ar.

Já estavam a mais de 900 m/s quando a velocidade estabilizou. A viagem demorou mais de meia hora, tempo em que ela aproveitou para rever alguns pontos de sua terapia, tentando relaxar e disfarçar a breve apreensão.

Começou a se dar conta de algo muito impressionante sobre Luri, após checar vários dados técnicos que só ela dispunha além dos cientistas mais graduados e envolvidos no projeto que criara os jovens deuses. Percebeu que Luri deveria ter muita dificuldade em Não ouvir uma série de sinais. Sua cabeça, provavelmente seria por vezes invadida de milhares de "vozes" de todos os tipos. Ligações telefônicas, programas de TV, músicas de rádio, comunicações de tráfego aéreo, faixas de dados, interferências causadas por motores iônicos, fornos de microondas, ultrasons, sinais infravermelhos e etc. Devia ser enlouquecedor.

Era bem provável que Luri conhecesse muitos mais segredos e intimidades alheias que qualquer colunista social ou fofoqueiro profissional, pois ocasionalmente sua mente deveria ser invadida por telefonemas pessoais. É claro que ele podia filtrar e abafar os sinais, mesmo assim, isso devia desprender um certo esforço, uma boa dose de concentração. Finalmente o ritmo da nave diminuiu, justo quanto ela estava a refletir sobre a capacidade de voar a aquela velocidade espantosa, acima do som, penetrando no silêncio.

Pousaram numa ilha deserta. A noite era escura e o céu estava esplendidamente estrelado. O vento era frio, Ange pegou um casaco e saltou. O som das águas era relaxante e o demais silêncio parecia convidar a mais silêncio. Mas foi o próprio Luri que o quebrou.

- Pode ouvir? - Perguntou ele. Ela balançou a cabeça. E ele mesmo, olhando para o céu, respondeu oralmente. - Eu ouço... Cada uma.

Ele sorria, com uma singeleza encantadora. Novamente fez uma pergunta. - Quer? - Ela confirmou silenciosamente e ele a orientou a pegar seu comunicador de bolso. Colocou o fone nos ouvidos e acionou a recepção, de onde vinha apenas chiado.

Então Luri olhou para cima, sorriu e fechou os olhos, e logo em seguida um chiado diferente invadiu o receptor de Ange. Luri captava o "som" eletromagnético da uma estrela e o retransmitia puro, refinado e amplificado para o receptor dela, então apontava no céu de qual astro se tratava.

Ele foi mostrando os sons das estrelas uma por uma, e Ange não tardou a perceber a sutil diferença de cada, pois apresentavam tons distintos, ou ele as tornava diferentes de algum modo.

- Percebeu? - Perguntou Luri. Ange confirmou, assim como já havia notado que quando ele falava era melhor ela ficar calada, para não inibi-lo, e se comunicar também por gestos e expressões.

Luri, espontaneamente afirmou. - Os astros falam.

- E o que eles dizem? - Perguntou ela oralmente.

- "Muitas coisas". - Ele disse com gestos e expressões. - Música.

Com uma precisão incomum Ange lhe perguntou sem falar se ele vinha muito a aquele lugar, ele confirmara, e disse. - Também outros.

De repente Ange percebeu um som muito mais fraco, quase inaudível, mas mesmo assim notável por sua peculiaridade parecer melódica, então viu Luri apontando o planeta Orizon 8, que segundo ele ainda lamentava a perda da irmã Orizon 9. Mas Luri disse também, de um modo que Ange não conseguiu perceber se oral ou não, que Orizon 8 também sonhava ser mãe.

Um a um Luri foi mostrando os bem mais discretos "sons" de cada planeta, e Ange nem sequer sabia que planetas também emitiam ondas eletromagnéticas. Luri então se abaixou, sorridente, e levou a mão ao chão, e logo outro som invadiu o receptor de Ange, o som do centro de fogo do planeta, que gerava o campo magnético que Luri era capaz de distinguir e magnificar.

Por fim ela ouviu um som ainda mais diferente e muito mais forte, era o som das estrelas Orizon, 0 e 2, mesmo estando do outro lado do planeta, Luri podia ouvi-las com a mesma facilidade com que podia sintonizar uma transmissão de rádio popular. Num dado momento ele pareceu insinuar que Orizon 2 lhe confessara ter saudades de uma outra estrela, mas Ange preferiu não insistir no assunto.

Ela estava muito impressionada, jamais pensara que radioastronomia podia ser tão fascinante, pelo menos através de um poeta. Ficou pensando o que os primeiros radioastrônomos da Terra, principalmente os que procuravam sinais de vida extraterrestre, pensariam de Luri.

Não era a toa que ele se isolava, ia aos confins do planeta para ouvir, e conversar com os Astros, pois Luri também podia emitir sinais de alta potência. Como poderia ela entender o universo psíquico de alguém assim? Sobre um ser que percebia uma dimensão da natureza absolutamente inacessível para as outras pessoas?

De repente para seu maior susto, ainda que fosse delicadamente, Luri a abraçou pela cintura, e levitou alguns metros rumo a uma parte mais baixa da ilha rochosa. Pousaram e lá ele apontou para uma pequena montanha distante e pediu a ela para prestar atenção.

Ele se afastou um pouco e de modo quase cerimonial estendeu o braço esquerdo, que começou a brilhar, revelando os ossos em cor azul clara. Pequenas descargas elétricas corriam ao longo do braço se concentrando na mão aberta, que assim que a intensidade de energia aumentou, subitamente se fechou em forma de punho cerrado e um intenso feixe de luz disparado rumo à montanha ofuscou a psicóloga.

Logo em seguida um estrondo, e Ange viu ao longe a montanha brilhar absorvendo energia e explodir a uma meia altura, fazendo a parte de cima desabar lentamente num espetáculo de demolição.

- O que você sente? - Ele perguntou.

Ange ficou confusa. Sabia que não havia formas de vida macroscópicas ali, nem construções. O que ele queria mostrar? - Não sei. - Ela respondeu. - Nada... Rochas partindo, avalanche.

Luri olhou para a montanha, e depois para Ange novamente, e falou.

- Sabe o que eu ouço? Gritos. De êxtase... E agonia. A transformação. Trilhões de moléculas mudando de forma, se desgarrando umas das outras, mudando de estado físico...

Ele falara!!! Falara tudo aquilo com sua própria voz! Mas logo em seguida se calou novamente, embora sorridente. Ange não quis deixar o clima morrer.

- Elas celebram? E lamentam? A mudança de forma? É isso?

E ele confirmou com a cabeça. Luri sentia tudo de forma emocional. Aquela explosão também emitira sinais eletromagnéticos que ele captava e interpretava. Cada explosão, cada raio, era um evento psíquico intenso e passional para Luri.

Ele ficou alisando o braço e se concentrando, de modo a dissipar mais rapidamente a radiação que podia ser prejudicial a sua companheira e então perguntou. - Como os antigos ouviam os astros?

Ange falou sobre a radio astronomia da velha Terra, mas não fora isso que Luri quis saber. Ele falava sobre os astrólogos e místicos.

- Acreditava-se...- Começou Ange. - Numa influência dos Astros sobre a psique de cada pessoa de acordo com a época em que ela nascia e em que tal constelação estava em destaque no céu.

"Constelação?" Aquilo a princípio não fazia muito sentido para ele ou qualquer pessoa destas novas sociedades espaciais, que há muito perderam a ilusão que de a posição aparente das estrelas formassem grupos interligados.

- Falo de povos muito antigos, que ainda se deixavam enganar pelo movimento aparente dos astros. Eles não sabiam o que eram as estrelas, achavam que a Terra era o centro do universo. Eles viam certas regiões do céu noturno e interligavam imaginariamente algumas estrelas, as constelações, e abstraiam formas nelas. Eram chamados de Signos do Zodíaco, e eram 12, que dividiam uma parte igual do período de um ano. Acreditavam que eles determinavam uma série de características psicológicas primárias, causando algum tipo de influência sutil. Depois, com o desenvolvimento da Ciência, a Astrologia ficou desacreditada pela elite intelectual, mas continuou forte no imaginário popular, que entretanto a distorcia muito.

Luri ouvia tudo com muita atenção, e Ange continuou.

- Descobriu-se que a Terra não era imóvel e nem era o centro do Universo, descobriram novos planetas, e que as estrelas ficavam a distâncias muito variadas, e não fixas numa mesma e imensa esfera celeste. Mesmo assim a Astrologia se adaptou, foi proposto que a determinação das características em cada período se dava devido a posição do planeta numa certa zona, que sofreria um certo campo eletromagnético específico. Mas nada foi comprovado. Porém, muitas peculiaridades da Astrologia ainda desafiavam a compreensão científica, e devem desafiar até hoje lá na antiga Terra. Eu acho muito interessante porque foi a primeira forma de Psicologia, definindo perfis psíquicos com desenvoltura, mas porque eles eram associados aos astros... Isso é inexplicável.

- Nunca tinha ouvido sobre isso... Dessa forma. - Disse Luri, embora já houvesse captado muitas transmissões que tocavam em temas parecidos.

- Porque para as pessoas que saíram da Terra perde o sentido. Aqui os astros são totalmente diferentes, e nós nunca nem demos nomes a nossas constelações. - Respondeu Ange olhando para o céu, embora tivesse ficado a pensar se talvez alguns primitivos da velha Terra não tivessem um dom similar ao de Luri, para ouvir os astros.

- Constelação... - Murmurou Luri. - Signos...

- Vamos ver... - Ange se aproximou de Luri e apontou uma estrela no céu. - Acompanhe meu dedo nesta... Nesta aqui... - E foi desenhando no ar um traçado, interligando estrelas até um total de nove. - E finalmente a pontinha da cauda. Vamos dizer que ele está com a cabecinha virada e aquelas estrelas são as pontinhas das orelhas. Pronto! Temos a constelação do Gato!

Luri parecia uma criança fascinada, mas Ange não ficaria atrás. Ele acenou para que ela prestasse atenção a seu receptor, então ele apontou a primeira estrela da constelação do gato, e Ange a ouviu. Então apontou a segunda, e os sons se fundiram num harmonia. Então adicionou a terceira estrela produzindo uma dissonância, e assim foi, uma por uma até por fim 9 sons simultâneos produzirem um acorde exótico e encantador. Era o som da constelação do gato. Os astros falando. E por incrível que pareça, lembrava um miado!

Ange teve vontade de chorar, achou lindo.

Depois Luri começou a brincar com as estrelas. - Agora a constelação da Serpente. - E foi adicionando estrelas num total de 8, que pareciam de fato desenhar uma silhueta ofídia.

Ange ouviu a nova harmonia, mais refinada que a primeira, com uma fascinação que superou a de Luri, que ia inventando novas constelações e adicionando sons sobre sons, apontando as estrelas do céu, harmonia sobre harmonia, até selecionar as mais melódicas.

Era um maestro celestial, regendo a orquestra dos astros.

Horas depois eles voltavam. Ange ainda estava boquiaberta com a maneira como Luri abriu parte de seu mundo a ela, e com a beleza que juntos puderam contemplar. Ela lhe perguntou se ele já havia mostrado aquilo a alguém, ele negou. Ela questionou e ele disse que ninguém entenderia, e que nunca ele se sentira a vontade de contar aquilo para alguém, nem mesmo para seus irmãos.

Nos dias que se seguiram Luri foi ficando cada vez mais desinibido, já falava com frequência. Numa noite, tomou Ange pela cintura e a levou para sobrevoar a cidade. O frio da altitude era neutralizado pelo calor que ele gerava no próprio corpo para aquecê-la, o que a fazia se agarrar a ele num delicioso abraço.

Certa vez ela nem precisou ir até a casa dele. Quando estava prestes a sair ele surgiu na janela dela, e a levou. Passearam muito, dentro e fora da cidade. Foram vistos juntos e boatos começaram a se espalhar, e pela primeira vez Luri não só ouviu como gostava de ouvi-los.

Mas Ange entrava num dilema. Era uma mulher madura, segura de si, pretensa dona de seus sentimentos, mas não havia como não se balançar numa situação como aquelas. Luri era muito bonito, encantador, e agora sua timidez parecia ter desaparecido, estava seguro de si, imponente, parecia até maior. E de certa forma era um semi-deus.

Ele estava sendo apenas ele mesmo, mas como nunca antes, e era inegável que estava extremamente feliz. Revelou coisas que nunca dissera a ninguém e que tocavam fundo nos pensamentos e nos sentimentos de Ange.

Como era possível que alguém tão fascinante, divino e encantador como Luri estivesse escondido do mundo?

E com isso ela sentia perder o controle da situação, sentia cada vez mais deixar de ser uma psicanalista profissional e se tornar primeiro uma amiga, e pouco a pouco algo mais.

Mas a Intencionalidade, por si só, pressupõe uma entidade com poder de decisão autônomo. Por isso uma máquina não a possui, obedecendo apenas aos programas pré-determinados que recebe, ou reagindo de acordo com sorteios randômicos. A própria idéia de mente, pressupondo intenção, afirma o livre-arbítrio de uma vontade soberana, ainda que sob certas condições.
ALGO SUSPEITO NO AR

O espaço não era de fato o melhor ambiente dos 4 super seres. Ainda que eles pudessem sobreviver por tempo indefinido nele, desde que pudessem aspirar algum silicato. Mesmo que pudessem se mover livremente e não dependessem do som para se comunicarem.

No espaço sua velocidade máxima era facilmente superada pela de muitas naves grandes. Já na atmosfera porém, não existia até agora artefato capaz de se mover com a mesma desenvoltura, não exatamente em velocidade final mas sobretudo em manobrabilidade.

Pensando nisso Hane respirou com alívio o ar do planeta assim que atingiu uma altitude apropriada, descendo do vácuo sideral onde ele e Luri acabavam de fazer outra ronda.

Os super sensores de Luri nada haviam detectado de anormal a não ser um ou outra emissão radioativa que poderia ou não ter sido deixada por uma nave Ian. Mas apesar da importância da situação Hane estava no momento capturado pelo novo comportamento de Luri. Algo que ele não se lembrava de ter visto antes.

Desde o começo do dia Luri o recebera com um sorriso inédito, que permaneceu vivo durante todo o tempo. Ele falara mais de 10 frases, um recorde absoluto! Diante de tanta curiosidade acumulada, agora que o trabalho acabara, Hane arriscou. - Parece que a terapia está indo bem não?

Luri ficou em silêncio, mas porque seu sorriso se alargou e ele quase não conteve uma discreta risada. Hane achou melhor não forçar nada no momento. Pousaram numa das torres da Quinta Cidade, a mais sofisticada em sistemas de rastreamento radiotransmissor.

Entraram na sala de Conferências e logo se comunicaram com cientistas e administradores planetários. - Novidades? - Perguntou um dos integrantes do Triunvirato.

- Nada digno de nota. - Respondeu Hane. - Mas temos encontrado cada vez mais sinais radiônicos como estes. - Apontou para Luri e este reproduziu uma onda que foi captada pelos computadores.

- Interessante. - Disse uma cientista. - Mas ainda é pouco, a não ser que consigamos ver algum padrão.

- Até agora nenhum. - Respondeu outro cientista.

- Mas de qualquer modo estamos trabalhando arduamente na Defesa. - Falou o Triunvirante. - Em breve nossos robôs de combate e novos canhões de longo alcance estarão operacionais de novo. Devo confessar que fomos imprudentes em desativá-los por mais dispendiosos que fossem.

Era fato, pois os canhões poderiam destruir aqueles asteróides com mais antecedência que os heróis. Porém seus custos de manutenção eram tão exorbitantes que pareciam não ser justificáveis. Apenas para que um deles ficasse de prontidão, com os emissores nucleares calibrados e prontos para disparar, consumia-se energia suficiente para manter toda uma das 5 cidades por quase uma semana. Os heróis por outro lado, apesar de seu tremendo custo de produção, não implicavam em manutenção. Eram baratos.

- Sugiro reforçarmos os reconhecimentos nos planetas Jovianos. Especialmente Orizon 7 que em breve estará próximo. - Disse Hane enquanto olhava discretamente para o olhar quase faceiro de Luri.

- Já está sendo feito. - Respondeu um dos secretários da Defesa Planetária. - Pretendemos soltar várias bombas de fusão nas superfícies de Orizon 6 e 7 dentro de alguns dias. Se houver sondas ians, serão destruídas, se houver algo mais, terá que se revelar.

- Ótimo. - Concluiu Hane. - Amanhã vamos verificar do outro lado do sol. Onde estão Doni e Seki?

- Acabam de retornar do Cinturão 4-5. O vasculharam completamente. Tudo em ordem. - Respondeu um dos astrônomos.

- Muito bom. - Admitiu Hane. - Quando voltarão ao 5-6?

- Já o fizeram. Hoje mesmo. Cobriram tudo e nada há de anormal.

Hane ficou curioso. Os rapazes estavam trabalhando como nunca. O que será que havia acontecido?

Pouco depois eles saíam do prédio, Luri tomou o rumo de sua casa mas Hane ainda queria verificar algumas instalações fora da cidade, adiando a contra gosto uma entrevista pessoal com Ange, para que pudesse perguntar o que afinal ela tinha feito de tão bom para seu irmão.

Ao mesmo tempo Seki e Doni confabulavam em um dos laboratórios pouco frequentados do Instituto de Ciências.

- Detesto ter que mentir! - Dizia Doni. - Mais de 30 emissões destas são sem dúvida algo muito diferente do “tudo normal” que você colocou no relatório!

- Fica frio. Eu sei o que tô fazendo. - Respondeu Seki enquanto manipulava um dispositivo. - Olha só aqui. Veja a leitura. É isso! Descobrimos uma progressão. E tão evidente que mal posso crer que ninguém tenha visto antes.

- A gente precisava do Luri!

- É! Mas ele não desgruda do Hane!

- E também daquela psicóloga. Acha que está rolando alguma coisa?

- Entre ele e a Ange?

- Claro seu imbecil! Acha que perguntaria isso dele e do Hane?!

- Ei Doni! Não precisa ficar nervosinho não tá?!

- Ah... Desculpa. É que essa situação me deix...

- Achei!!! É isso! Agora podemos prever as frequências dessas malditas sondas invisíveis. Vamos pegar as bandidas!

- Legal! Quando começamos!?

- Amanhã mesmo. Voltaremos ao cinturão 5-6 com sensores calibrados com essas frequências. Se houver algo lá nós... Ei!!!

- O quê?!

- Mas... - Seki engoliu em seco. - Será possível? Estou pegando um sinal agora!

- Onde!?

- Perto, aqui mesmo no planeta!!!

Em menos de um minuto eles já estavam a 20 mil metros de altitude rasgando a atmosfera rumo ao sinal que detectaram.

- “Não posso crer que uma praga destas esteja tão perto!” - Disse Seki através de telecomunicação enquanto olhava no sensor que acusava a presença da sonda sobrevoando o mar entre a Primeira e Segunda cidades.

Na noite de Orizon, eles eram como meteoros verdes subindo a mais de 1.250 m/s. Não demoraram a se aproximar da sonda que logo aumentou a velocidade, porém com aquela emissão radiônica discreta ela não poderia ir muito longe.

- “Lá está ela!” - Disse Doni, detectando a sonda com seus sensores eletromagnéticos. - “Não vai escapar”.

Quando restava menos de 5 kms para eles alcançarem a sonda ela simplesmente se desintegrou numa explosão pequena.

- “Droga!!!” - Indignou-se Seki. - “Devíamos ter atirado logo, pelo menos sobraria mais do que numa auto destruição”.

Chegaram ao local onde quase nenhum vestígio restava da sonda. Por pura sorte Doni conseguiu um pequeno pedaço. Um plástico tão transparente que era quase invisível, leve como uma pluma, e que pouco a pouco foi se desfazendo em suas mãos.

Mas não fora em vão. Eles tiveram contato visual e tátil com o objeto. Seria muitíssimo mais fácil agora encontrá-los. Nisso fizeram um enorme progresso.

A questão toda era, como perguntava Seki, o que aquela bandida sonda de comunicação estava fazendo no planeta?!

Há, então, essa teoria filosófica. Se o ser humano tem mente, tem intencionalidade, e assim, tem liberdade. Curiosamente, há quem negue a existência de liberdade, livre-arbítrio, mesmo sem negar a idéia de mente e intencionalidade. Se isso parece pouco, há quem negue a existência de mentes, o que, de certa forma, é negar a si próprio como um ser humano pleno, intencional e livre.
ONDE NINGUÉM ESTEVE ANTES

Após triar suas anotações Ange decidiu acessar registros antigos da velha Terra e suas primeiras colônias extra estelares. Ela precisava examinar melhor referências sobre tratamentos psicológicos de Super Humanos. Isolou informações sobre humanos silicônicos artificiais mas não eram exatamente do que ela precisava. Teriam que ser super seres de altíssimo nível, e descobriu que só mesmo os antigos Hiper Metanaturais da Terra, os Anjos Estelares de DAMIATE, eram equivalentes ou mais provavelmente superiores.

“Apesar de inicialmente humanos normais os Anjos muito provavelmente eram até mais poderosos que os RYs...” Ela parou para refletir no uso deste termo técnico para os rapazes.

Andróides Foto silicônicos RY! Era a expressão técnica mais comum que surgia nos registros científicos que se referiam a eles. Ela sentia uma ponta de indignação toda vez que via esses termos tão duros para se referir ao que para ela eram sem sombra de dúvida seres humanos. RY-1, RY-2 e etc ofendiam sua sensibilidade.

Era certo que muitos dos cientistas, principalmente os envolvidos diretamente no projeto que agora ela chamava de RY, não acreditavam que os rapazes fossem mais que simulacros antro psíquicos perfeitos. Alguns os consideravam desprovidos de qualquer natureza consciencial autêntica. Eram autômatos, programados para agir de tal ou qual forma.

Quando ao discutir com um dos físicos Ange se referiu ao fato que Hane violara os inibidores de comportamento ao agarrar Erika pelo pescoço, fato lamentável em si mas que alegrou a terapeuta por lhe dar esperanças de que eles afinal não eram tão submissos ao programas de comportamento, houve quem respondesse que é de se esperar falhas de funcionamento em máquinas demasiado complexas, ou que Hane sabia muito bem que não estava ferindo a moça.

Mas Ange era idealista, sensível e humanitária, e suas convicções intuitivas eram mais fortes que qualquer argumento científico. Ela se tornara amiga dos rapazes, e ultimamente corria o risco de até passar dos limites com Luri.

- “Ah... Luri. Eu não devia ter subestimado os riscos.”

Como psicoterapeuta não fora a primeira vez que um de seus pacientes tentava envolvê-la, e ela era experiente em contornar a situação com sensibilidade e eficiência. Mas uma coisa era resistir às investidas de intelectuais, poetas, esportistas, músicos e etc, que usavam suas habilidades humanas como armas de conquista. Porém sofrer tentativas de sedução, ainda que ingênuas, por parte de um ser que brincava com as leis da natureza tal qual um deus, não era, definitivamente, a mesma coisa!

Que mulher resistia ao encantos dos antigos Anjos Estelares da Terra? Ainda que eles jamais tivessem qualquer comportamento insinuante e se postassem de modo absolutamente sério e reservado?

- “Luri, Luri... Vá com calma garoto... Que estou dizendo?! Eu é que tenho que me controlar!!!”

Finalmente achou algo mais adequado a sua pesquisa. O tratamento psicológico de um dos Anjos que se fechara a qualquer envolvimento amoroso após um evento realmente traumatizante.

Embora fossem fisicamente humanos os Anjos Estelares tinham seus poderes quase sempre ativados, o que os tornava praticamente invulneráveis. Seus inimigos não tinham muitas opções para tentar eliminá-los, por isso, durante anos, treinaram mulheres muito sedutoras e hábeis em iludir os mais astutos homens, objetivando envolvê-los e matá-los no único momento em que eram totalmente vulneráveis. O momento do sono, pois mesmo no êxtase sexual sua super vitalidade reagiria instantaneamente caso sofressem alguma lesão séria. E eles só dormiam dentro das fortalezas inexpugnáveis das bases militares de DAMIATE, com todo o mais avançado aparato de segurança possível.

Dois Anjos foram mortos por essas prostitutas assassinas, que foram imediatamente capturadas mas deixaram o estrago feito. Já este Anjo em especial, cujo nome código era Eridani, tivera um envolvimento de 8 meses com a assassina, que fora tão hábil que enganara o próprio DAMIATE, cuja fama, e muitos registros históricos sérios, atribuíam poderes intuitivos quase divinos.

Numa dada ocasião ela recebera a instrução para executar sua missão. Segundo o relato, muitos acreditavam que ela chegara de fato a amar Eridani, e que se arrependera logo após o ato, suicidando por pensar ter tido sucesso. Outros advogavam que ela se matou apenas temendo vinganças pessoais de amigos do Anjo, e porque era evidente que não teria como escapar. Mas Eridani milagrosamente sobreviveu após um corte no pescoço, que dilacerou mais de 80% da veia jugular. Sua super vitalidade conseguiu impedir o colapso e logo seus irmãos, os demais Anjos, descarregando doses intensas da misteriosa Força Vital, conseguiram regenerá-lo.

Após isso Eridani perdeu completamente o ânimo. Mal era capaz de desempenhar suas obrigações. Diversos psicólogos e amigos tentaram ajudá-lo a retomar sua vida afetiva, mas ele julgava impossível.

Ange selecionara apenas parte dos artigos, pois eram imensos. E logo de início notou um problema. Todos os terapeutas que o abordaram foram homens. Ela vasculhou e vasculhou e não achou um só caso que tivesse remota semelhança com o que ela vivia agora.

Então achou um registro sobre um tratamento de um Super Metanatural na antiga colônia Vega. Embora o paciente não tivesse o nível de poder equivalente ao de Luri, era um super humano de perfil muito similar, e sua terapeuta uma mulher, e eles tiveram um romance! Era isso!

Mas não. Então percebeu que a cultura da colônia era radicalmente diferente. Tratava-se de um ramo exótico da psicoterapia que invertia a objetividade do tratamento, não só permitindo mas exigindo que analisante e analisando se envolvessem afetivamente, mas ao mesmo tempo mantivessem um procedimento profissional.

Ela estudara isso, e se surpreendia que até se esquecera. Mesmo porque as escolas de psicoterapia que vieram para Orizon eram avessas a essa prática, na qual as terapeutas eram quase como cortesãs psicólogas, que surpreendentemente conseguiam resultados notáveis, ainda que elas próprias fossem parte do Sintetizador Psíquico, o “remédio”, utilizado.

Não raro algumas delas dedicavam o resto da vida ao mesmo paciente numa relação sem paralelo em quase todas as outras culturas descendentes das terrestres.

- “Luri... O que eu faço com você?”

E de seus pensamentos ela passou a falar em voz alta. - Luri... O que posso fazer?

- O que você quiser. - Respondeu a voz às suas costas. Ela se virou surpreendida e se deparou com Luri, de “pé”, flutuando atrás dela.

- Luri! - Ela se levantou de súbito, inicialmente incomodada com aquela invasão de privacidade pois costumava ser exigente com certos procedimentos. Ainda que a janela estivesse aberta ela esperaria que ele anunciasse sua chegada.

- Luri! Por que fez isso?! - Ela perguntou indignada, mas Luri se limitou a diminuir o sorriso, numa expressão de surpresa e breve arrependimento. Só então Ange percebeu que o modo como ele falara era inédito, com uma sensualidade que ela mal concebera até então.

- Desculpe. - Disse ele. - Eu... Ia...

Ele então voltou a se expressar apenas facialmente dando a entender que pretendia se anunciar. - Mas eu te vi... - E tinha ficado fascinado.

Ange surpreendeu-se quando notou que ela estava na verdade tentando simular uma indignação. Na verdade a situação a excitava, ela estava deslumbrada. “Oh não!” Pensou consigo.

- Luri... Eu...

Mas quando ela falava ele a tomou pela mão, e a total falta de peso a fez flutuar, acompanhada de um formigamento embriagante no corpo. Luri a conduziu até a janela onde o sol vermelho se punha num espetáculo escarlate incomum naquela época do ano.

- Música. - Disse ele. - Diferente. - Apontou para o sol. - Hoje Orizon está feliz. Eu também.

Ela não conseguia resistir. Tentou lutar contra o fascínio mas não conseguiu. Será que o simples fato de estar ali, flutuando centenas de metros acima da cidade vendo um céu magnífico, ao lado de um dos super seres do planeta, era suficiente para neutralizar completamente sua razão e bom senso? Por que ela não conseguia reagir?

Ele a levou lentamente até a praia. Onde pousaram sobre a areia. Ela nunca sequer contara a ele que adorava caminhar descalça nas areias recém cultivadas da praias próximas onde morava.

Ange se sentia fora de si. Dominada por sentimentos que há muito não possuía. Luri a fitou nos olhos e lhe disse algo que mesmo com tudo isso ela ainda não esperava ouvir. - Eu te amo.

E então ele a levou novamente para o alto, e em frente, sobre os mares ácidos rumo a um recife. Lá chegando ela se surpreendeu ao ver seu rosto cuidadosamente esculpido na pedra, num monumento de mais de 30m de área e que ninguém da cidade podia ver. Era como uma oferenda secreta. Um presente para ela.

Voaram pelo céu até anoitecer. Luri emanava calor suficiente para aquecê-la e mantê-la confortável. Por fim ele voltou ao apartamento dela e a deixou se despedindo com um lindo sorriso e depois sumindo na noite estrelada.

Durante todo o tempo ela falara menos do que ele, de tão desorientada que estava, e agora, de volta a sua sala de estudos, lentamente voltava à realidade.

Nani deixara uma mensagem, queria falar com ela sobre o andamento do trabalho. - Deusa! O que vou dizer ao Nani?!

Mas havia outra mensagem, sem conteúdo mas cujo o simples remetente fez seu sangue gelar. Era de Lence. Seu namorado.

- Lence... Oh não meu querido Lence. O que estou fazendo?

E subitamente a angústia veio à tona. Percebeu que simplesmente se esquecera de Lence naqueles últimos dias. Se esquecera do homem para o qual ela se dedicara nos últimos anos. Se sentiu como despertando de um sonho improvável, onde Luri parecia um simples delírio.

Então o sentimento paradoxal que antes a fazia se sentir aliviada por ter a certeza, mais do que nunca, de que amava Lence, mas ao mesmo tempo sofria por Luri, se tornou quase insuportável. Quando ela finalmente entendeu que de um modo ou de outro, ambos, Lence e Luri, possuíam seus sentimentos agora.

Percebeu subitamente que um não excluía o outro, pois Lence era um homem maduro, inteligente, que tinha com ela uma reação em parte paternal, por outro lado Luri era em parte filial. Ambos a encantavam como cavaleiros cortejantes, mas o sentimento de filha que tinha com um, e mãe que tinha com o outro, os tornavam experiências únicas e diferentes.

Aquilo estava confuso demais. Ela atingira dois lugares nunca antes obtidos por ninguém em Orizon. A de primeira terapeuta a conseguir resultados positivos em Luri, e a de primeira mulher a envolvê-lo. Ainda que ambos num só. Ainda que como uma cortesã psicóloga.

Conseguira duas façanhas invejáveis, mas agora, percebia mais do que nunca, e complexa enrascada em que se metera.

Ocorre também que Intencionalidade ganhou diversos outros significados, inclusive distanciando-a de sua raiz original "intenção". É consenso, porém, que trata-se de direcionalidade a algo, algo este que seria exclusivo das mentes, e ausente nas máquinas. O que difere as mentes das não mentes, afirma a autonomia do agente inteligente, e dá sentido ao mundo, senão a vontade?
FINALMENTE

Difícil foi inventar um estória semi realista para Nani, quando este, no dia seguinte, a recebeu em sua sala pessoalmente. Demonstrava uma curiosa empolgação ao deduzir que Ange parecia estar recolhendo um material excelente.

- Mas devemos ir com calma. - Disse a psicóloga. - Eu ainda quero reunir mais informações para argumentar incisivamente que eles são seres senscientes! Que os inibidores de comportamento não são suficientes para anular-lhes uma vontade legítima. Noto agora que este talvez seja o elemento mais importante deste trabalho. - Terminou, embora sem muita convicção.

- Eu sei minha querida. Mas não posso deixar de me empolgar com o que já conseguiu. Os outros sempre foram acessíveis, mas o RY-3... Quero dizer, o Luri!? Vejo que suas sessões com ele estão cada vez mais longas e não há como não notar que ele está muito melhor. Um de meus ex-colegas conversou longamente com o Hane, e ele está entusiasmado com o novo estado psicológico do RY... Do Luri. - Terminou o professor observando pela primeira vez que era mais fácil chamar pelo nome os outros super seres.

Ange sofria uma ligeira tortura mental, por um lado achava que devia contar tudo a Nani e ver se ele poderia ajudá-la, por outro lado pensava em tentar resolver a situação sozinha. Talvez canalizar o entusiasmo de Luri para uma outra mulher. Nani apenas divagava.

- Há muito tempo não vejo nada tão empolgante! Veja, quando criamos os RYs e até pouco depois da guerra, havia muito interesse na pesquisa de consciência, mesmo porque muitos ainda tentavam entender o comportamento dos Ians. Depois tudo foi esquecido. Acho que...

Ange notou algo estranho. - Acha que entender os rapazes pode ajudar a entender os Ians?! - Perguntou espantada. - E por que não?! - Respondeu o animado orientador.

- Tenho a convicção de que jamais teria havido uma guerra caso tivéssemos mais conhecimento sobre Psicologia e Consciências diferentes das nossas, o que algumas colônias tem muito. Mas os departamentos de Inteligência... Se é que podemos chamar isso de Inteligência! Nunca incentivaram a proposta.

Nani se aproximou dela com uma expressão diferente, como prestes a dizer algo que não se costuma dizer para qualquer pessoa. - Poderíamos viver em paz com os Ians. Eu tenho certeza. Na verdade, no meu antigo projeto... - Fez um pausa e ficou em dúvida se continuava ou não. - Eu tinha intenção até mesmo de violar algumas diretrizes de segurança e arriscar um contato mais direto. Na verdade... No final da guerra, eu tenho certeza, os Ians concordariam em tentar se comunicar, talvez até se render. Mas não! - Interrompeu bruscamente com ligeira ira. - Os chefes só pensavam em exterminá-los!

- Por via das dúvidas. - Disse Ange. - Não se vacila com a própria existência.

- Eu sei. - Concordou Nani desanimado. - Mas eu arriscaria. Eu acho que talvez poder...

- Nani! - Interrompeu bruscamente Ange quando percebeu que o tempo todo ela tentava fugir de suas próprias tormentas mentais. - Eu tenho que dizer algo!

O orientador ficou curioso, e numa certa expectativa. Perceptivo como era, se adiantou devido ao silêncio constrangido da moça.

- Minha cara... Não me esconda nada por favor. Seja o que for, acho que já somos amigos o suficiente para confiar um no outro não?

Então Ange engoliu em seco e contou. Contou tudo sobre seus momentos pessoais e não muito objetivos com o Hiper Metanatural, e Nani ouviu com muito atenção e expressão receptiva e amável.

Após finalizar dizendo que amava Lence, e que não sabia mais o que fazer, começou a chorar, e Nani acariciou-lhe a cabeça.

- Bem minha querida... Acho que temos uma situação inédita aqui, e eu nem sei muito o que fazer... Mas... Seria extremamente lamentável que você abandonasse este projeto e sinceramente não creio que agora outra pessoa possa assumi-lo.

Falou então sobre casos similares que podia lembrar e tocou até mesmo no assunto das cortesãs psicólogas, então, após refletir bastante, decidiu arriscar.

- Sabe. Me impressiona que existam pessoas com esse curioso ideal monogâmico do velho cristianismo terrestre. A liberação sexual só trouxe avanços na maioria das sociedades. Sinceramente acho que... Se você abandonasse tudo por uma... Uma ilusão de que monogamia faça algum sentido... Seria abrir mão de uma das mais promissoras pesquisas científicas em prol de uma inexplicável conduta arcaica que... Não tem qualquer aplicação em nossa sociedade! -

Terminou a frase com uma certa repreensão. Sabia o que dizia. Orizon estava longe de ter uma cultura que prezasse a monogamia institucionalizada, e quando esta ocorria era sempre de livre e espontânea vontade.

- Além disso, pelo pouco que sei de Lence, ele é um homem inteligente e compreensivo... - Então Nani fez uma pausa dramática, e num fôlego tomou coragem.

- Minha cara... Não desista. Se tiver que ir além nesse relacionamento vá! Eu não acredito que isso sele um compromisso perpétuo entre você e o Metanatural. Tenho certeza de que é apenas uma novidade para ele, e que depois, ele vai se abrir mais, e procurar novas experiências. Mas se você desistir agora, eu não sei que tipo de dano esta rejeição pode causar no rapaz. Pense nisso.

Horas depois Ange voava para casa por sobre o mar para rever a escultura de pedras em sua homenagem, emocionada, circulava sobre o recife sem prestar atenção nem pensar em mais nada, somente no que Nani dissera.

Ela já tivera vários relacionamentos abertos antes, Lence também, pois isso era o mais comum em Orizon, quando assumiu um certa fidelidade com seu atual namorado, fora apenas porque ambos não tiveram olhos para outros. Mas ela sabia que um caso temporário com Luri não punha em risco seu futuro com Lence. Sua preocupação era de que o caso não fosse temporário.

De repente, a música que tocava no interior de seu pequeno aero carro silenciou, e então todos os dispositivos pararam de funcionar, mas o carro passou a se mover num outra direção acelerando suave e constantemente até superar sua velocidade máxima.

Era Luri, que a levava rumo a sua casa, não tão longe dali. Meio sem saber o que pensar, ela teve seus sentimentos interrompidos por uma música que de repente surgiu no interior do veículo. E ouviu, pelo rádio, a voz de Luri.

- “Eu consegui! Achei a constelação de Ange! Achei sua música!”

E então veio uma música linda, que começava com o típico som de estrelas e então evoluía para timbres mais suaves, numa sequência harmônica simples e encantadora, pontuada por uma doce melodia.

Minutos depois sua nave pousava no quintal do Hiper Metanatural, ela saltou do veículo e não sabia o que dizer, apenas olhava para Luri abobalhada, desta vez sem nem se preocupar se parecia uma pré adolescente.

Ele mostrou o céu noturno cujas estrelas despontavam, e foi “ligando” uma a uma, com raios luminosos que riscavam os céus, e desenhou sutilmente formas femininas e disse a ela. - Você... Nos céus.

Ela ainda caminhou tentando se orientar no turbilhão de sentimentos que possuía, se aproximou da porta da casa, e então se virou para Luri, que a seguia como que hipnotizado.

E então agiu, agarrou Luri e o beijou, e finalmente comprovou o quão eficiente era a simulação orgânica silicônica, pois era impossível diferenciar da carne humana normal, e no momento, parecia ainda mais doce e saborosa.

Luri não sabia beijar, era evidente, mas não demorou a pegar o jeito a medida que foram se tocando e se sugando com cada vez maior intensidade. Então ele a tomou nos braços, e flutuou para o interior da casa. E no ar, eles se amavam como ela nunca havia experimentando antes, e curiosamente, como numa espécie de convite, os gatos que dormiam na cama de uma das salas se retiraram, e quase que instintivamente Luri a Ange se deitaram, sem nenhuma outra sensação que não a pura magia do amor.

E aconteceu.

Ange chegou onde Erika antes pretendera, e isso seria suficiente para despertar a inveja de milhões de moças no planeta, embora ela nunca o tivesse intencionado.

E Luri, viveu como jamais esperava sua nova experiência, e mais uma vez a espetacular engenharia bio fotônica de Orizon viria a se revelar brilhante, pois todo o seu corpo funcionou com perfeição.

E ele brilhou no momento de êxtase.

Livre Arbítrio. Liberdade. Vontade. Intencionalidade. Essas palavras estão relacionadas. Embora nem sempre clara, há também uma ligação entre Intencionalidade e Teleologia, que é a 'Finalidade' que se pretende atingir. Assim, a intencionalidade pressupões finalidade, e só pode ter um fim aquele que possui uma vontade. Essa vontade é o núcleo da mente, é o agir, pretender. O Verbo.
MAUS PRESSÁGIOS

- “Não dá pra trabalhar com ele hoje!” - Telecomunicou Hane ao conselho de cientistas em Orizon, enquanto contemplava a imensidão de Orizon 7, um imenso mar gasoso amarelado. Se referia a Luri, que voava como uma libélula graciosa dando rasantes na superfície nebulosa do gigante joviano.

- “Ele não consegue se concentrar em nada! Parece um guri apaixonado que...” - Hane se interrompeu e seguiu atrás do irmão. - “Luri! Volta aqui!” - E um raio azul circulou Hane antes de se deter a sua frente na forma do sorridente rapaz que realmente tentava se prontificar.

- “Captou alguma coisa?” - Perguntou Hane, e Luri apenas balançou a cabeça quase gargalhando. - “Então vamos em frente.” - Disse Hane enquanto acelerava rumo a outra área pré selecionada do imenso planeta gasoso. Luri disparou na frente, mergulhou nas nuvens e sumiu.

Hane também submergiu no oceano de gás amarelado. Alertou Luri sobre o que iria fazer e então numa súbita liberação de energia fez o hidrogênio explodir dezenas de kms para o interior do planeta. Um verdadeiro caos nuclear ocorreu, e pareceria a um hipotético observador natural externo que uma nova estrela iria brotar do planeta, mas depois tudo voltava ao normal, e Hane prestava atenção para verificar se notava alguma atividade suspeita nas profundezas do planeta gasoso.

Era como procurar um grão de arroz numa montanha de açúcar. Embora fosse um procedimento que costumasse dar algum resultado, somente a sorte permitiria que, caso lá houvesse, eles descobrissem alguma coisa com aquele método. Não raro os Ians preferiam deixar suas naves escondidas serem destruídas do que revelar o esconderijo.

Então subiu novamente para o espaço e encontrou Luri que imediatamente e ainda sorrindo, lhe transmitiu uma imagem que pôde ser captada em seu visor, onde representou que havia 3 naves Ians escondidas mas que foram destruídas na explosão que Hane deflagrara. Luri o descobriu rastreando as emissões radioativas residuais da explosão e ainda acrescentou que elas já estavam inoperantes desde o tempo da guerra, provavelmente um refugo da última grande batalha.

Hane pensou que mesmo sem se concentrar Luri ainda podia rastrear quase qualquer coisa e dificilmente deixaria escapar algo significativo. Dando-se por satisfeito chamou-o de volta para a nave que disparou rumo a Orizon numa aceleração que mataria instantaneamente um humano normal.

Mais tarde numa sala de reuniões se juntaram com Seki e Doni e vários cientistas para discutir o trabalho. - A não ser que sejam iscas, não creio que haja grandes naves Ians em Orizon 6. - Disse Seki.

- Ainda assim lançaremos mais algumas bombas. - Respondeu um dos dirigentes da Defesa Planetária. E outro completou. - Se há alguma movimentação Ian, é algo inédito. Não detectamos nada realmente suspeito.

- Temos que assumir que até agora não temos uma explicação convincente para o que aconteceu naquele dia. O quê e como lançou aquele asteróide cheio de urânio em nossa direção! - Disse o chefe da Defesa Planetária. - E isso está me deixando muito nervoso. Nenhum sinal claro, nenhum indício que faça sentido. Só essas emissões radiônicas que não dizem nada! Só O Mau Sinal! Um mau pressentimento.

- É... - Disse Seki num incrível cinismo. - Mas eu acho que ainda vamos descobrir... Eu tenho... Palpites.

Todos o olharam como se ele fosse contar alguma novidade, mas nada disse, apesar de Hane o ter observado por bastante tempo, já querendo desconfiar de que ele escondesse alguma coisa.

Uma das cientistas, de olho em todos os detalhes do que os pesquisadores vinham fazendo e relatando, indagou. - Senhor Doni e Senhor Seki, vejo aqui que estiveram em contato particular com alguns cientistas fazendo investigações diversas embora não tenham relatado nada! Estão com alguma pesquisa pessoal em andamento?

Houve uma certa confusão, o Chefe da Defesa e uma das Ministras de Ciência se aborreceram um pouco com o fato de Seki e Doni estarem fazendo investigações por conta própria. Um breve burburinho se iniciou e Doni quase entregava tudo em seu estado de intensa frustração.

- Calma! Calma! Eu vou relatar! É que são só palpites! Só isso! - Disse Seki com seu sempre hábil carisma.

- Não interessa! Senhor Seki! Deve notificar todas as atividades! - Exigiu o Chefe da Defesa. - Está bem! Está bem! Vamos notificar! - Reagiu o rapaz, e logo depois a reunião foi encerrada.

Já em pleno vôo, Hane procurava pensar que Seki tinha algum plano bobo em mente, do tipo descobrir sozinho alguma coisa para depois se vangloriar, e teria pensado mais um pouco se de repente não fosse capturado por outra preocupação ao ver Luri cantando uma canção de amor cujo nome lembrava “Ange”. Desconfiado há algum tempo, se aproximou e emparelhou com amigo para perguntar.

- Luri! O que está havendo entre você e a Ange?

Um sorriso exagerado foi a resposta, mas logo em seguida Luri se preocupou. - Por quê?! Qual o problema?

- Nenhum problema! Só me diga o que vocês tem feito juntos.

- Eu... Nasci.

- O quê?!

- Nasci! Estou vivo!

- ???

- Nunca tinha vivido antes.

- Está apaixonado?

- Estou? Não sei. Nunca vivi isso antes! Você poderia me dizer.

- Sim. Desde que me contasse tudo.

Então Luri desceu, acelerou e seguiu por uma das praias da Primeira Cidade sendo seguido por Hane, então desviaram e chegaram no recife onde ele esculpira o rosto de Ange. - Veja... Minha amada.

Hane ficou um tempo olhando, boquiaberto. - Você fez isso?

Luri apenas confirmou com a cabeça. Pousaram e se sentaram nas pedras, e conversaram longamente, e na medida do possível, Luri contou quase tudo. Ao final Hane não estava exatamente feliz.

- Luri... Sei que é novo para você e que deve estar sendo... Muito emocionante. Mas Ange é sua terapeuta! Você não devia se envolver com ela. Além do mais ela é compromissada.

Luri arregalou os olhos.

Quase do outro lado do planeta Seki e Doni voavam tão baixo que deixavam trilhas de espuma na superfície do mar, que refletia a nebulosa celeste rosada. - Seki! Você ficou de me convencer de que valia a pena esconder nossas descobertas por mais algum tempo!

- Fica calmo.

- Calmo... Claro! Afinal só temos que detectar o indetectável para enfrentar o intangível sem ter que dizer o indizível.

- Doni... Se você canalizasse toda a energia que gasta com reclamações poderia disparar um raio que partiria Orizon no meio!

- Ou aniquilaria um asteróide que algum cretino lançou contra um planeta com cinquenta milhões de habitantes!

Seki resmungou alguma coisa mas depois se calou, mais preocupado em tentar sentir novamente um certo sinal que pensara ter detectado antes. Apesar de escuro o céu estava bastante limpo, com poucas nuvens e radiado de estrelas, o ponto mais escuro era o horizonte, o que o facilitou notar algo que parecia aquilo que procurava.

- Ali! Percebeu?!

- Sim. Parece mesmo. Desta vez vamos pegar.

- Diminua o sinal. Vamos tentar cercá-lo.

- Tenho uma idéia.

Disse a Seki para diminuir de velocidade suavemente e manter o curso ao invés de se dirigir para o alvo, e enquanto isso, reduzindo bastante a velocidade, mergulhou na água ácida do mar, acelerando logo em seguida.

Como um discreto torpedo seguiu rumo à sonda robô sutil confiando que por baixo da água poderia se aproximar bem mais antes de ser descoberto. Ao mesmo tempo Seki fingia ignorar o robô, baixava seus sinais ao máximo ao mesmo tempo que se preparava para disparar um raio neutralizador.

Dada a distância e a necessidade de paciência, teve tempo para divagar embaixo d’agua, imaginando como seria mergulhar no oceano de um planeta vivo como a Velha Terra ou certas outras colônias, até que chegou o momento de partir para o ataque.

Deu certo, emergindo de súbito conseguiu alcançar a sonda e agarrá-la, porém ela escorregou de sua mãos e arrancou para o alto. Um disparo em varredura de Seki obrigou-a a descer novamente e Doni, num salto, conseguiu segurá-la mais uma vez.

Não media mais que um metro de comprimento em sua forma delta ovalada, e era tão transparente que podia passar desapercebida aos olhos há poucas dezenas de metros mesmo com boa iluminação. Para piorar, ela era escorregadia, como uma pedra de gelo, e Doni lutava para segurá-la enquanto tentava antecipar qualquer tentativa de auto destruição.

Foi obrigado a gerar uma descarga elétrica neutralizando a célula de energia que o robô ativava com o objetivo evidente de se desintegrar, e com isso ganhou algum tempo, mesmo assim dada a fragilidade do objeto, seria difícil paralizá-lo sem destruí-lo também.

Seki chegou e percebendo a situação achou melhor golpeá-la, e atingiu-a com um golpe duro enquanto Doni agarrava as extremidades. Com isso algo que parecia um centro de energia ou comando se soltou e Seki imediatamente a agarrou gerando descargas elétricas para paralizá-la, enquanto Doni catou praticamente todos os pedaços que despencavam rumo à água.

- É isso aí! - Exclamou Seki. - Pegamos a bandida!

Tudo acontecera muito rápido para Luri. Um sentimento repentino e arrebatador, uma paixão relâmpago e agora, pela primeira vez ele sentia algo que seu comportamento normalmente jamais dera lugar. Ciúmes.

Só agora parava para imaginar Ange ausente de todos os seus repentinos e delirantes planos para o futuro. Pela primeira vez viu seu recém construído castelo de sonhos ser abalado.

- Sei que pode ser estranho... Eu... - Hane tentava dizer algo. - Eu não gostaria de me envolver com uma mulher que já fosse envolvida com outro homem. Se fosse pelo menos com outra mulher talvez até poderia ser. Mas outro homem... Eu sou ciumento.

E curiosamente Luri finalmente, pela primeira vez, sentiu claramente que compreendia alguma coisa sobre relacionamentos afetivos, algo que sempre lhe fora completamente obscuro.

- Ange mesmo me disse que você nunca sofreu realmente antes com relação a isso. Que suas crises estão mais para existenciais. Você nunca ligou para mulheres antes... Por isso deve estar confundindo as coisas. Ange é sua amiga, e uma excelente mulher, mas logo você vai ver que isso não passa de uma ilusão, você não está conseguindo separar um relacionamento profissional, e uma amizade, de um sentimento romântico. - Sentados numa pedra, Luri se limitava a olhar para o vazio e a ouvir. Sentia paradoxalmente que apesar da clareza do que Hane dizia, nada poderia estar mais distante do que ele vivia agora. Era amor! Ele tinha certeza.

- Não Hane... Não é confusão... Ela é a mulher que... Sempre esteve em meus sonhos, oculta, mas viva. - Disse em voz baixa, quase inaudível. E depois com suas típicas expressões faciais fez Hane entender que era por isso que ele nunca quis outra pessoa, porque seu destino era estar com ela, e que agora, só agora, via isso.

- É ela Hane! Eu sei!

- E quanto ao companheiro dela? Já pensou nisso?

Luri apenas deu a entender que não, nunca nem lhe passara pela cabeça, era algo totalmente oculto de seu intricado quebra cabeças do destino. - O Universo... - Disse ele. - Foi muito perfeito Hane... Arquitetou tudo com perfeição.

E se virou para o irmão com uma emotividade inédita, quase chorando, mas de alegria e fascínio.

- Eu não estava pronto! Foi preciso o momento certo, o alinhamento planetário certo, um momento estelar! - Disse gritando e abrindo os braços para o céu, deixando Hane boquiaberto. - Então ela surgiu... Você, e todos os outros, apenas foram peças de um plano maior. Que trouxe minha outra metade à mim!

Finalmente Hane ficou muito mais assustado e preocupado do que surpreso e feliz com a súbita mudança de comportamento do irmão.

- Ela veio me completar, me despertar... E nós... Nós geraremos uma criança... Muito especial.

Hane se levantou indignado. - O quê?! Você enlouqueceu!? Não diga bobagens Luri! Não podemos ter crianças! Nosso sêmen é infértil! O que você está dizendo?! -

- Você não entende! Ninguém entende. Nossa ciência, nossos conhecimentos Hane, não são nada. Há algo maior, uma inteligência maior no Universo que tudo rege... E coordena os astros e os eventos, e os destinos...

Hane estava entre perder a paciência e entrar em depressão. - Luri... Não que eu seja contra qualquer hipótese metafísica mas... Você tem certeza de que acredita nisso?!

Luri assentiu com a cabeça, e Hane percebia finalmente que Luri era mesmo um místico como Ange dissera, o que o deixou chocado por que eles foram projetados para não serem suscetíveis a tais crenças. Orizon, diferente da maioria das colônias da Terra, era uma sociedade muito naturalista. Religiões e misticismos eram consideradas relíquias da Velha Terra. Despertavam interesse mais como curiosidade e passatempo, mas quase ninguém as levava a sério. Um místico comprometido em Orizon, ou se tornava artista ou filósofo, ou podia simplesmente se tornar um excêntrico, eremita ou recatado.

- Já lhe ocorreu que você pode estar errado? Que o Universo não esteja fazendo nada disso? Que seja tudo a sua imaginação?

- Não... Eu sinto. Como nunca senti antes.

- Sei... Mas e quanto a companheiro dela? O que você acha disso?

Luri silenciou, numa expressão de “não sei”.

- Acho que o Universo dará a ele um outro caminho.

Chegaram em seu laboratório “secreto” com o que restava da sonda, pois estava se dissolvendo, desmanchando-se no ar sem deixar vestígio, e isso porque não tivera tempo de acionar seu sistema de auto destruição.

Doni percebeu que um simples calor ou indução elétrica acelerava muito a “evaporação” da estrutura cristalina, e que bastaria um liberação específica de energia para promover uma desintegração instantânea.

Mesmo assim tiveram bastante material para examinar e não demoraram a concluir que nada daquilo era algo cujo conhecimento estivesse disponível nos sistemas de informação abertos. Puderam concluir que a função da sonda era sim comunicação de média distância, nada de armas nem coletores de amostras e nem mesmo sensores mais potentes. Porém o mais intrigante de tudo, era que por mais que tentassem, não conseguiam localizar a fonte de energia.

- Não dá pra entender! - Disse Seki. - Ela tem energia em toda parte, mas de onde vem?!

- Nenhum gerador, bateria ou coletor perceptível. Seria um novo tipo de coletor ambiental? - Perguntava Doni mais para si mesmo do que para o companheiro. - Mas nem sensores... Nada! Essa porcaria não tem nada!

- É mágica! - Reclamou Seki, indignado como fato de que não poderia buscar informações nas fontes que mais provavelmente teriam respostas, pois teria que entrar com sua identificação e imediatamente o sistema central o rastrearia.

- Vamos levar isso para a Central de Ciências Seki! Não dá mais pra esconder! Melhor arcar com a responsabilidade agora do que correr o risco de fazer uma besteira muito pior!

Seki engoliu em seco mas já concordava. Tentava se convencer que a estória que bolara para explicar como detectou aquele sinal pela primeira vez iria colar. - Tudo bem... - Disse. - Mas primeiro vamos conversar com o Xistus. Quero chegar na Central já sabendo o que é essa coisa.

Depois de um longo discurso, que misturava sermão e lição, Hane deixou Luri em casa e extremamente pensativo. Tentara dissuadi-lo da idéia de que havia um destino divino a casá-lo com Ange, e que ela fosse a única mulher em todo o Universo com a qual ele podia se relacionar. Orizon tinha umas 20 milhões de mulheres adultas e jovens das quais metade faria qualquer coisa para se relacionar com Luri, e apesar disso, muitas delas eram muito interessantes, tanto ou mais do que Ange.

Mas nada disso adiantara, Luri sentia agora um aperto no coração, uma sensação inédita de angústia, de algo que poderia por em risco o perfeito planejamento que o destino traçara, e poderia ameaçar seu sonho dourado.

- Não dá pra acreditar!!! - Gritava Xistus. - Eles fizeram! Realmente fizeram!!! - Gritava enquanto corria de um lado para o outro checando registros antigos.

Desta vez ter chegado ao laboratório do exótico cientista numa nave, mais para proteger o que sobrara da sonda do que para se esconder, não garantiu a privacidade dos heróis. Algumas câmeras de TV e fãs já estavam do lado de fora esperando eles saírem, mas no momento, eles não pensavam nem um pouco nisso.

- O que é Xistus! - Impacientou-se Seki. - Fale logo!

Com a barba por fazer e uma angustiante cara de poucas horas de sono, Xistus tentou se acalmar, maximizou no telão algumas imagens e começou a explicar.

- Lembram quando falei do impulsores de íons sutis?

- Aqueles impossíveis de detectar com instrumentos normais? - Respondeu Doni.

- Isso! São só parte da história. Na verdade havia um projeto bem maior, que incluía um novo modo de geração, transporte e uso de energia. Antes de vocês serem criados, havia muita discussão sobre como deveria ser a fonte de energia, antes da idéia de serem incorporados os moduladores de força mentônica. Tínhamos um projeto que pretendia criar um fonte fixa que transmitisse energia para os dispositivos através de ondas superluminais em microdimensões, desse modo a máquina, ou no caso vocês, não precisariam ter fontes internas nem equivalente a baterias.

- Seriam coletores? - Perguntou Doni.

- Sim! Só que imperceptíveis para qualquer dispositivo normal.

- E isso que essa nave usa? - Indagou Seki.

- Só pode ser! Tem todas as características. Em algum lugar no espaço fica uma fonte emitindo uma energia sutil, impossível de detectar a não ser em alguns resíduos como aquelas emissões radiônicas. O Robô é construído então com uma estrutura que possui captores microdimensionais em toda a parte. É como se recebesse energia solar, só que numa natureza que penetra em qualquer local e é insensível a interferências. Isso tudo, é claro, num certo raio de alcance, mesmo assim um raio perfeitamento esférico e homogêneno, pois pelas microdimensões a energia pode fluir livremente, tanto através de rocha, metal ou através de uma estrela, não faz diferença.

- E onde estão estas fontes?! - Perguntou Seki, e Doni completou. - Se as destruírmos as sondas ficam inoperantes não?!

- Sim! Mas essas sondas usam baixíssima energia, as fontes podem ser muito discretas. Podem estar em Orizons 6, 7 ou 4, mas são muito sutis. Algo equivalente a um farol de avião que poderia estar dentro de uma rocha.

- E tudo isso apenas para tecer uma rede de comunicação? - Interpelou Doni.

- Com esse nível de energia sim... É o máximo que dá para fazer, uma sonda mais potente exigiria uma fonte de energia muito maior e bem mais explícita. Naves de combate por exemplo necessitariam de fontes imensas, que seriam impossíveis de se esconder. E pouco adiantaria pois a fonte em si poderia ser facilmente destruída com Fusão Subnuclear.

- Facilmente! - Ironizou Doni. - A maioria de nossas naves de combate não faz Fusão Subnuclear.

- E é preciso dois de nós para fazê-la. - Adicionou Seki.

- Mesmo assim! Bastaria um único disparo, mesmo a distâncias extremas, e adeus fonte.

- Bem... Isso me deixa mais tranquilo. - Desabafou Doni.

- É! - Interrompeu Seki. - Mas mesmo assim temos um fato preocupante. Significa que os Ians desenvolveram tecnologias que nós não conhecíamos, e fizeram isso há muito tempo. Quem sabe o que mais eles podem ter feito e deixado escondido por aí? Só esperando o momento certo de usar.

- E que momento seria esse? - Perguntou Xistus. - Com vocês no planeta tudo o mais seria inútil. Destruiriam qualquer tentativa de invasão rapidamente.

- Talvez o momento... - Disse Doni. - Em que nós começarmos a esconder o que sabemos uns dos outros... Chega Seki! Vamos comunicar tudo à central!

E surpreendentemente Seki concordou com total firmeza como se jamais fosse capaz de discordar. - Ora! Mas é claro!!! Faça isso por nós Xistus, vamos direto pra sede do Governo ou pra Defesa Planetária.

- Certamente. - Respondeu o cientista.

E logo em seguida os heróis dispararam direto para o céu ignorando os fãs que os esperavam.

Os animais também são agentes. Possuem um impulso volitivo primário. Direcionam seus atos na satisfação de suas necessidades instintivas. Isso talvez assegure alguma intenção. Mas é improvável que assegure uma mente. Somente a partir de certa complexidade informacional, um agente pode direcionar sua percepção para conteúdos internos pouco dependentes do mundo externo.
REFLEXÃO E DECISÃO

Primeiro, foi como despertar de um sonho molhado e de um êxtase divino ao mesmo tempo. Segundo, veio o relaxamento, demorou horas, e a medida que o tempo passava ela foi voltando a seu estado normal.

Luri havia partido muito cedo, e a deixara acordar sozinha na cama, mas não sem a surpresa de um verdadeiro banquete que deixara para ela ao lado da cama, com uma carta de desculpas pela ausência e uma outra de declaração de amor e poesias que frisavam incessantemente que ele estava plenamente vivo pela primeira vez, e que a partir daquele dia tudo seria diferente, novo e emocionante.

Ela ainda demorou muito para conseguir se concentrar e reativar todas as suas faculdades mentais em estado normal, enquanto saboreava a infinidade de quitutes que Luri deixara, muito mais do que ela poderia dar conta, e que a fazia pensar se alguém com olfato teria feito melhor. Depois tomou um banho, vestiu outras roupas que sempre trazia em seu carro e voltou para casa.

Já no escritório de seu apartamento se sentiu como que novamente no mundo real, e tudo o que acontecera parecia ainda mais um sonho, não era fácil lidar com a idéia de um amante que brilhava como um ser divino, e enquanto arrumava suas coisas e se preparava para trabalhar, se deu conta de que não tinha a menor idéia do que ia fazer.

O que escreveria? O que relataria? Sentia que o que quer que dissesse sobre sua noite inesquecível não seria muito melhor que tudo o que já disseram as amantes dos outros Metanaturais, e simplesmente não conseguiria escrever sobre qualquer outra coisa.

Sua mente estava completamente confusa, não só não sabia o que pensar de si própria como não conseguia se livrar da palavra Cortesã Psicóloga que parecia assombrar sua mente.

Então tomou coragem e começou recapitular tudo o que ocorrera, e decidiu enfrentar seus sentimentos duramente.

Não demorou muito para começar a chorar.

Quando Luri chegou em casa, deixado por Hane, Ange há muito já partira. Ele se sentou na cama, ficou acariciando os lençóis e os trazia ao nariz, e pela primeira vez realmente se lamentou de que não pudesse cheirá-los. Provou cada um dos quitutes que Ange havia experimentado, ignorando os que ela deixara intocados, e depois deitou-se olhando para o teto, recebendo logo em seguida a companhia de um dos gatos.

Por um bom tempo até se esquecera de tudo o que Hane dissera, mas depois recapitulou mais uma vez todos os eventos que ocorreram desde que Ange entrou pela primeira vez em sua casa, e ao incluir os últimos instantes voltou a ficar profundamente perturbado.

Se concentrou e ativou seus radio comunicadores cerebrais, consultou os sistemas de informação e logo descobriu tudo o que podia sobre Lence, o comprometido de sua amada. Que destino o Universo o daria? Pensava ele. Uma vez que os eventos foram tão meticulosamente encaixados para o resultado atual, e uma vez que toda a existência dele parecia estar justificada, e mesmo todos os sofrimentos abençoados, o mesmo aconteceria agora com Lence?

Devia ser terrível perder uma mulher como Ange, ele compreendeu imediatamente, e por um momento teve pena de Lence, mas logo percebeu que este conhecia muitas mulheres, como pode ver em alguns registros nos sistemas de informações, era bem relacionado, não teria dificuldades em arranjar outra parceira. Além do mais, e Luri pensou isso de um modo completamente inédito para si próprio, nenhum cidadão de Orizon deveria se sentir ofendido em ceder sua parceira para um dos super heróis do planeta.

Por um instante Luri se deu conta de algo que nunca lhe ocorrera, algo que Hane insistia. Se deu conta de quem, ou do quê ele era. Pela primeira vez mergulhou sua mente nas questões relativas a sua criação, sua natureza e inclusive nas discussões sobre sua essência e personalidade.

Num simples pensamento acessou informações sobre os estudos, debates e discussões que versavam sobre serem eles indivíduos conscientes ou não, e todas as implicações e definições de inteligência, mente e consciência que isso gera. Ele próprio, assim como qualquer ser humano, não tinha dúvidas da genuinidade de sua própria existência como um indivíduo auto consciente. Mas como provar isso para os outros quando tantos robôs e computadores podiam fazer o mesmo com simuladores psíquicos, ao menos na época em que ainda eram permitidos?

De repente se sentiu inexplicavelmente contaminado por essa questão, um desejo súbito de afirmar em alto e bom som de que ele havia despertado, e que sim! Ele era um Ser Humano!

Subitamente sentiu raiva do modo como as vezes ele e seus irmãos eram vistos, como andróides, máquinas submetidas a reguladores e inibidores de comportamento, e se perguntou como uma mulher, ou qualquer pessoa, poderia amar um deles sem ter a certeza de se tratar de um ser genuíno?

A febre emocional lhe subiu à cabeça, sentiu um ímpeto irresistível de se auto afirmar e pela primeira vez entendia o que Seki e Doni pareciam fazer o tempo todo. Era como se gastassem toda a sua energia e esforço em mostrarem a todos que estavam vivos, que podiam amar e sentir tudo o que as pessoas carbônicas sentiam. Entendeu o que era amar! Era isso! Se sentir vivo! Pleno e consciente de todas as suas potências psíquicas!

Se lembrou do conselho que há tempos Hane lhe dera: “Dê uma volta sobre a cidade, chame a atenção. Não precisa falar com ninguém, só apareça onde haja pessoas que possam te ver. Verá como todos o admiram.”

Levantou-se assustando o gato que estava ao seu lado, olhava para cima, como se contemplasse uma revelação, e sentiu vontade, uma vontade tão forte, tão intensa e tão insana que ele não resistiu, e arrancou ao alto arrebentando o teto e atingindo os céus com uma imensa sensação de liberdade que jamais experimentara.

- Eu não sei o que fazer! - Dizia Ange quase chorando nos braços de Nani. Contara tudo, em detalhes quase pornográficos. Nani chegou a se desculpar por estar sendo tão curioso, como cientista, disse ele, não poderia deixar de se interessar pelos fatos físicos do processo.

- Não posso negar que foi espontâneo... Mas é que... Eu o sinto cada vez mais... Como uma criança. Meigo, doce... Ingênuo. Uma... Foi uma inconsequência. Veja as cartas!

Nani já estava lendo alguns dos poemas e prosas que Luri deixara escrito na cama, a essa altura, o orientador já fazia as vezes de terapeuta de Ange, que por enquanto preferia não procurar colegas de profissão.

- E Lence... Ah... Eu ainda não disse nada a ele. Não falo com ele há vários dias... Não estou com coragem.

Nani puxou uma cadeira para se sentar mais perto da psicóloga. Estava em profunda reflexão, sua mente avaliava mil e uma possibilidades que o assombravam desde o tempo da guerra. Será que Luri poderia sofrer um dano emocional sério? Pensou muito, sobre algo que já vinha planejando antes e que talvez agora fosse o melhor momento, talvez estivesse na hora de descobrir se Luri agiria mesmo como alguns de seus projetistas previam.

- Querida... - Começou ele muito sério, ainda hesitando e calculando muito o que iria dizer. - Acho que você precisa tomar uma decisão. Eu até esperava esta reação do R... de Luri. Mas estou preocupado com você.

Era agora! Tinha que ser agora. Tudo parecia lhe estar favorável, algo que há muito ele tinha em mente, algo muito arriscado mas que poderia trazer um resultado maravilhoso. Teve medo, quase desistiu, mas se repreendeu pela súbita hesitação, e então foi em frente.

- Conheço os rapazes, inclusive Luri, bem mais do que você pensa. - Continuou dizendo uma verdade, afinal trabalhara em muitos projetos relacionados, conhecia muitos dos envolvidos e sempre fora estudioso em vários assuntos. Sabia que era bem possível que Luri aparentasse uma reação inédita.

- Observe, pense bem no que ele diz nas cartas. Repete várias vezes que nasceu, que pela primeira vez está vivo! Veja a ênfase que ele dá no fato de que você foi quem o libertou, que o despertou! Veja neste poema: "Agora estou pronto para me revelar ao Universo, para ser quem eu Sou, não tenho mais medo, agora todos poderão me conhecer." Você tem idéia do que isso significa, não?

- Tenho muitas idéias. - Disse a quase chorosa psicóloga. - Mas nenhuma me parece clara, ou mais provável.

- A mim... Me parece... - Prosseguiu o orientador com muito cuidado. - Que ele está reconhecendo sua parte como terapeuta! Pouco importa se cortesã ou não. Você conseguiu! Não percebe? Ele se libertou! Acho que um nunca vi tamanho sucesso psicoterapêutico!

Ange, confusa, refletiu. - Será... Mas... Eu não posso ser a cura. Ele que deve se curar, eu só posso...

- Ora minha querida! Acho que nem Freud nunca acreditou em toda essa rigidez de princípio! Se você tiver que fazer parte da cura que seja! Mesmo que haja efeitos colaterais!

- Sim! Efeitos colaterais! - Respondeu a terapeuta se levantando e passando a andar pela sala. - São eles que me preocupam! O que devo fazer agora!? Eu quero interromper a terapia! Acabar com ela agora! E juro... Juro que tinha vontade de ainda namorar Luri... Mas sei, tenho certeza de que seria algo sem muito futuro. Temporário.

- Ah... Você tem certeza?

Ange respirou fundo e concluiu. - Sim! Agora tenho certeza! Depois de um tempo, da minha parte, acho que seria apenas... Uma aventura.

- Mas e ele?

- É isso que eu não sei!

- Querida. Você ama Lence?

- Sim! Claro! E agora tenho ainda mais certeza disso! Certeza de que ele é o homem com quem quero viver toda a minha vida, envelhecer e morrer lado a lado... E Luri? Nem sei se ele um dia irá envelhecer, ou morrer.

Era agora, pensava Nani, o movimento final desta etapa do plano. Depois improvisaria com o que viesse a acontecer. Tomou fôlego e decidiu.

- Só há uma coisa a fazer. Que é melhor para você, Lence, e para Luri. Eu posso garantir. - E pela primeira vez desde que a conheceu Nani pretendia mentir, não uma simples omissão ou distorção, mas uma mentira total. - Conheço Luri. Sim. Não te disse isso antes mas conheço todos eles bem mais do que você pensa. Nunca mais falei com Hane, não nos damos bem. Quando crianças, cheguei a brincar com os meninos. - Disse se referindo a Seki e Doni, por quem ele nutria realmente uma certa afeição, e sim, era verdade que, pelo menos como cientista, conhecia Luri, e previa como ele reagiria.

- Dispense o rapaz. Diga a ele que foi só uma aventura, um momento mágico, ou uma espécie de iniciação, e que agora ele está pronto para viver, como ele mesmo disse.

Ange ficou pensativa, nesse estado emotivo tinha suas incomuns habilidade intuitivas em baixa, ou poderia perceber que Nani, por algum motivo, não acreditava no que dizia.

- Veja bem tudo o que ele escreveu. Ele já sabe, conscientemente ou não, que você foi apenas uma instrutora, alguém que o despertou, e o deixou pronto. Creio que ele não irá aceitar bem de imediato, ainda deve estar na ilusão romântica, vai sofrer um pouco, mas isso faz parte do processo. Em breve ele vai se aperceber conscientemente do que já percebeu inconscientemente, e vai te agradecer.

- Mas ele vai sofrer... Muito. E eu também.

- Eu sei minha querida. Mas é necessário. Ora, para você não será a primeira vez é claro. Para ele será, é importante que ele passe por isso.

- Fico preocupada. Não é uma pessoa qualquer. É o Luri! O RY-3!!! Uma coisa é magoar um homem normal, outra é magoar alguém que pode vaporizar uma pessoa só apontando o dedo.

E então Nani daria a cartada final, e a mais bem colocada meia verdade. - É isso! É aí que entra o fator especial que estou tentando lhe explicar. Ele possui os inibidores de comportamento, aqueles que tanto te incomodam. Eles não irão deixar ele agir de forma perigosa contra ninguém, por isso mesmo ele será forçado a redirecionar seus sentimentos, e encontrar uma maneira mais sadia de lidar com o fato.

Nani quase gaguejou, pois desta vez sabia muito bem que isso poderia ser falso. Teve medo que Ange percebesse alguma coisa, e ela de fato parecia estar desconfiada, mas de repente, algo viria a praticamente salvar o velho cientista. Um sinal no comunicador pessoal de Ange tocou acusando uma mensagem, ela não queria atender mas ele insistiu que ela o fizesse para que se distraísse naquele momento em que sua extraordinária intuição poderia por tudo a perder, e se fosse quem ele pensava, teria caído dos céus.

Era! Era Lence, que enviara uma mensagem gravada, uma declaração de amor e saudades para Ange, e notícias de que a casa deles estava pronta. Ange ouviu e viu as imagens no visor e desabou a chorar. Era a oportunidade que Nani esperava.

- Querida. Acredite em mim. Agora mesmo. Fale com o Luri. Diga a ele que tudo está acabado. Vai ficar tudo bem.

Subiu uns 6 mil metros como um foguete e então se deixou cair. Gritou no ar e depois acelerou rasgando as nuvens. Como voar era bom! Ele nunca havia parado para perceber isso tão intensamente. A maioria das pessoas daria quase qualquer coisa por esse poder. Desceu acelerado e alcançou a cidade, sobrevoou baixo algumas das avenidas principais capturando todas as atenções. As câmeras de TV não demoraram a aparecer mas não podiam acompanhá-lo.

Avistou uma praça repleta de jovens incluindo lindas moças. Todos se assustaram quando viram um raio azul cruzar o céu num sentido e depois no outro. Então o raio circulou a praça duas vezes diminuindo de velocidade até que Luri pairou por sobre o jardim, onde várias garotas estavam reunidas. Pousou na grama e começou a caminhar e em segundos a multidão se acumulou.

- É o Doni? - Ouviu alguém dizer. De fato Doni era o que mais se aproximava dele em aparência principalmente pelo cabelo, embora Luri fosse bem mais alto. - Não! É o outro! O Luri! - Disse uma das moças.

- Ele é lindo! Eu nunca o tinha visto. - Comentou outra, e o herói se sentiu lisonjeado pela primeira vez. Começou a sorrir e olhar para todo mundo, e quando o cerco já se fechava e quase o tocavam, ele flutuou, sobrevoou lentamente a pequena multidão e de repente disparou como uma bala rumo à frente e ao alto, ofuscando todos com o brilho azul.

Mais adiante, bem do alto, viu uma passarela costeando a praia onde várias pessoas corriam para se exercitar. Decidiu experimentar. Pousou desta vez num local mais discreto, não sem chamar a atenção, mas logo se afastou de todos correndo pela calçada.

Embora não fosse habituado, ela sabia correr, fora instruído nisso e em todo tipo de atividade física no período de seu antigo treinamento. Logo lembrou que podia ir muito mais rápido que qualquer um, e sem se cansar. Acabou chamando atenção por isso também, um homem correndo tão rápido quanto um gato.

Porém quase ninguém reconhecia Luri. Suas fotos eram raras, pois ele dificilmente se deixava fotografar ou filmar, gerando um campo de interferência em torno de si que neutralizava qualquer tentativa de obter sua imagem. Chegara a dizer certa vez que ver sua própria imagem numa foto o fazia sentir como se estivesse congelado numa prisão de tempo.

Mas agora sentia-se ainda mais livre. Podia percorrer as ruas sem ser reconhecido, e então, quando quisesse, era só produzir algum efeito.

Parou em frente a algumas moças sentadas e ficou a fitá-las fixamente, com um sorriso enigmático e um tanto perturbador. As jovens retribuíram o olhar e não havia uma que não apreciasse a beleza do rapaz, porém todas ficaram incomodadas como tão súbita presença e tão estranha abordagem.

- Oi? - Disse uma delas. - Tudo bem? - Perguntou outra.

Ele nada disse, apenas as olhava e então percebeu que nenhuma delas se comparava a Ange. Olhou a sua volta e agora concluía que não havia mulheres, nem juntando todas elas, a altura de sua amada.

Já assustadas, as garotas insistiram em tentar uma comunicação mas ele apenas as olhava e sorria, as vezes quase gargalhando e cobrindo a boca com a mão. Algumas moças acharam graça, outra não gostaram. Chegaram então alguns rapazes e um deles pensou que ele as estivesse importunando.

- Ei cara! O que você quer? - Se aproximou impositivo, e se era um pouco mais baixo que Luri, tinha o dobro de largura.

Luri ficou pensando o que ele queria. “O que eu quero?” Ele mesmo não sabia dizer, deixando o jovem mais impaciente, e se as cidades de Orizon não eram perigosas e nem os jovens fossem violentos, sempre havia um ou outro com disposição para alguma desavença.

Luri então encarou o rapaz e sorriu, e levitou suavemente, fazendo-o recuar de susto. Então deu uma última olhada para as moças e fez um sinal de despedida e zarpou rumo aos céus até sumir de vista.

- Eu não acredito!!! - Gritou uma delas. - Ele estava aqui na nossa frente e ninguém se mancou! - Disse outra. - Ai... Que oportunidade perdida!

Luri então começou a brincar pela cidade, dando rasantes em ruas, entrando a pé por uns momentos em certos locais públicos e movimentados e depois saindo flutuando. Via vitrines, pessoas, músicos e filmes sendo exibidos. Olhava tudo um pouco e sempre saia de modo espetacular.

Mais de uma vez deu tremendos sustos nos cidadãos ao cruzar o ar produzindo ruídos estridentes, e os rastros de luz azulada conseguiam marcar por uns momentos mesmo os pontos mais cianos do céu.

A notícia não demorou a se espalhar. Logo os noticiários em todas as cidades comentavam as travessuras de Luri e o pessoal da Defesa Planetária e do Tráfego Aéreo não custou a ficar intrigado. Vários tentaram entrar em contato com ele, Hane também tentou, mas Luri nada respondia.

Principalmente porque agora, um sinal em especial lhe chamara a atenção. Era uma mensagem de Lence direcionada a Ange, com uma declaração de amor e compromisso, e subitamente o medo e a confusão voltaram a cabeça do rapaz.

Concluíra então subitamente que realmente não havia mulher como Ange, ela era a musa ideal. Refletiu e decidiu seguir para onde ela estava, a Terceira Torre da Universidade de Orizon.

Decidiu que lutaria por sua amada.

Apenas quando o agente pode direcionar seus processos cognitivos para seu mundo interno, para suas representações, pode então surgir uma noção de individualidade, a matriz da auto consciência. Emula um universo interior similar ao exterior, e em companhia de seus pares, constrói uma linguagem externa. Com símbolos abstratos, ergue o mundo cultural, o império da mente.
DESILUSÃO E DESESPERO

De tão nervoso que de repente ficou, Luri se confundiu ao chegar na Universidade. Rastreou a mensagem e localizou Ange naquilo que o sistema dizia ser a sala do Dr. Nani, mas não conseguiu identificar direito onde era. Entrou pelo saguão principal da torre e perguntou a uma recepcionista ao invés de simplesmente consultar o computador de forma direta.

Muitas coisas em Orizon confundiriam os antigos terráqueos, a Universidade era uma delas. Parecia um hotel, um centro de diversões um shopping, tudo menos uma escola ou local onde se estuda, afinal mais de 90% da atividade acadêmica se dava por telepresença, e somente os muito dedicados frequentavam pessoalmente o estabelecimento com frequência.

Meio aborrecido, Luri ignorou a comentário da moça ao dizer que o Dr. Nani não podia receber visitas neste momento, e que ele deveria passar devagar pelo sensor de identificação.

Ao passar, ele nunca soube se de propósito ou não, interferiu no sistema que reconhecia a pessoa por métodos variados, como imagem, leitura óptica de DNA ou leitor de Aura, e um suave sinal de advertência foi dado. Um rapaz da segurança se adiantou para falar com ele e talvez por estar num dia ruim abordou o herói rispidamente.

Luri apenas o encarou e algo fez o segurança hesitar antes de uma abordagem mais séria. “Conheço esse cara de algum lugar.” Pensou consigo.

Subindo a escada Luri se espantou com uma pequena festa que alguns alunos promoviam num sala mas seguiu em frente, a festa porém parou quando os estudantes viram um outro segurança se juntar ao primeiro e andar apressadamente atrás de Luri com um sensor de mão.

Após pedir mais de uma vez um deles passou o sensor na cabeça do intruso mas o sensor mais uma vez ficou desorientado. O segurança então tocou Luri no ombro mas ao fazê-lo sentiu um choque.

- Ele está armado!

Os dois seguranças sacaram pequenas armas elétricas, o mais comum artefato não letal e o qual julgaram que o invasor também usava dado a pequena descarga que o segurança tomou. Um deles se adiantou e ficou a frente de Luri ordenando-o que parasse.

Ele então se deteve e encarou o segurança, brevemente fez seu rosto brilhar e por um instante tornou todo o seu crânio visível.

- Oooopa! Desculpa senhor! Eu não reconheci! - Disse imediatamente o segurança na frente e diante do desentendimento do outro que ainda empunhava a arma fez um gesto de recuo e silêncio e complementou meio que num sussurro alto. - Guarda isso e fica quieto cara! Esse é o Luri! - E ficou se repreendendo por não o ter reconhecido, pois fora uma das poucas pessoas a de fato ter visto uma imagem nítida de Luri.

Ao ouvirem o nome do herói os estudantes saídos da festa que já se acumulavam no corredor vieram correndo e rapidamente Luri foi barrado por um grupo de rapazes e moças que conseguiu impedir seu caminho com mais eficiência que os seguranças.

Alguns deles filmaram e tiraram fotos antes que Luri amplificasse um sinal de interferência, falavam todos ao mesmo tempo e o tocaram sem pedir licença, e duas moças mais abusadas o agarraram e o beijaram, a segunda delas não se importando nem mesmo de tomar um doloroso choque na boca.

Com tudo isso, Luri acabou ficando extremamente aborrecido e teve que voar por cima do burburinho para finalmente chegar à entrada da sala de Nani que estava fechada, porém numa simples onda mental o Metanatural fez o mecanismo eletrônico se abrir lhe permitindo entrar e fechar pouco antes do bando de jovens conseguir seguir em seu encalço.

Numa ante sala, uma mulher e um homem relaxavam dado a falta de serviço e se assustaram com a presença de Luri. A moça exclamou, mais para o companheiro que para o intruso. - Como entrou?! Não ouvi a campainha...

- Ange está aqui? - Perguntou subitamente o herói.

- Quem? - Respondeu a moça que de fato não conhecia a psicóloga por esse nome. O outro rapaz se aproximou. - Com licença senhor. No momento o Senhor Nani está ocupado com uma visita e... -

Luri dispensou o restante do comentário e seguiu adentro ignorando os apelos dos dois. Algo mais o aborrecia. Os constantes chamados da Central de Ciências, Defesa Planetária, Hane, Seki e Doni que nunca estiveram tão interessados nele quanto agora. Tentava não ouvi-los mas não conseguia e se limitava a não respondê-los.

Depois de um paternal sermão, Nani se levantou e se afastou de Ange rumo a porta, principiando a fala. - Pedi para não ser incomod... !!! Ora... Meu rapaz mas... Que surpresa...

Nani recuou como se tivesse sido pego em flagrante, e depois ficou a pensar qual fora a última vez que vira Luri de perto. Desde o fim da guerra! Lembrou ele, e Luri estava exatamente igual, o que era estranho para quem acompanhara todo o crescimento dos Hiper Metanaturais, 3 vezes mais rápido que o dos humanos normais, e cujas diferenças podiam ser notadas a cada vez que ele os via. Com discretos gestos fez então sinal para que seus secretários se retirassem.

Ange, sentada na cadeira, respirou fundo e fechou os olhos. Lutou para não chorar, se controlou, e ainda de olhos fechados se levantou e encarou Luri com um sorriso discreto. - Oi. - Foi tudo o que ela disse.

Ele por sua vez não se conteve e a abraçou bruscamente, ela nem pode retribuir, seus braços ficaram presos, e em pensamento agradeceu por isso, pois não sabia se poderia fazê-lo. Após quase um minuto em que ele a abraçava e acariciava, sentiu que havia algo errado. Tomou então a mão dela e a beijou, e ficou a fitá-la com uma expressão indefinível.

Por trás dele Nani fez um sinal discreto a Ange, e se afastou para o canto da sala, ficando a olhar pela janela. Ela então o tomou pela mão e o levou para o extremo oposto, e o fez se sentar num sofá. Com a mente em turbilhão percorrendo mil possibilidades sobre o que iria dizer, iniciou com muito cuidado.

- Li todas as cartas. Estão lindas. Obrigada. E você? Como se sente hoje?

- Vivo! - Respondeu ele.

- O que você esteve fazendo? - Perguntou ela num súbito ataque intuitivo. Era quase como se pudesse ler nos olhos dele as travessuras que acabara de aprontar.

- Eu... Voei pela cidade... Vi as pessoas. Me aproximei das garotas. E pela primeira vez vi que todos me adoram. Há tantas... Tantas pessoas que... Queriam me ver. Tantas moças que queriam me tocar...

Pode ter sido um raríssimo e infeliz cruzamento sináptico confuso, mas Ange de repente se sentiu ambígua, por um lado aliviada pelo fato de que Nani parecia mesmo ter razão, por outro não deixou de sentir uma ponta de ciúme. Essa mesma confusão pareceu se ter transmitido a Luri, que de repente não conseguiu evitar de captar uma convocação imperativa da Governadora do Triunvirato exigindo uma entrevista.

Ele ignorou, e continuou. - Eu acho que... Vivi tanto tempo isolado que por vezes me sentia, desligado de tudo. Das pessoas normais, de meus irmãos. Acho que só os planetas e as estrelas me faziam companhia. Mas hoje eu descobri... Que sou humano! - E a última frase foi dita com um ênfase, e um olhar tão direto, diferente do olhar baixo imediatamente anterior, que Ange quase se assustou.

- Você está livre agora. - Respondeu ela. - Está pronto. É como você disse nas cartas. Agora pode levar uma vida normal. Há milhares de mulheres que queriam tanto estar com você... E elas... - Ela se esforçou para sorrir, e dar um tom bem humorado. - Porque você não faz essa caridade a elas?

Ele riu, entendendo a piada, e lembrando do que Hane já lhe dissera, e então num clima humorístico continuou o relato. - Uma delas disse... Eu ouvi de longe... Gritou para que eu a levasse comigo... E que fizesse o que quisesse com ela! - E então começou a rir. - Acho que finalmente entendo um pouco do que o Seki faz.

- Ah... Mas você não precisa ser tão exagerado. Inspire-se no Doni.

- Não... Eu me inspiro no Hane... Quero dizer. E em parte no Doni. Porque eu quero me casar com você. Mas só com você.

Ange engoliu em seco, e com um sorriso amarelo pensou em como remediar a situação. Se sentiu subitamente decidida a acabar com tudo antes que se tornasse irremediável, se já não fosse.

- Luri... Há tantas... Tantas coisas a serem vividas. Tantas aventuras. Você tem tanto pela frente.

- Eu sei... Eu entendo mas... Quero dizer. Eu entendi hoje. Eu sou diferente. Veja a... A gradação. Seki não se compromete com ninguém... É um... Promíscuo total. Doni já é mais comedido, mas também não se fixa. Hane se fixa, mas com 4 mulheres.

- Sim e...

- E eu quero me fixar, como uma só. Você. Ser diferente de todos eles. Porque descobri o significado de tudo.

- De tudo o quê?

- De minha existência. Tudo agora faz sentido. O Universo arquitetou tudo com perfeição, fez você vir na hora certa, me preparou, controlou todos os detalhes. O destino nos uniu. E agora a obra está prestes a se completar... Para sempre.

- Luri, eu... Não sei se entendi bem... Mas você acha que tudo o que aconteceu já estava de certo modo...

- Escrito nas estrelas! Como diriam os antigos. É nosso destino.

Ange desta vez deixou escapar a expressão de angústia, que imediatamente assustou o herói.

- Luri... Tudo isso é tão... Místico... Poético. Mas...

- Mas?

- É só uma ilusão.

- Ilusão?

- Sim. Somos nós que fazemos nosso próprio destino, não há astros nos governando, nem há deuses nos dizendo o que fazer. Tudo o que há é uma essência universal que nos sustenta, nos dá força, nos dá vida, mas nos deixa livres, para sermos o que quisermos.

- Tudo bem. Mesmo que seja assim. Se for, faremos o que quisermos. E eu quero você! Para sempre.

- Luri... Querido... Você sabe que eu tenho um compromisso.

- Lence.

- Sim. Eu o conheço há anos. E há anos nos já decidimos ficar juntos.

- E porque não estão?

- Porque cada um de nós teve que fazer algumas coisas, mas hoje mesmo eu vou partir, e vou viver com ele.

Ange se surpreendeu com a maneira como disse tudo, sufocando seu sofrimento interno e de repente se apegando a seu amor por Lence. Era verdade que ela gostava de Luri, e se pudesse, e fosse possível, levaria o romance adiante. Mas não era apenas por Lence, era uma questão profissional. Ela não aceitava o fato de se envolver com um paciente.

Luri por sua vez ficou num prolongado silêncio, e Ange não sabia o que fazer. Percebeu que por dentro ele travava uma intensa luta psicológica, queria ajudar, mas não sabia o que dizer. Até que por fim ele murmurou.

- É... Eu... Você... Não. Você não está... Me entendendo. Falo sério. Eu te amo! Não vou ficar sem você!

- Luri... Não confunda as coisas. Isso é... Isso é normal. É que foi sua primeira vez e... Você está um pouco confuso. Foi você mesmo que disse que agora está livre. Cumpri minha missão, que era ajudar você. E acho que consegui!

- Seu trabalho? Você... Não entendeu. Eu quero me casar com você! Ser seu para sempre!

- Não... Luri... Não... Vá com calma. Se acalma. Isso passa. Daqui a pouco você vai começar a sentir algo diferente. - Ela tentou sorrir. Conseguiu. Mas só por fora. - Vai ver que a vida é um horizonte de possibilidades, vai perceber que há tantas coisas fantást...

- Não! Não há possibilidades! Só há você!

Ela ficou em silêncio. Respirou fundo, e viu que Luri parecia sentir uma dor de cabeça, e pensou se não seriam seus inibidores de comportamento. Lembrou então do que Nani disse.

- Luri! Eu amo Lence! Gosto muito de você também mas...

- Lence tem outro destino! O Universo se encarregará disso! Tudo está planejado! Tudo está correndo com perfeição! Confie em mim!

- Mas eu não quero isso! Eu quero viver com Lence!

Luri parecia que iria chorar, e então começou a apelar.

- Você me ama!?

- Eu... Não sei, quer dizer... Do mesmo modo como amo Lence, não!

- Mas me ama?! De algum modo?!

- Acho que... Sim. - E ela estava sendo sincera.

- Eu te amo! Tenho certeza total!

- Tem mesmo? Há quanto tempo me conhece? Lence e eu namoramos por muito tempo antes de declararmos nosso amor e...

- Eu sei o que sinto!!!

- Calma. Claro que sabe. Eu sei. Mas não sabe reagir a isso. É novo para você. Ainda não sabe lidar com...

- Não duvide!!!

- Luri... Calma. Por favor não grite.

Ele se levantou de repente e respirava ofegante, caminhou a esmo pela sala e começou a murmurar alguma coisa, que foi ficando cada vez mais alto até se tornar perceptível. - ...delo. E só um pesadelo. É só um pesadelo! É só um pesadelo!! É Só Um Pesadelo!!! É SÓ UM PESADELO!!!

Assustou a Ange e a Nani.

- Luri... Controle-se por favor.

- É SÓ UM PESADELO!!! E vou acordar agora!

E então se concentrou e começou a brilhar, e um zumbido se misturou com um grito, e descargas elétricas começaram a lhe percorrer o corpo.

Era um aspecto psicológico de Luri que não chegou a ser muito abordado por Ange. Ele costumava ter pesadelos relativos a situações sociais. Vergonha, vexames, exposição pública. E quando isso ocorria fazia no sonho exatamente o que estava fazendo agora. Só que desta vez era real.

Alarmes preventivos de incêndio e sobrecarga dispararam, embora as descargas elétricas que percorriam o corpo do Metanatural não estivessem atingindo nada além dele próprio, mas Ange recuou e Nani a abraçou.

- Pare com isso Luri!!!

E lentamente ele foi parando, os raios sumindo e o corpo parou de brilhar. E ele olhou para ela com aquele olhar tímido de antes. Se aproximou de modo abrupto para tocá-la e sem querer lhe deu um choque, que também se transferiu para Nani.

Ambos gritaram, o que o assustou. Ele tentou pedir desculpas mas parecia ter mais uma vez perdido a capacidade da fala, e expressões faciais confusas surgiram novamente.

Caído no chão Nani gritou. - Rapaz!!! Você enlouqueceu! Arrghhh... - E Nani chegou a ter um quase princípio de ataque cardíaco, Ange o acudiu, tomou seu pulso, e gritou para os comunicadores para chamarem cuidados médicos, mas tudo parecia desligado.

- Luri! O que está fazendo! Libere o sistema! - Ela gritou mas ele parecia ignorar o que ela dizia. Tentava pedir desculpas sem falar. - LURI!!! Libere o sistema!!! - E só então ele percebeu que estava gerando um campo de interferência. Esforçou-se para se conter e então o sistema voltou a funcionar. Os secretários e os dois seguranças entraram, além de outras pessoas que perguntavam o que acontecia. Os alarmes continuavam ativos.

Quando duas pessoas ajudaram Nani a se levantar Ange se voltou para Luri. Um passo a frente que ele deu a fez recuar. - Espere! Luri! Por favor vá pra casa!

- E... E... E-eu... Eu não queria...

- Por favor Luri vá para casa. - Desta vez ela falou com mais calma.

- M-mas... Eu... Só queria... Dizer que...

- Luri! Chega! Por favor. É melhor ir embora.

E só então via que o coração dele continuava brilhando, pulsando dentro do peito.

Ange pretendia ir falar com ele depois, quando tudo estivesse mais calmo. Agora várias pessoas estavam na sala, algumas muito assustadas. Mas Luri não parecia entender nada. Para piorar ele não conseguiu evitar que diversas transmissões entrassem em sua mente. Noticiários falavam de suas estrepolias na cidade, e daquilo que antes ele estava se sentindo orgulhoso, de repente se sentiu coberto de vergonha.

O Governo Central insistia em falar com ele, e Hane dizia que estava a caminho. E para piorar ele captava agora uma transmissão de Lence tentando falar com Ange.

Palavras ecoavam em sua mente. “Minha querida? Pode falar agora? Eu te amo!”, “Senhor Luri. A Governadora Triunvirata requisita sua presença na sede...”, “Luri! Luri responda! O que está acontecendo aí?”, “ Senhor Luri. A Defesa Planetária convoca reunião imediata!”, “O mais misterioso de todos os Super Heróis de Orizon decidiu hoje se aproximar mais...”, “Ele ficou aqui! Na nossa frente! De repente voou para o céu! Foi demais!”, “Ele é muito lindo!”, “Na verdade fiquei um pouco assustada.”, “Mas o que será que aconteceu com noss...”, “Um dos proprietários diz que irá exigir da Defesa Planetária indenização pelo dano causado ao fecho eletromagnético, que parou de funcionar quando o Antróide Foto Silicônico RY...”, “Luri! Responda!”, “Senhor Luri! A Governadora insiste em...”, “Talvez Luri esteja apaixonado! Aeronautas acabaram de descobrir uma imensa escultura nos recifes que parece ter sido feita...”, “Você acha que o Luri está namorando alguém?!”, “Tomara que não!”, “Luri! Luri! Aparece aqui! Quero te conhecer!”, “Achei ele muito esquisito! Ficou encarando as meninas sem dizer nada e depois...”, “Ange? Ange meu amor. Pode responder agora? Nossa casa já está pronta. Estou indo para lá daqui a pouco e vou preparar as coisas para quando você vier.”

Luri pôs as mãos na cabeça e começou a falar consigo mesmo, a princípio baixo, e então cada vez mais alto. Não conseguia deter as transmissões. Começou a gritar. - Parem! Parem!!! SILÊNCIO!!!

Duas câmeras flutuantes entraram na sala de repente e várias já se acumulavam do lado de fora do prédio, mas ele estava alheio a isso tudo, com os olhos fechados e as mãos cobrindo o rosto.

- Luri!!! Luri por favor olhe para mim! - Gritava Ange. Mas de repente a sala foi invadida por dezenas de pessoas. Repórteres, seguranças públicos, fãs e curiosos em geral. Mas Luri apenas punha as mãos na cabeça e gritava, sem perceber outra coisa, e de algum modo, tentando se convencer que tudo o que acontecia era culpa da overdose eletromagnética receptiva que tinha agora no cérebro, quando na verdade estava sofrendo uma terrível desilusão amorosa, e entrava em desespero.

Várias pessoas se aproximaram, em especial garotas. Ange gritou para elas se afastarem, uma delas ao tocá-lo sentiu o choque, os seguranças tentaram controlar a situação e os alarmes pararam de tocar, o que na verdade tornou a situação ainda mais angustiante para Luri, pois agora ele ouvia com mais nitidez o falatório do ambiente.

- Luri vá embora! Por favor!

Então, por algum motivo, ele focou sua atenção numa das câmeras robôs flutuantes que o filmava do lado de fora do prédio, através do vidro. Era uma das maiores e seu funcionamento passou a incomodar Luri especialmente. Era como se ele ouvisse cada movimento dos sistemas eletrônicos dentro de seu cérebro como se fossem estrondos. Tentou gerar o campo de interferência mas não conseguiu. Os gritos de Ange pareciam minar-lhe a concentração, e sua cabeça parecia querer explodir quando de repente abriu sem querer seus receptores e ouviu um pandemonium de transmissões.

- AAAARRRRGGGGHHHH!!! Parem com iiiissssssooooo!!!

E então voltou a brilhar, e descargas elétricas percorreram novamente seu corpo. Todos se afastaram, e num acesso de descontrole estendeu o braço rumo a parede, um brilho intenso tornou visível os ossos do punho e um raio elétrico foi disparado.

Todos foram derrubados, o campo eletromagnético empurrou as demais câmeras flutuantes enquanto a câmera alvo simplesmente evaporou. Mas o raio continuou pelo céu, indo muito mais longe, e na sala restara um rombo na janela, fumegando, além de várias pessoas no chão afetadas pela onda de choque do disparo, pela eletricidade residual ou apenas pelo susto.

Alguns kms dali cidadãos se espantaram quando ouviram um estrondo. Poucos perceberam o raio azulado e brilhante, mas todos viram quando pedaços incandescentes da parede de um prédio vir abaixo. Foi muita sorte ninguém ter se ferido e os destroços, alguns deles em estado líquido, caíram numa área livre na praça por onde circulavam poucas pessoas.

Na sala de Nani mal as pessoas se recuperaram do susto e outro estrondo mandou todas para o chão novamente, e quando puderam olhar havia apenas outro rombo no teto.

Luri subiu aos céus num desesperado grito de dor. Hane foi quem o “ouviu” mais intensamente, e ainda há muitos kms de distância tentava se fazer ouvir.

- “Luri! Luri! Me ouça! Precisa vir comigo! É importante Luri! Orizon pode estar em perigo! Seki e Doni e alguns cientistas descobriram uma coisa muito preocupante! Luri! LURI!!!”

E quando a ordem finalmente começou a se instaurar na sala semi destruída do Dr. Nani, ele já insistia que não precisava de cuidados mas sim de ir para casa, mas antes chegou para Ange que chorava inconformada.

- Querida. Não há mais nada a fazer. Por favor, para sua própria segurança vá embora. Pegue agora mesmo o avião para a Quinta Cidade e vá encontrar seu verdadeiro amor. Vá!

E Ange concordou, nem sequer percebeu que Nani não parecia incomodado com o fato de Luri não ter se comportado como esperavam, não causando vítimas num acesso de fúria, por sorte.

Com o mundo cultural, a mente pode se mover num universo de símbolos e abstrações, criando muito mais que uma imitação do mundo externo, mas um universo interno imensamente mais complexo e intrincado. Nesse domínio, a mente move montanhas conceituais, constrói percepções, ergue edifícios de idéias. Então, se volta ao externo, e recria o mundo à sua própria imagem.