PLANETA FANTASMA - Capítulo 10 - Marcus Valerio XR
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RANDOL

- KUTLIU não era, afinal, o nosso inimigo. - Disse Randol, perante seus companheiros que se dividiam entre a concordância e a compreensão, e a relutância e necessidade de mais esclarecimento. - Na realidade ela era o prisioneiro, e os outros, eram os carcereiros. - Hesitou um pouco, como se tivesse dito uma bobagem. - Quero dizer... Ele era a prisão! Uma prisão para milhares de mentes que ficaram obrigatoriamente conectadas a cérebros imortais, sem chance de se desligarem, e que por serem poderosos telepatas, acabaram por desenvolver uma consciência coletiva.

- Entendo, mas... - Interrompeu Taulin. - Você descobriu isso antes ou depois do RY-3... Como se diz... Matar o DAMIATE?!

- Ele não o matou! - Protestou Filia. -Ele não pode ser morto! Não dessa forma!

Randol retomou o discurso, perante uma platéia ansiosa. - Quando Luriander fugiu, ele me passou uma mensagem que... Me ajudou a confirmar. Eu estava confuso! As referências de H.P.Vladminsky estiveram se encaixando perfeitamente, até que começaram a falhar. Agora só consigo encaixá-las com muita reinterpretação simbólica. Quando recebi a mensagem de Luriander, tive que me render ao fato de que não dava mais para contar com as referências HPs. As últimas informações do antróide... Dalmana, passaram a ser decisivas e me permitiram concordar que KUTLIU estava, desde o começo, em parte curioso, em parte pedindo ajuda. De um modo confuso, certamente, visto serem mil mentes estranhíssimas confinadas há meio milhão de anos. Mas acho que DAMIATE estava certo, e não quis destruí-lo como fez com os outros.

- Ann... O que me leva a indagar, senhor Randol... - Interpelou a estranha voz de Klubis, o Noxi. - Se é possível provar que o RY-3 foi o responsável pelo disparo que destruiu XUBNIGURAT. Eu preferia que não fôssemos responsáveis pela destruição de tal criatura, por mais que minhas companheiras e conterrâneos tenham agradecido que isso tenha sido feito.

- Bem... Na realidade creio que posso demonstrar isso de forma inequívoca. Se... Randol parecia extremamente constrangido. - Observássemos a imagem com...

- NÃO! - Reagiram quase simultaneamente algumas pessoas, incluindo Filia, que completou. - Pelo Universo! Isso não é necessário!

- Eu definitivamente não quero ver! - Adicionou Eli, um tanto envergonhado, e o próprio Taulin tentava disfarçar, mas parecia inclinado a concordar com seus companheiros. Klubis, por outro lado, foi mais taxativo. - Prezados companheiros. Entendo o grau de perturbação que essa criatura causa em todos, mas essa questão é da maior importância para meu governo. Se o disparo tiver sido efetuado intencionalmente por nossa frota, teremos que assumir parte da responsabilidade pela situação perturbadora que enfrentamos. Causar dano direto a qualquer conteúdo de uma descoberta como essas, especialmente a um ser vivo, colocaria em risco nossa prioridade sobre as informações arqueológicas que obtivemos.

- Exatamente, e em parte poderíamos ser responsabilizados também. - Completou Velek, que estivera tão envolvido em sua função de telepata que até fora esquecida sua condição de exo-arqueólogo. - Ademais... - Continuou com cuidado, mas parecendo querer mostrar que também não parecia compartilhar da apreensão dos demais em relação a observar novamente a criatura. - ...Se o disparo tiver sido efetuado por manipulação mentônica do RY-3, podemos responsabilizer DAMIATE com grau satisfatório de certeza, o que seria, nesse caso, mais confortável para todos nós.

- Tudo bem! - Gritou Eli. - Mas eu vou sair! - E se levantou já sendo seguido por alguns. Randol, porém, os deteve. - Esperem! Não precisamos usar o cenário completo, vamos reproduzir a imagem aqui, nessa pequena região, e podemos atribuir alguns filtros para... Torná-la menos desagradável. - Ainda que meio relutantes, todos concordaram. Embora alguns simplesmente tenham se afastado da pequena tela que Randol delimitava.

Então surgiu a imagem, da superfície do planeta, iluminada pela intensa luz branca do céu invertido. Primeiro foi mostrada uma das naves marou, pequenina, ao alto, captada pelo ZIG, que então direcionou a imagem mais para baixo, captando diretamente a criatura que fora batizada de XUBNIGURAT.

Mesmo em escala reduzida, e sob uma camada de falsas cores que a tornava parcialmente transparente, foi impossível, para a maioria, não sentir, ainda que escala menor, um pouco do terror que sentiram ao vê-la pela primeira vez, mesmo que todos ali jamais a tivessem visto ao vivo. DAMIATE explicara que aquele ser era, de certa forma, o contrário das seilans. O que elas produziam de arrebatador fascínio e atração enlouquecida, esse monstro gerava o oposto. Repulsa insuportável, asco hediondo, terror indizível só de olhar para sua aparência tão grotescamente asquerosa que a imagem, embora tenha sido liberada em toda a rede da frota, tivera uma quantidade de acessos e cópias menor que a quantidade de tripulantes. O que era cerca de 80 vezes menos que o normal.

Era difícil descrevê-la, até porque quase ninguém, incluindo o próprio Randol, conseguia olhá-la por muito tempo, de modo que apenas alguns segundos de contemplação eram suficientes para que a pessoa pulasse de susto caso alguém inadvertidamente lhe tocasse.

Talvez o que melhor a descrevesse fosse uma mistura horrenda de aranha e hidra, com detalhes de polvo. Seus tentáculos ora pareciam articulados e peludos, como os dos artrópodes, ora pareciam viscosos como os de um molusco. Parecia, em alguns momentos, haver ventosas, e em outros pontos garras afiadas, assim como ocasionais olhos, tudo misturado num caos de membros cujos movimentos pareciam milimetricamente projetados para causar nervosismo e angústia.

A feminilidade parece deter o monopólio dos extremos estéticos. Se é fácil concordar que o antropônico mais bonito possível provavelmente será uma mulher, ou no máximo um homem com aparência de mulher, de forma similar nenhum homem parece conseguir ser mais feio que a mais feia das mulheres, sem contarmos as deformidades extremas. Se o máximo do esplendor atraente em termos sensoriais poderia ser uma Deusa, ou uma feiticeira seilan, o máximo da repulsa também parecia ser algo essencialmente feminino. Era isso que se sentia ao observar aquela indescritível aberração. Como se toda a beleza feminina tivesse sido concentrada num ponto e então completamente invertida.

O assimétrico ser, cuja boca aparentava estar no topo do corpo bulboso, se é que poderia ser dito assim, devia ter cerca de 8 metros de altura em seu tronco, mais o dobro disso nos tentáculos que pareciam não incomodados pela gravidade assim como estariam se estivessem submersos. Tudo isso temperado por uma estranha e sutil névoa escura que ocasionalmente era expelida, e que, por sorte, até ajudava, dificultando que fosse plenamente vista.

Então Randol começou a rastrear frequências distintas, até que Eli interrompeu. - Por que não adiciona direto a visualização de aura?! Use espectro padrão invertido! - Randol deu razão, estivera perdendo tempo, seguindo o conselho, adiantou a imagem até um ponto desejado e tocou-a em baixa velocidade.

Podia-se ver a aura da criatura servindo de escudo em torno de seu corpo, gerando pontos de invencível resistência ocasional, e pontos de maior vulnerabilidade, então, numa rara e quase imperceptível variação, a criatura ficou desprotegida por uma fração de segundo, envolvida com uma aura tênue, que suportaria no máximo o disparo de um ZIG. Foi então que o raio nuclear veio do céu, disparado pela máquina de guerra marou, desintegrando total, completa e instantaneamente a criatura, para alívio dos que tiveram a infelicidade de avistá-la ainda viva.

- Vejam... Como eu disse antes, nenhum computador poderia prever esse momento de vulnerabilidade, e o telepata a bordo, ainda que estivesse em condições, não era habilitado para tal previsão, somente Luriander poderia ter antevisto, com sua micropremonição, o momento certo e ordenado o disparo, bem como somente ele poderia controlar o mecanismo de tiro com tanta precisão, visto que os computadores estavam danificados após os danos que a nave sofrera.

- Mas por que ele não fez isso diretamente? Bastaria erguer o braço e... - Era Keiko Xasanaia, a antropônica que estava na frota marou, que só então se apercebeu do óbvio. - Claro... Ele é humano também. Devia estar aterrorizado. Será que isso tem alguma coisa a ver...

- Com o fato de ele ter atirado em DAMIATE?! - Completou Xang Hitleria, já prevendo o que a colega iria insinuar. - Ah! Você e sua implicância com...

- DAMIATE o enviou direto para aquela monstruosidade! Não previa o que poderia acontecer?!

- Keiko... Querida... Depois. Por favor. - Xang silenciou a amiga com a ajuda do olhar aprovador da noxi. E começou a divagar, lembrando do acontecido.

XANG HITLERIA

Não bastasse o susto de ver tudo ficar branco, elas ficaram ainda mais assustadas quando a nave atingiu a fronteira fantasma e, ao invés de atravessá-la, simplesmente perdeu toda a potência, e todos os sistemas foram imediatamente neutralizados. O que antes era um limiar apenas completamente invisível, agora parecia se tornar intransponível. Além de paralisar a nave, uma força de repulsão a mandou de volta ao planeta, deixando-a à mercê da gravidade.

O noxi não ficara assustado naquele momento, já havia ficado antes, tendo antevisto o fato. Agora, apenas se resignava com uma expressão serena. Sem a imagem holográfica, as mulheres se moveram rumo a pequeninas janelas laterais na tentativa de visualizar o que acontecia. Continuavam flutuando sem peso, devido a queda livre, e Keiko passou a ficar ainda mais embaraçada em seus enormes cabelos, mas também pode observar bem o céu luminoso, as nuvens nítidas sob a luz branca, o chão negro não tão distante quanto gostariam, e em toda parte, naves sendo destruídas.

Após intermináveis segundos, ou minutos, a passividade de Klubis se tornava irritante, e agora as duas mulheres estavam abraçadas uma à outra, chorando e pedindo desculpas. Então, sentiram um baque. A princípio pensaram que os sistemas começavam a reagir, mas a nave parecia tão morta quanto antes, porém, o ruído assustador e inconfundível de algo amassando a fuselagem, só podia estar relacionado à leve diminuição na velocidade da queda. Seus corpos então foram descendo para a parte baixa da nave, enquanto o ruído irritante denunciava estragos na estrutura externa e a velocidade de queda parecia diminuir ainda mais.

Subitamente algumas luzes se acenderam, alguns sistemas começaram a operar, com baixo desempenho, e aparentemente sendo testados, até que os neutralizadores de gravidade e os impulsores começaram a funcionar. Curiosamente, o computador mental da nave continuava inerte, e os sistemas pareciam estar sendo ativados de fora. - "Mas o quê pode estar acontecendo?" - Ela pensou. - O quê?! Quem é?! - Gritou Keiko, olhando por uma das pequenas janelas. Finalmente o marou respondeu. - É o HiperMeta de DAMIATE. O RY-3. - Tão impassível quanto antes, a noxi completou. - Está tentando nos salvar.

- Está conseguindo. - Disse Keiko, notando que a nave agora estava se estabilizando, ainda a alguns milhares de metros de altura, imersa em nuvens que davam uma estranha sensação de segurança. Os sistemas agora pareciam voltar com força total, o computador despertou e a imagem holográfica foi restaurada, mas as fontes de energia continuavam comprometidas. Subitamente, ouviram no comunicador.

- Olá! Meu nome é Luriander. Sem tempo para formalidades. Estou tentando consertar sua nave. Alguém se feriu aí dentro?

Ficaram um tempo paralisadas, até que Klubis falou. - Não. Estamos bem. Meus agradecimentos.

- Preciso entrar aí dentro. Houve um dano nos micro condutores do reator que precisam ser consertados manualmente.

- Por favor. Esteja à vontade. A câmara de descontaminação fica logo...

- Ei sei. - Luriander respondeu e logo em seguida estava tomando um banho de gases e feixes luminosos com o objetivo de eliminar qualquer ameaça biológica, química ou radioativa. O sistema teve um pouco de trabalho para limpá-lo, mas logo ele apareceu, em carne e osso, ou melhor dizendo, em silicone e cristal de sílica, à frente dos 3 passageiros da nave.

- Claro que ele sabe. - Disse o marou com um sorriso tímido mas simpático, típico daquela boca de tartaruga que fazia lembrar um bichinho de pelúcia. - A formidável tecnopatia.

- É aquele hipermeta que tem poderes parecidos com o Magnetron? - Keiko perguntou, e após algum tempo, perceberam tardiamente que ele já estava lá, parado, olhos nos olhos com o noxi. Finalmente se aproximaram e se saudaram. As mulheres reagiram de modo um tanto embaraçoso. Keiko parecia constrangida, puxando os cabelos para trás. Xang ficou meio hipnotizada pelo visitante, que a fitou com um sorriso amigável mas discreto, querendo encontrar um jeito de falar.

- Com licença. Preciso abrir esse painel bem aí atrás. Por favor.

Era um gaiol estranho, com um sotaque indefinido, mas ainda assim compreensível. Então ela se deu conta de que estava bem na frente do acesso que dava para o centro da nave, onde ficava o gerador de energia. Ela demorou a reagir e abrir passagem, ele deslizou discretamente por ela rumo a uma pequena sala iluminada. Ainda flutuavam, pois o sistema antigravitacional da nave estava ativo, mas não totalmente, sendo parcialmente sustentada por impulsos iônicos. Com isso elas ficavam "pulando" lentamente, se elevando alguns metros do piso e demorando cerca de um minuto para cair de volta.

Estranhamente, isso pareceu piorar a situação de Keiko. Seus cabelos pareciam ter ficado ainda mais rebeldes, e a sensação de não conseguir se manter no alto, como gostava, aumentava a frustração. Ela ficou encarando sua amiga de um modo estranho, como se quisesse perguntar alguma coisa mas não encontrasse um meio polido de fazê-lo. Finalmente, após alguns ruídos estranhos ao fundo da nave, a antigravidade voltou por completo, o que foi um alívio, pois além de permitir a flutuação mais calma, também desativou os impulsores que produziam um ruído baixo e discreto, mas que só agora percebia-se serem incômodos.

- Não se preocupem com as outras naves de sua frota. Por enquanto, a criatura que as está atacando parece não distinguir as tripuladas, está destruindo exclusivamente os ZIGs. - A voz de Luriander soou um pouco abafada, vindo do interior do recinto do reator. - Além disso suas naves estão sendo bem eficientes, conseguindo manter uma distância segura com ataques coordenados.

Quando ele voltou, não demorou a perceber o clima estranho no local. Finalmente a noxi quebrou o gelo. - Muito obrigado senhor. Você salvou nossas vidas. Se não se incomoda, minha companheira gostaria de saber por que nos ajudou. - Keiko olhou de súbito para ela, como se tivesse sido traída em sua intimidade.

- É o que eu faço. Salvo pessoas. Fui criado pra isso. Em especial antropônicos. Com todo respeito. - Terminou a fala meio sem jeito, olhando para o marou, que no entanto retribuiu um olhar compreensivo. Xang finalmente teve coragem de falar. - Obrigada. Muitíssimo obrigada. Você... - Lutou contra o constrangimento. - ... Trabalha para o Lorde Mestre DAMIATE, não é?

- Sim. Ele próprio sugeriu que eu ajudasse vocês, mas eu já havia me decidido a fazê-lo antes. Pois independente disso, não posso permitir que pessoas morram se eu puder evitar. Faz parte da minha... Programação. - Disse aquilo com uma certa ironia. - Você é um ser humano. É livre! - Disse o noxi. Ele concordou com um aceno de cabeça. E então ficou reparando em Keiko, no modo como ficava afastando os cabelos do rosto. Tentara enrolá-los, mas eram lisos e sedosos demais. Então ele se aproximou. - Se quiser posso fixá-los eletricamente. - Ela ficou a fitá-lo, meio espantada, e então deu um sorriso do tipo "amarelo", quando se é pego numa situação vergonhosa. O sorriso foi interpretado como uma autorização e Luriander tomou suavemente as madeixas, passando um carga eletrostática, e então eles ficaram fixos, paralisados, para trás. Não era exatamente um estilo atraente, mas tinha perfeita funcionalidade.

Vendo agora a colega com o rosto livre, Xang foi tomada por um repentino sentimento de culpa. Não fora capaz nem de emprestar um de seus prendedores de cabelo para ela, mesmo quando estiveram à beira da morte. Se esquecera, claro. Antes, ela não o fizera de propósito, "Quem mandou esquecer?", mas ela o faria depois se tivesse sido capaz de se lembrar enquanto pensava no que poderia fazer naquele momento de desespero. Se sentiu subitamente insignificante, como já havia se sentido antes ao conhecer um Anjo Estelar. Não era Zentaris.

Ali estava diante do lendário RY-3, que não só voava no espaço como um Anjo Guardião Estelar, como podia penetrar sistemas eletrônicos como o Magnetron, e que, além de ser um herói que salvara a todos e consertara sua nave, ainda era capaz de fazer um fixamento capilar temporário mas eficiente! Subitamente ela começou a rir.

Keiko, por outro lado, parecia querer chorar. Ficou olhando para ele e reconhecendo um genuíno representante do tipo de pessoa que ela gostava. Ela tinha um ódio simplesmente irracional sobre a pessoa de DAMIATE. Algo que não era tão raro, mas que no caso dela não encontrava justificação direta. Jamais conhecera alguém que tivesse sido vítima ou descendente de vítimas de DAMIATE, mas por outro lado era comum em certos redutos intelectuais, exo-antropólogos inclusos, que ódio a DAMIATE fosse um tipo de estilo filosófico, visto ser Ele um frequente destruidor de seus objetos de estudo. "É uma questão de sensibilidade ética!" disseram-lhe certa vez, como se um exame intelectual e aprofundado da questão exigisse isso.

Curioso é que Xang, até por seu sobrenome Hitleria, já havia observado que grandes conquistadores da história remota de Madre-Terra costumavam ser odiados em vida, ou logo após a vida, mas passavam a ser admirados séculos depois, principalmente pelos leigos. Fora assim com Qin Shi Huang, Júlio César, Átila, Gengis Khan, Napoleão e Hitler. DAMIATE, porém, era algo radicalmente diferente. Primeiro porque estava vivo, e segundo por estar bem acima, enquanto super humano, desses outros exemplos. Mas isso permitia uma compreensão perfeitamente equivalente do problema. DAMIATE costumava ser admirado por aqueles que podiam se esquecer de que ele existia. Isto é, pessoas em sistemas estelares intocados e que podiam se dar ao luxo até de ignorá-lo. Além de por aqueles que haviam sido beneficiados por ele. Por outro lado, além de ser evidentemente odiado por aqueles que haviam sido prejudicados direta ou indiretamente por ele, costumava também sê-lo por todos aqueles que, apesar de não possuírem qualquer ligação sequer remota a ele ou seus feitos, o estudavam seriamente.

Conhecimento teórico e distanciamento pareciam ser quase infalíveis para que se odiasse DAMIATE. O conhecimento histórico costuma destacar a relevância do personagem para o curso dos acontecimentos. Quer tenha sido "bom" ou não, fato é que determinou a história como a conhecemos. Isso costuma trazer admiração para aqueles razoavelmente satisfeitos com o estado de coisas, e evidentemente reprovação para aqueles que sentiam o contrário. Mas este último era o caso da maioria devido ao onipresente Complexo de Paraíso Perdido que, quanto melhor for o estado de coisas tempo local, mais gera um irresponsável saudosismo por contextos passados jamais conhecidos. Por outro lado a distância, principalmente a temporal, poderia eliminar qualquer problema. Ela própria era descendente de hebreus, um povo que havia sido perseguido pelo personagem que originara seu segundo nome.

Finalmente, Keiko teve coragem de dizer. - Eu já li sobre você. Estou surpresa. Não é o tipo de pessoa que eu esperava que trabalhasse para DAMIATE.

- Não trabalho para Ele. É uma parceria. Ele me ajudou uma vez. Eu retribuo.

- Mas você... Parece tão doce. Como pode ser parceiro de alguém como ele que... Matou bilhões de pessoas como as que você mesmo se sente obrigado a salvar!? - Podia parecer meio brusco esse comentário para alguém que acabara de lhe salvar a vida, mas Keiko passou boa parte da vida esperando uma chance de conversar com alguém na posição de agente ou defensor de DAMIATE, e nunca encontrara nenhum.

- Mas isso foi há muito tempo.

- E você acredita que ele mudou? - Ela perguntou com sincera esperança de um "sim".

- Não. Ele não muda. Mas eu sim. Não sou tão antigo quanto ele... Mas aprendi que muitas coisas são menos evidentes do que parecem.

Ela se distanciou um pouco, um tanto chocada, e atacou. - E quanto a HAUTA?! Nove BILHÕES de mortos! Antropônicos! Dos mesmos que você se diz "programado" para proteger. Foram 9 bilhões em 3 dias!!! O que pode tornar isso... Menos evidente? - Ela teve medo de ofendê-lo, Xang e até Klubis pareceram surpresos e constrangidos, mas o RY-3 continuou impassível.

- Os hautans estavam à beira da auto destruição. Algumas nações haviam acumulado armas químicas e biológicas que quando lançadas iriam exterminar toda a vida do planeta, irreversivelmente. DAMIATE tentou impedir isso, participando ativamente das negociações e tentando conter os ânimos. Mas foi impossível. Quando percebeu que a guerra global era inevitável, ele preferiu atacar primeiro, poupando os hautans da vergonha de se auto destruírem. O ataque se concentrou especificamente em destruir todos os meios de lançar as armas letais, e elas acabaram só sendo usadas em contextos restritos, sendo impedidas de se espalhar pelo planeta. Sim. Foram 9 bilhões, mas ao menos alguns milhares de hautans sobreviveram, e passaram adiante o seu legado, e o planeta se revitalizou. Estive lá durante algum tempo, sozinho, naquele mundo selvagem. E é lindo. Pensei como seria triste se toda aquela vida tivesse sido exterminada.

- Ann... Mas não foi só isso. - Comentou Klubis, em parte retomando o tom formal que costumava caracterizar as noxis. - DAMIATE também testou uma hipótese que havia sido levantada há milênios, mas ninguém tivera a oportunidade, e ousadia, de fazer a experiência. A própria Aliança Hexagonal proibira qualquer tentativa de fazê-la, mas no fundo muitos esperavam uma oportunidade de saber.

- Saber o quê? - Perguntou Keiko.

- Se é possível acelerar a ocorrência da metanaturalidade por meio de uma redução brusca da população num planeta de campo mentônico livre.- Respondeu o noxi. - A ocorrência de metanaturalidade em HAUTA 6 era discreta, apesar de não haver barreiras no campo mentônico, devido ao excesso populacional. Com o massacre repentino em massa, aumenta extremamente a ocorrência de mentons livres que ficam disponíveis para as mentes dos sobreviventes, tornando a manipulação mentônica muito mais fácil.

- E... O que aconteceu? - Xang perguntou.

- Funcionou! - Respondeu o próprio RY-3. - Dentre os poucos milhões de sobreviventes, surgiram milhares de metanaturais, centenas de supermetas, muitos morreram em combates subsequentes, mas a supermetanaturalidade entre os hautans é forte até hoje.

- Uma experiência... - Disse Keiko, e continuou a conversar, até que o diálogo se reduziu a eles dois, deixando Xang e a noxi de lado.

Após algum tempo, porém, o RY parou, de súbito. - Tenho que ir. Ele conseguiu destruir uma das naves. Muito rápido!

- Então as seilans... - Dizia Keiko, tão distraída que não percebera o que ele dissera, mas antes que pudesse continuar, Luriander a impediu. - Destruiu outra! Oh não... DAMIATE queria que eu esperasse por Zentaris mas... Ele sumiu. Não sei onde está.

Xang sentiu um repentino desespero. - Por favor! Não vá! Não nos deixe!

Mas aqueles últimos momentos ficaram fortes na memória dela. Ele a olhou com um ar de piedade, como se fossem velhos amigos se despedindo, mas sua expressão deixava claro que tinha que ir. Quando percebeu que mais uma terceira das naves marou havia sido atingida, não pode esperar mais, saiu da sala, atravessou a comporta de descompressão e se lançou aos céus antes que ela pudesse insistir novamente para que ficasse.

IRIG

- Sente-se... Por favor. - Dissera Jalani, a comandante da frota kluman. De início fora uma ordem, como lhe era comum no jeito de falar, mas depois acrescentara o pedido com uma doçura até destoante. A princípio, estivera muito desgostosa pelo fato de, pela enésima vez, um homem kluman ter ficado naquela situação, mas não pudera deixar de empatizar com o sofrimento dele.

O biocientista Irig, de fato, estava arrasado, duplamente, e estivera ali para prestar o depoimento terminal que ajudou a decidir o destino da seilan. À volta dele, no ambiente circular que lembrava uma sala de dança, quase ninguém além da comandante e Velek, mas várias pessoas observaram remotamente. Fora uma requisição dele próprio. Estava envergonhado demais para se expor diretamente.

- Agora. Que você está mais calmo. Por favor. Conte tudo. Bem devagar. - Pedira novamente a curvilínea comandante Jalani. Irig demorou bastante, reprimiu um choro, e então começou.

- Não vai ser fácil. Eu mesmo... Não estou certo o que foi ilusão ou sonho. Prefiro deixar o telepata pensar sobre isso. Eu... Nós... Pensamos que poderíamos achar, a Quarta Revelação! Por isso fomos pro planeta e... Pousamos na beira de um dos rios, e quando chegamos perto de uma caverna, de onde saía o rio... Nós... Eu apaguei, e quando acordei, estávamos num local... - Cuidadosamente, ele descreveu como pensaram ter achado o livro, e feito a mais cobiçada descoberta que um kluman poderia sonhar.

- Não sei bem como aconteceu. Fui invadido de uma felicidade tão... Intensa! Que acho que fiquei aberto a qualquer outro tipo de ilusão, e os delírios de grandeza e as imagens de realização começaram a passear pela minha mente até que, não era mais eu. Não estava mais me reconhecendo, havia outras... Pessoas... Coisas, em mim! Era como se nós, eu e essas... Esses seres, tivéssemos nos unido numa grande peregrinação, numa comemoração! Éramos todos amigos, e íamos juntos para uma batalha final, fatalmente vitoriosa, e que estabeleceria uma nova era de grandeza!
Um sonho, com certeza. Daqueles idílicos, viajantes, sem sentido. Minha mente vagava por formas, símbolos, cores, sons... Hipnotizantes. Era eu! Eu sabia que era eu! Mas não onde eu estava, o que fazia, o que queria. Tudo se tornou, delírio. Então a reviravolta. Me lembro de estar voando, sendo levado por... Por ela... Até estar diante de... Um tipo de demônio! Não era só eu, éramos um exército, contra um outro exército que se reunia em torno dele. Ela... Minha irmã... Foi embora, voou para os céus e me deixou. Eu não tinha medo.
Meus... Companheiros... Eles estavam agitados, avançaram, fluíam pelo meu corpo, tão rápida e intensamente que me arrastaram com eles. Eu estava flutuando, me vendo por fora. Então só havia o demônio, que tinha aparêcia de um homem muito jovem, quase um garoto, e o meu corpo ali. Se encarando. Mas o que acontecia nos arredores de minha mente parecia uma guerra. Não sei quanto durou. Pois de repente... Ela apareceu!

Ele se alterara de modo flagrante, constrangido, temeroso, vacilante. A comandante ficou empertigada, impaciente, esperando que continuasse. Ante a demora, fitou o telepata, que acenou pedindo paciência. Quando estava prestes a protestar, ele recomeçou, em voz ainda débil.

- No começo pensei que era ela... Cemilion, minha adorada irmã esposa... Nós... Nunca tivemos nada além de laço frater... Não. Não adianta mentir. Não é? Tivemos sim. Uma única vez nos envolvemos sexualmente, mas depois vimos que não foi realmente bom, preferimos continuar como irmãos. Eu não sabia, mas acho que no fundo eu sempre desejei o contrário, mas não me dava conta disso. Pra mim, a parceria amigável parecia suficiente, até que, quando ela... ELA! Apareceu ali, me dei conta, para todo o meu espanto, que a amava de um modo totalmente diferente. Mas não era ela... Por quê?! Por que ela tinha que fazer isso?! Por que entrar em meus pensamentos, sonhos, minhas paixões de forma tão profunda que... Roubam tudo! Tomam tudo! Se tornam donas... Não podem deixar em paz nem os pensamentos e sentimentos mais profundos.
Mas naquela hora, nada importava. A multidão de companheiros que eu tinha ficou em segundo plano, quase imperceptíveis perante a força... Dela! Radiante, esplêndida, divina... Pelo Livro do Universo! Por que tem que ser assim?! Por que temos que ser tão... Fracos, vulneráveis, corruptíveis?! Quando eu a vi, não era mais Cemilion! E nem eu queria mais que fosse, foi só a ilusão inicial. Aos poucos ela foi tomando a forma de outras mulheres que amei, até tomar a forma de uma que jamais conheci, mas que sempre amei... A mulher dos meus sonhos. De repente, a mulher ideal, a que sempre considerei que era apenas uma deusa de sonhos, estava ali, diante de mim. E o pior... Ela não parecia kluman... As klumans não são loiras!
E o pior... É que a mulher ideal. A minha musa idílica! Aquela que nem conhecia a forma, estava à minha frente. Eu sabia que ela nunca poderia ser daquele jeito. Mas a... ELA... ela fez ser assim. Ela mergulhou nas profundezas do meu ser, fez surgir a minha
ANIMA, a mulher arquetípica que molda o que sou, e a transformou. ELA se tornou... Tudo o que eu sou, tudo o que amo. Roubou tudo o que eu tinha, e eu não tinha mais escolha a não ser amá-la, tão loucamente, tão desesperadamente que nem um monstro telepático despejando mentes de meio milhão de anos em mim conseguiu me tirar a atenção!
Ela ficou em frente do meu corpo... Eu tinha que voltar para o meu corpo! Ele tinha que ser meu novamente! De que outra maneira eu poderia tocá-la? Então eu vi, abri caminho entre os meus ex-companheiros mentais, que agora eram mais do que nunca, estranhos, invasores que tomaram meu corpo. Eu os expulsei! Com uma força que jamais pensei ter, e então, estava de volta novamente. Senti minhas mãos, meu coração, e abri meus olhos. Então eu a vi, com os olhos do corpo, aquilo que só havia visto com as profundezas da minha mente. E ela era mais linda do que tudo, a perfeição, a deusa.
Ao meu lado, o rapaz sorria, vitorioso... Mas eu não dei atenção. Eu caí nos braços dela, ajoelhei a abracei suas pernas, amaldiçoando o capacete que me impedia de beijá-la, tanto que... Tentei tirá-lo! Eu queria, sentir o cheiro dela, queria... Então apaguei... E... Quando acordei...

Ele simplesmente não conseguita terminar a frase, deixando claro que chegara na parte mais terrível. Os poucos presentes estavam quase tão arrasados quanto ele, chocados com a força do depoimento, a dor que a expressão e as lágrimas daquele homem despejavam. Então, a própria comandante decidira continuar.

- Então? Quando ele acordou, aconteceu o que, para ele, é o mais terrível. A seilan não estava lá! - Jalani pareceu tomar fôlego. - Ela o abandonou!!! - E então se virou e se encostou numa barra horizontal que circundava quase toda sala, como se descansando de um terrível esforço, e afastando os olhos de Irig. - Os termos da trégua estabelecida entre KLUMA e SEILA foram muito claros! Qualquer uso do poder de sedução das feiticeiras sobre um kluman, principalmente um homem, representa violação de gravidade 4! E ainda pior! No caso de tal ocorrência, abandoná-lo posteriormente sem o devido processo de tratamento mental descondicionante representa violação de gravidade 5! E esta mulher cometeu as duas! - E apontou para uma das telas holográficas, a mais discreta, fora do alcance visual de Irig, onde Lunis assistia a tudo, silenciosa. E a comandante acrescentou. - Além de assassinar uma mulher kluman, o que no caso, com os atenuantes, ainda representa violação de gravidade 3! Lembro ainda que essa mulher era nada menos que a irmã e esposa de Irig! E o dano causado a esse pobre homem! O estrago resultante do domínio mental que a feiticeira lhe impôs foi tal que ele, que amava a irmã, ao saber da morte dela, NEM SE IMPORTOU! Pois tudo o que pensava era na seilan que o dominou!

Jalani caminhou rumo a outras telas onde pode fitar membros da Pastor-6, das recém chegadas frotas de Madre-Terra e SEILA. - Diante disso, prezadas dirigentes, eu solicito que tomem as providências válidas nessas circunstâncias. Esta seilan não pode ficar impune por esses crimes. Como representante legítima e autorizada da Federação Kluman, reivindico o direito de julgá-la em corte composta por membros de KLUMA, SEILA e Madre-Terra, na proporção de 50% para os reclamantes. Isso é tudo. - Se afastou e sentou-se numa cadeira distante. Olhando seu conterrâneo, que parecia isolado. Então se arrependeu. Levantou-se e foi até ele, e o tomou pelas mãos, tentando consolá-lo, e levou-o para sentar-se ao seu lado.

A dramaticidade da cena obrigou os demais participantes a tomar algum tempo para acalmar os ânimos. Então, um homem magro e alto, calvo, com olhar severo e austero, falou brevemente com seus pares, outros juristas de Madre Terra, tomando a palavra. - Comandante Jalani. Estamos cientes da situação e compartilhamos de seus sentimentos, mas devemos agora tornar oficiais os seguintes atenuantes. Primeiro, da mesma forma como causou a morte da cientista Cemilion, a Senhora Lunis também foi obrigada a causar a morte da engenheira Selia, madre-terrestre, a bordo da nave principal da frota, a IANTIS. Não temos a menor dúvida de que, nesse caso, tal fatalidade foi inevitável, constituindo única forma de conter o fenômeno metanatural que ameaçava destruir a nave. Considerando que, de acordo com a mensagem enviada pelo hiper meta RY-3 antes de deixar o sistema NOVITA, que atestava que, segundo o próprio DAMIATE, a eliminação de Cemilion também era inevitável por motivos análogos, Madre-Terra aceita a constatação de que tal fatalidade também foi inevitável, reduzindo de gravidade 3 para gravidade 1, ou nula, o peso da infração, conforme deliberação ainda a acontecer.

O homem era um meta antropônico, isto é, uma espécie secundária antropônica madre terrestre que surgira na era dourada, tida como o novo salto evolutivo humano em Madre-Terra. Também conhecido como Homo superior, em contraste com o antigo, embora ainda em uso, nome científico da espécie antropônica madre terrestre, Homo sapiens. A proeminência encefálica já seria suficientemente para denunciá-lo, mas o modo como falava era especialmente típico, e irritante, para a maioria dos klumans, e ainda mais para seilans.

O motivo era simples. Meta antropônicos eram, na média estatística, inegavelmente mais inteligentes que os antropônicos normais, mas por outro lado nunca eram considerados geniais. Isto é. Estavam sempre no topo dos níveis de desempenho, mas eram sempre reprodutores de conhecimento, pesquisadores ordinários, comentadores de pensamento, jamais criadores. Não se reconhecia entre eles um único gênio criador. Eram capazes de dominar por completo toda a biologia oceanográfica madre terrestre, de um modo além da capacidade dos antropônicos normais, exceto o insuperável Lorde Xuminis, talvez. Mas não pareciam capazes de introduzir uma revolucionária teoria, uma arrebatadora descoberta, e muito menos uma inovadora ligação com outras áreas do conhecimento.

Artistas, pura e simplesmente não havia entre eles, que nutriam, por sinal, um pouco caso, senão um desprezo, pela maior parte das formas de expressão emocional, e em grande parte sentiam o mesmo por qualquer forma de inovação. Meta antropônicos eram conservadores por natureza, e nunca eram, importante frisar, metanaturais. A maioria das outras pessoas, em especial não madre-terrestres, tendia a antipatizar com meta antropônicos, que, por outro lado, em todos os outros aspectos eram idênticos aos antropônicos, constituindo cerca de 17% da população da Mãe-Terra, incluindo os híbridos, isto é, os cruzamentos com antropônicos normais, que eram obtidos em geral mediante alguma terapia genética ou nos raríssimos casos de sucesso espontâneo na reprodução natural.

Após algum tempo de pausa, ele tomou novamente a palavra. - Quanto à possessossedução do cientista Irig, provêm da mesma fonte, o RY-3, que foi uma requisição do próprio DAMIATE, na tentativa de libertá-lo do domínio telepático da criatura nomeada como KUTLIU. Três outros telepatas, incluindo Velek, concordaram que esse seria, de fato, o método mais rápido e eficiente. Considerando que a alternativa seria deixar Irig à mercê de um processo significativamente mais perigoso, ou até mesmo a morte, sugerimos reduzir a gravidade da violação para nível 2.

Embora já esperasse tudo isso, Jalani se sentiu surpresa com o quanto ficou frustrada. Sabia então que a próxima violação provavelmente seria reduzida para nível zero, pois como dizia o Homo Superior - Quanto a terceira violação, sua denúncia é inaceitável, visto que senhora Lunis requisitou perante a frota autorização para acompanhar Irig, e que esta foi negada por parte exclusiva e unilateral de Madre-Terra, ciente dos possíveis problemas de recuperação e comprometendo-se a arcar com as consequências.

- Em decorrência. - Continou o jurista meta antropônico. - Madre-Terra aceita o enquadramento de violações de gravidade 1, no caso da morte da cientista, e 2, no caso da posessão sedutora sobre a vítima em questão, na pior das hipóteses. No caso então, passemos agora a palavra para a representante de SEILA.

Em outra tela, uma lindíssima mulher, embora o lindíssima fosse pleonástico no caso de uma feiticeira seilan, tomou as atenções e pronunciou no típico, e previsível, tom autoritário das feiticeiras. - Como representantes legítimas da grande mãe SEILA, aceitamos as denúncias no nível sugerido pelos representantes de Madre-Terra, o que em nossa legislação implicará na punição de nossa irmã lunaxia Sanalunisim Krala Flexia com o exílio, de todo o território seilan, pelo período de 20 mil biociclos, sendo permitida somente em colônias secundárias ou sistemas com as devidas relações diplomáticas, no caso, recomendando Madre-Terra como destino para seu desterramento.

Jalani cerrou os dentes. Não esperava por essa. Se ela já estava a caminho de Madre-Terra, que efeito prático teria o exílio? Levantou-se e preparava-se para protestar, mas como se seus pensamentos tivessem sido lidos, o que no caso não era provável devido a distância, a seilan acrescentou. - Lembrando que a senhora Sanalunisim Krala Flexia estava a caminho de Madre-Terra por motivos pessoais e não relacionados à suas atribuições funcionais na administração seilan, o que faz com que sua punição torne sua visita voluntária em exílio compulsivo, recomendando sua fixação residencial em Madre-Terra e deixando a cargo desta sua autorização para visitar colônias suboordinadas.

- Madre Terra acrescenta... - Interrompeu o meta antropônico. - Que a senhora Lunis estará restrita apenas ao planeta e estações espaciais orbitais dentro de um radio global de 55 mil km.

Era o que lhe faltava para piorar o dia. Além de ser recusada sua requisição, ainda tinha que ouvir de uma seilan e um meta antropônico que tirar férias em Madre-Terra podia ser considerado algum tipo de punição! Jalani protestou, de forma veemente, até que finalmente foi lembrada que Madre-Terra relevou o ato de pirataria promovido pelos klumans, ao se aliar à Filia, todos sob efeito da perturbação telepática, e levar sem a devida autorização a nave GENIUS ao planeta fantasma, bem como o sequestro da nave auxiliar que os levou ao local onde foram sequestrados por criaturas do planeta, o que, afinal, levou à toda àquela situação.

Ela já se sentia derrotada quando então, como uma espécie de conciliação, Zentaris adentrou a sala. Ela se sentiu subitamente domada quando ele tocou seu ombro, e uma onda de calor e tranquilidade a fez relaxar. Foram estas as suas palavras.

- Senhora Jalani. Compreendo sua indignação e farei tudo o que puder para ajudar a aliviar o sofrimento deste pobre homem, mas entenda que fomos todos vítimas das forças sinistras deste planeta, e que ninguém pode ser especialmente culpado. Eu estive de fronte a criaturas que jamais esperei encontrar, e posso assegurar que a simples permanência naquele planeta era suficiente para tornar perdoável qualquer crime. Lembre-se da aliança de KLUMA com o Lorde Mestre DAMIATE, e que foi ele próprio, posso assegurar, que atestou a incontornabilidade da situação. Eu concordo que não havia solução mais viável naquela ocasião, e só lamento que não pudesse estar mais perto para tentar mudar o rumo dos acontecimentos. Em nome de nossa aliança, estabilidade e voto de confiança mútuo, entre as forças que estabeleceram a trégua, peço que aceite as soluções apresentadas.

Ela então respirou fundo, pensou por um momento e respondeu. - Em respeito aos serviços prestados por DAMIATE à KLUMA, aceitarei o acordo. - Voltou a se sentar, conformada, não podendo ignorar que a intervenção de DAMIATE e dos Anjos Estelares era muito forte, visto que KLUMA devia muito a eles. E longe dali, na outra nave, afastada ao máximo para que sua presença não tornasse impossível o depoimento de Irig, a feiticeira Lunis respirava, por um lado aliviada, por outro frustrada, pensando se poderia ter sido diferente.

LUNIS

Um de seus servos a abraçava e consolava, enquanto o outro se concentrava num ódio mudo contra a insistência dos klumans em querer transformar um ato heróico num crime covarde. Zentaris, sempre ele, que terminava por resolver a situação. Fora ele também que ajudara a convencer os madre-terrestres a aceitarem seu passe livre para a Mãe-Terra, passe que agora deixava de ser livre e se tornava compulsório. Era verdade, porém, que Velek fizera questão de isentá-la de qualquer acusação a respeito do ataque contra ele e o telepata cinzento, compreendo que estiveram sobre forte estresse mental.

Também era verdade que ela pretendia ir para Madre-Terra e lá ficar por bastante tempo, mas o fato de estar restrita ao planeta e a estações próximas, não poderia ir sequer até a Lua, era, ao contrário do que pensava a comandante kluman, extremamente desagradável e restritivo. Ela não esperava que tivesse que ser assim.

Ela decidira deixar SEILA voluntariamente. Tinha curiosidade sobre outros sistemas, e queria visitar o planeta que era seguramente o berço da espécie antropônica, apesar de muitas em SEILA dizerem o contrário. Ela nunca deixou de ser uma seilan, entretanto. Dentre seus objetivos, um deles era levar à Mãe-Terra um exemplo da superioridade seilan, mostrar um modelo inspirador. Tudo isso exigia, antes de tudo, um contato amigável. Sabia da parte fácil, o fascínio que elas causavam, que ajudava na recepção dos madre-terrestres, em especial os homens. Sabia da parte difícil, que era a resistência que tinham contra a inevitável dominação que isso representava. Para ser bem sucedida, deveria então abrir mão de qualquer forma de uso de seu poder sedutor, que seria sempre visto como uma ameaça.

Mas sua estadia na Pastor-6 praticamente resultara em desastre. Não somente vários tripulantes ficaram involuntariamente obcecados por ela, em especial Samuel Jerok, que só então, ela soubera, era uma meta antropônico disfarçado, como ainda por cima promoveram toda sorte de motins, rebeliões e hackeamentos completamente não requisitados nem bem vindos, que só tornaram sua situação mais problemática. Como se tudo isso não bastasse, ainda tivera que se indispor com os dois únicos klumans a bordo, sendo obrigada a matar uma e seduzir o outro. Seus servos, que segundo a tradição seilan eram responsabilidade dela, também foram especialmente responsáveis por boa parte dos ocorridos. Era difícil piorar.

Por sorte, havia um poderoso atenuante. Durante meses ela estivera à bordo da IANTIS sem qualquer incidente, até que chegaram ao sistema NOVITA. Assim, praticamente todos os ocorridos podiam ser explicados pela influência aterradora do campo telepático do Planeta Fantasma, e como sua participação no desenrolar dos acontecimentos foi vital, bem como quase todos tiveram também problemas graves de comportamento, então as circunstâncias reduziam radicalmente a gravidade de suas infrações, como o faziam para todos os demais.

Ocorre que o maior contribuidor de tensões culturais e sociais jamais foi o resultado final constatado por uma análise criteriosa e racional dos fatos, mas sim a força subjetiva, simbólica e passional com que os atos são revestidos no imaginário da população. A absolvição de um famoso e temido suposto criminoso por uma instância especializada é absolutamente irrelevante para restaurar sua imagem social se não conseguir reverter o impacto simbólico de tais crimes, ou ao menos sua associação com eles. De pouco adiantava ser considerada inocente de certos delitos, e ter atenuantes e justificativas fortes para outros, por que nada disso é transmitido pela mais sintética, e perversa das frases, como "A seilan que matou a cientista klumam." Tal frase causará uma reação passional imediata no ouvinte, e sua repetição, e variações mal intencionadas, causarão uma impressão negativa que o exame criterioso da situação já teria dificuldades para remover, e que será impossível de ser removido se não houver disposição para tal exame.

O comodismo racional das massas é algo que civilização alguma, por mais avanços educacionais que tenha conseguido obter, conseguiu eliminar. Mesmo porque a cada degrau subido pela média da população, os poucos expoentes sobem outro ou às vezes mais, mantendo uma elite intelectual sempre distante da mentalidade das massas. Os que decidem delicadas questões sempre são representantes dessa elite, por isso as sutilezas de suas decisões, pensamentos e descobertas sempre escapam à maioria das pessoas, que tendem sempre a reduzir a complexidade da situação a algum tipo de sintetizador simbólico quase sempre deletério.

Mesmo que chegasse à Madre-Terra como uma heroína, ela já sofreria uma quota de reprovação pelo fato de que os atos que praticara seriam vistos pela maioria da forma mais simples possível. E como se isso já não bastasse, ela chegaria na condição de uma exilada.

Ao menos havia uma notável compensação. Antes, ela esperava ser bem quista em Madre-Terra apesar de ser vista com desconfiança em SEILA. Agora seria o inverso.

Quando voara sobre o mundo negro e lúgubre de NOVITA-5 rumo ao confronto com a kluman possuída por XUBNIGURAT, ela só pensava em descobrir um meio de detê-la sem ter que matá-la, como ocorrera com Selia. Já tinha problemas demais para ainda por cima ser responsabilizada pela morte de uma representante da nação mais hostil à sua. Havia detectado a presença à sua frente, o caos mental de uma entidade definitivamente feminina, e definitivamente assustadora, penetrando na mente humana de uma mulher que, ainda por cima, permanecia definitivamente hostil.

Suas conterrâneas bem que poderiam ter-lhe avisado que estavam tão próximas, pois sua surpresa ao ver o céu ficar branco fora tão grande que por pouco não a deixara vulnerável a um ataque traiçoeiro que só não ocorreu porque provavelmente sua adversária ficara tão surpresa quanto. No momento em que vira o ponto negro no céu, entendera que era uma nave seilan invisível que perturbara a fronteira fantasma, e então soubera que não estaria realmente só na batalha.

Reconfortante, por um lado, decepcionante por outro, possivelmente inviabilizaria a glória de uma vitória pessoal. Foi um alívio quando ouviu - "Querida irmã lunaxia Sanalunisim, estamos prontas para auxiliá-la nesse combate, mas se preferir que não interfiramos, compreenderemos sua requisição, e só interviremos em caso de absoluta necessidade de protegê-la." - Ela agradeceu, e confirmou que preferia lutar sozinha, mas naquele momento estava caracterizada uma luta segura, que não seria de vida ou morte, pois ao menor sinal de que poderia ser derrotada, suas irmãs certamente agiriam.

Até pensara em perguntar se elas esperavam que o estranho fenômeno celeste ocorresse, mas não teve tempo. Sentira de imediato uma tentativa telepática de invasão partindo direto de sua adversária. Sob a intensa luz branca que agora vinha de todo o céu, ficou mais difícil avistar fisicamente o ponto luminoso que seria explícito se o planeta continuasse mergulhado na escuridão. Mesmo assim pode reconhecer. A mulher negra, bonita, grande como a maioria das klumans. Ainda vestia suas roupas espaciais acinzentadas, com capacete e acessórios, mas suficientemente justa para evidenciar seu corpo curvilíneo.

Elas ficaram paradas, a menos de 100m de distância uma da outra, flutuando a cerca de 3km de altura. Lunis envolta por sua bolha transparente e sua aura luminosa, imperceptível sobre o fundo branco, Cemilion apenas por uma aura multicolorida, com ligeira predominância de tons violáceos.

A possuída atacara primeiro, com uma descarga de energia incrivelmente intensa. Foi impossível desviar, restando à seilan simplesmente intensificar seu escudo e resistir, se movendo logo em seguida e contra atacando. Difícil entender por quê, mas a adversária foi atingida em cheio e pareceu seriamente afetada pelo ataque da feiticeira, que não fora dos mais intensos. A kluman despencara dos céus em queda livre, aparentemente inerte, deixando a seilan pensando se o confronto já não estaria finalizado.

Era difícil distinguir a vitalidade de Cemilion devido à aura estranha, o confronto com Selia não fora suficiente para compreender o espectro de aura de uma pessoa possuída por XUBNIGURAT. Quando já pensava em se aproximar e talvez até apará-la, a kluman começou a se mexer, e se recuperou poucos metros antes do solo, pousando com suavidade sobre a rocha negra, agora iluminada pelo céu branco.

Possivelmente, a mudança de cenário prejudicara a criatura, que podia não estar conseguindo se adaptar à situação que enviava novos e diversos tipos de onda eletromagnética para a superfície. De qualquer modo, a kluman parecia intacta, voltando a fitar a seilan com o olhar vazio. Lunis atacou de novo, desta vez com uma onda de luz desnorteante mais intensa mas menos letal, com a esperança de que isso finalizasse a luta sem matar a adversária. Mas desta vez foi inútil, e fora na verdade um erro, XUBNIGURAT seguramente havia aprendido com o ataque anterior, modulando sua aura para defletir a onda de luz e força vital neutralizantes. A feiticeira atacou de novo, desta vez com um feixe de calor suficientemente intenso para penetrar no escudo aura e causar um dano moderado. Funcionou, Cemilion foi atingida no baixo ventre, caindo de joelhos, mas sua aura subitamente se expandiu num escudo hemisférico, que absorveu por completo o outro disparo que poderia ter finalizado a luta.

Nada poderia deixar mais clara a diferença entre a criatura que a possuía, e a própria kluman, visto que embora a aura fosse poderosa e ainda capaz de deflagrar ataques ferozes e defesas resistentes, Cemilion já estava machucada, e seguramente já estaria fora de condições de agir se as circunstâncias fossem menos anormais. Lunis atacou novamente, desta vez com um raio de calor intenso tendo como objetivo enfraquecer o escudo. Numa fração de segundo, cogitou se não fora de propósito a estratégia da criatura, que talvez tivesse a intenção de provocar um ataque mais forte e depois abandonar a vítima à própria sorte, permitindo sua morte.

Reagira antecipadamente, com sua micropremonição, quando uma descarga elétrica se espalhara pelo ambiente, num ataque em onda, obrigando-a a subir. Tivera tempo para torcer para que o que KUTLIU descobrira sobre a rivalidade entre SEILA e KLUMA não tivesse sido devidamente transmitido à XUBNIGURAT, mas logo em seguida essa esperança ficara abalada, pois Cemilion pareceu despertar de um transe e se tornar bem mais consciente da situação do que a pobre Selia jamais fora durante o trágico duelo que travara na IANTIS.

E essa aparente sobriedade pudera ser telepaticamente percebida como temperada da mais típica revolta kluman contra as seilans, especialmente forte nas mulheres. A negra começou a se mover com gestos aparentemente intencionais, suaves, como posições ásanas de Yôga e expressões gestuais, e chegou a sorrir antes de usar as duas mãos para canalizar um jorro de anti-vitalidade tão intensa que era permeada por uma aura de anti-luz. Lunis teve que agir rápido, se movendo em círculos e logo em seguida gerando um escuro hemisfério à frente de seu corpo quando percebera não ser suficientemente veloz para se livrar do ataque.

Ficara então num dilema. Manter a bolha prejudicaria sua manobrabilidade, tornando-a um alvo mais fácil. Removê-la, por outro lado, eliminaria além de uma proteção a mais, a possibilidade de, elevando-se, acelerar a velocidades mais extremas, que poderiam promover uma distância segura. Optara por manter a bolha e subir alguns kms de altura, testando se a klumam se atreveria a voar. Não o fez, e então a seilan lançou a bola de cristal para um ataque remoto. Por meio dela, podia ver tudo, como se estivesse visualizando a imagem da câmera de um ZIG. Pôde ver a aproximação rapidíssima tentando atingir a oponente diretamente, como um meteoro, bem como o rebatimento rapidíssimo, feito de forma aparentemente manual, que enviou a bola para longe, de onde pode emitir uma série de ataques luminosos em frequência de cores distintas.

Era muito comum as seilans usarem esse tipo de ataque espectral, disparando raios em diversos tons cromáticos para aumentar a possibilidade de penetrarem as defesas da aura. Tal como ocorre com cores sólidas, um raio verde, por exemplo, tem maior penetração sobre um alvo vermelho, ao passo que um raio amarelo tem menor sobre um alvo também amarelo. Os raios multicoloridos tendiam a forçar uma variação espectral da aura defensiva, podendo promover uma fadiga prematura.

A aura da kluman, no entanto, reagia muito bem. Com modulações rapidíssimas, absorvia ou defletia praticamente todas as frequências com eficiência praticamente constante. Não fora isso, no entanto, que provocara a mudança de estratégia da feiticeira, mas o fato da mulher possuída subitamente começar a aumentar a intensidade da aura com tanta força que a mera visualização remota se tornou difícil, passando a afetar o ambiente provocando ventos fortes e descargas elétricas descontroladas.

Era difícil entender o propósito daquele modo de combate. Em geral, duelos deste tipo seguiam basicamente dois procedimentos padrões que podiam se dar de modo distinto ou conjugado. Um era lançar os mais diversos ataques com a maior variação possível mas que se concentravam na aura em si, exigindo remodulações constantes que demandavam muita energia, de modo a enfraquecê-la. A variação constante das frequências de aura podem antecipar o esgotamento. Nesse caso, arisca-se menos a integridade física do adversário, que tende a ficar antes cansado do que ferido.

A outra estratégia, evidentemente, era promover ataques mais invasivos, que se bem sucedidos podiam atingir o oponente com intensidade letal. É claro que isso também exige muito da aura, mas não em termos de variação, e sim em termos de sobrecarga. Metanaturais com espectros de aura mais amplos tendem a ter maior capacidade de variação e menor de intensidade, e vice versa. Como Lunis ainda não conseguira entender claramente o padrão de aura inimigo, usava as duas estratégias, com isso assumindo um risco maior de matar a kluman acidentalmente.

Mas XUBNIGURAT, mais uma vez, se mostrava inconstante em seus métodos, hora parecendo se dedicar a um confronto direto, hora parecendo mais interessada em causar danos ambientais e danos no próprio corpo possuído. Sem uma estratégia coerente para contra atacar, dava impressão que não havia muito interesse na luta. O que será que ela faria se Lunis simplesmente se retirasse?

Tentando elucidar essa questão, a feiticeira se afastou ainda mais, e logo estava distante cerca de 10kms da oponente, em diagonal. Foi então que percebeu o provável motivo do comportamento. Com a distância, o monstro passava a aumentar a área de influência de seu poder mais sinistro, a perturbação mental que afetava em especial as mulheres. Um estranho campo de opressão parecia ficar cada vez mais sólido, tanto que as irmãs da feiticeira, que assistiam a tudo do interior de sua nave, não demoraram a notar. Lunis, que já estava há muito tempo no planeta, parecia ter desenvolvido uma resistência, mas suas conterrâneas começaram a ficar estranhamente nervosas. Percebeu que era melhor partir para a abordagem contrária.

Num mergulho espantoso e aparentemente suicida, rumou contra a kluman, enviando a bola de cristal para um outro ângulo e abrindo fogo em duas frentes. Ainda envolta num campo espaçoso de energia que girava um vórtice ao seu redor, a mulher negra ficou envolta em uma aura mais intensa a medida que o campo de influência opressiva diminuía. Ela tinha que optar entre uma abordagem expansiva e mais sutil, e uma concentrada e mais explícita, e no caso, era a última.

A violência do ataque da seilan obrigou Cemilion a se mover, se afastando do foco dos disparos, a feiticeira foi atrás e quando já estava a algumas centenas de metros desativou a bolha de vôo, intensificando a aura num escudo corpóreo e partindo para uma ofensiva muito mais direta. A poucos metros de distância da adversária, penetrara dentro da pequena tempestade que esta produzia, e começou a atacar mais diretamente, exigindo uma defesa mais pontual. Assim que a criatura ordenara um escudo frontal mais denso, Lunis ordenou à bola de cristal que atacasse por trás, forçando a inimiga a dividir sua atenção, com isso, pode se aproximar ainda mais.

Sua idéia era simples, procuraria a todo custo remover o capacete da adversária. Embora houvesse oxigênio suficiente para respiração, outros gases mais exóticos e a pressão atmosférica diferenciada deixariam Cemilion tonta em pouco tempo, e num prazo maior, comprometeriam sua capacidade de se manter consciente. A exposição prolongada poderia gerar condições pulmonares perigosas, mas bastaria alguns minutos para que a aura vital tivesse que dobrar seu consumo na manutenção pura e simples do organismo. Lunis, que usava uma eficiente máscara filtrante, foi reduzindo a distância entre elas com ataques diretos e constantes, e agora, entrava na proximidade de mais efetivo uso da micropremonição, e não demorou a levar vantagem sobre a adversária que, apesar de também poder antecipar frações de segundo no futuro, enfrentava o problema da distância entre o corpo possuído e a fonte original, bem como não podia contar com uma agilidade física tão notável quanto a da feiticeira. Pelo menos até que XUBNIGURAT projetasse uma parcela maior de sua mente e ou corpo astral para a possuída, como fizera antes com Selia, ela estaria em franca desvantagem, com o agravante de que agora não poderia fazê-lo sem denunciar sua posição real, que estaria bem mais próxima do que na ocasião da luta a bordo da IANTIS. Se ela pudesse detectar com precisão onde o corpo do monstro se localizava, poderia partir em seu encalço e ou, nesse caso, pedir auxílio a suas conterrâneas.

Funcionou, se aproximaram a ponto de trocarem golpes manuais, carregados de energia, mas mesmo assim próximos o bastante para que o choque mecânico de um soco ou chute pudesse ser mais decisivo do que as descargas de força vital, luz, calor ou eletricidade. A kluman tentava se afastar, o que era um bom sinal, mas não conseguia, e finalmente, após bloquear um amplo chute da adversária, a feiticeira conseguiu atingir em cheio o vidro do capacete, trincando-o por completo e tornando-o inútil para efeito de visualização. Num outro movimento, aproveitando a cegueira temporária da oponente, rompeu o capacete e o arremessou longe, em seguida usou as próprias unhas para ir rasgando as roupas, a fim de aumentar ainda mais o escape dos gases de manutenção, expondo o corpo de Cemilion à temperatura e pressão ambiente para o qual ainda não estava totalmente adaptada.

Em pouco tempo, a luta parecia decidida. A mulher negra tinha a aura toda concentrada num escudo corpóreo vitalizante, para garantir o devido funcionamento do corpo, e com isso enfraquecia todas as suas outras capacidades. O passo seguinte era inevitável, XUBNIGURAT teria que transferir uma dose maior de sua força, talvez até o ponto de controlar o corpo como se fosse um marionete, como fizera antes com Selia, só que desta vez isso teria um preço fatal.

Não demorou a sentir o corpo de Cemilion caindo de exaustão ao mesmo tempo que parecia ficar cada vez mais macabro, visto que seus movimentos perdiam a graça original e se tornavam mecânicos, duros e desajeitados. A mente da kluman sumiu completamente, e agora qualquer colaboração que seu ódio natural pelas seilans estivesse oferecendo cessaria. A principal vantagem seria que agora ela poderia lançar toda a sorte de ataques telepáticos sem medo de danificar a mente da humana que agora estava completamente inconsciente do que ocorria. Concluiu então que havia muito em jogo para desejar uma vitória pessoal gloriosa, e então pediu ajuda telepática de suas colegas.

O ataque mental veio como um chicote, atingindo em cheio a mente estranha que controlava o corpo.

Como ela pudera cometer tal erro?! Não cansava de se perguntar. Óbvio que era exatamente isso que a bizarra entidade queria. É impossível lançar um ataque telepático sem ao mesmo tempo abrir um canal que permita um contra ataque, que só pode ser contido com uma capacidade mental superior. Mas que tipo de mente tinha aquela criatura?

Em pouco tempo o campo de perturbação a atingiu com o dobro da força, e ela sentiu um súbito e injustificado medo, que ameaçava se transformar num paralisante terror. Suas irmãs, dezenas de kms acima, também foram afetadas, de modo menos intenso, pois estavam reunidas num grupo mental uno e muito forte, mas insuficiente para atacarem novamente. O pior agora era que se concretizasse o que DAMIATE dissera, que um horror inexplicável se apossasse dela e suas colegas, a ponto de deixá-las completamente indefesas, visto que estados emocionais muito extremos perturbam a aura à ponto de poder inviabilizar os poderes.

Mas se o caminho já estava aberto, não adiantaria tentar fechá-lo. Atacou novamente com uma violenta rajada de luz e pediu outro ataque telepático. Não veio, e ela própria o fez, tentando ao menos perturbar a adversária. Outro erro, o canal abriu ainda mais e ficou evidente que XUBNIGURAT não sofrera nenhum tipo de dano, e o terror irresistível aumentara ainda mais.

Foi então que pediu ajuda de uma forma ampla, esperando, talvez, ser auxiliada até por DAMIATE. Para sua surpresa, porém, sentiu um alívio que não parecia resultante da ajuda de nenhuma mente conhecida, na verdade era como se algumas vozes viessem em seu socorro enquanto outras tentavam detê-las, e outras, ainda atacá-la. Apesar da estranheza inicial, após algum tempo pensou notar alguma familiaridade naquelas mentes, mas não podia mais pensar nisso, e aproveitou o momento para voltar a atacar.

Desta vez suas colegas não esperaram o convite, e também não usaram ataque telepático, lançaram uma rajada de luz tão intensa vindo do alto que conseguia ofuscar até mesmo o espaço invertido do céu branco. O ataque atingiu a kluman uma fração de segundo antes da feiticeira conseguir atingí-la com um golpe manual certeiro e direto, e como a aura fora drasticamente reduzida, o impacto no abdômen causara um estrago severo, partindo a coluna e esmagando um dos pulmões. O corpo de Cemilion foi lançado inerte ao chão, e agora o momento era decisivo. Se conseguisse cortar a ligação entre a vítima e XUBNIGURAT, ainda poderia levá-la até a nave de DAMIATE, onde robôs medicinais poderiam impedir a falência do organismo com alta chance de sucesso. Mas para isso tinha que agir numa velocidade quase desesperada. Invocou tudo e todas para se unir a ela num ataque telepático direto na conexão com a aura, e foi atendida prontamente por suas irmãs e, mais uma vez, por algumas das mentes que já a haviam ajudado, bem como pela mente de DAMIATE, e então um coletivo arrasador conseguiu neutralizar totalmente a presença da criatura, libertando a kluman de qualquer influência direta.

Mas a seilan não teve tempo de ter esperança, a voz de DAMIATE invadiu sua mente. - Lunis! Você tem que matá-la! Destrua o corpo imediatamente! - Ela ficou chocada, não conseguindo entender como aquilo poderia ser necessário. - XUBNIGURAT transformou o corpo dela numa Horcrux, depositando parte de sua vitalidade, enquanto o corpo de Cemilion tiver vida, mesmo que o de XUBNIGURAT seja destruído, ela poderá se reconstituir! Indefinidamente! Será impossível destruí-la enquanto o corpo de Cemilion estiver vivo! É pra isso que ela o está usando! A luta é só pra distrair!

Mil perguntas explodiram na mente da seila. Como DAMIATE podia saber aquilo? Como é possível transferir tal vitalidade a tal ponto de permitir uma reconstituição posterior? O corpo da XUBNIGURAT era fotoplásmico? Como poderia haver tanta vitalidade oculta no corpo de Cemilion se não havia mais sombra da mente alienígena ali?

Suas divagações foram interrompidas quando percebeu que suas colegas haviam detectado a presença do corpo original antes ainda que ela própria o fizesse, o que aconteceu no momento em que sentiu uma conexão se reestabelecer. Não estava longe, menos de uma dezena de kms adiante, numa caverna subterrânea. Levantou vôo, ativou a bolha cristalina e partiu rumo ao novo, e verdadeiro alvo, ignorando a instrução de DAMIATE. Antes que lá chegasse, um raio poderosíssimo veio dos céus, causando uma violenta explosão na rocha e abrindo uma cratera enorme. Lunis se aproximou, sabendo que foram suas conterrâneas que haviam exposto a criatura. Atravessou a nuvem de fogo e fumaça pensando que finalmente ela estaria de frente para XUBNIGURAT.

Finalmente descarregaria toda a sua fúria contra o monstro que de fato a merecia.

DALMANA

Dias antes, tivera tempo para analisar novas informações trazidas pelos ZIGs e pelos HiperMetas. Inclusive pôde, com ajuda de Zentaris, visitar brevemente duas das outras cidades, numa das quais pode contemplar outra galeria com um vasto painel de símbolos luminosos. Naquele momento, com o caos à sua volta, sentia-se um tanto impotente. O céu branco havia sido tão chocante que trouxera aquela sensação de ainda não saber nada sobre o que se passava, o ataque aéreo contra a frota marou, que poderia se estender para ele, era também uma preocupação constante, ainda que a nave estivesse voando próxima ao solo e usando seu sistema de camuflagem. A feiticeira e DAMIATE se lançaram em combates mortais contra duas das mais perigosas criaturas do planeta, e era nisso, principalmente que ele pensava no momento.

Pensava que algo escapara. Algumas informações não se encaixavam. As 7 criaturas, as 6 principais cidades. Havia algo errado. Reinterpretando os símbolos, agora pensava que os monstros não eram guardiões ou 'moradores' das profundezas de cada cidade, mas sim que tinham apenas sido criados nelas. E sim, os símbolos, e alguns desenhos adicionais, sugeriam que não eram espécies naturais, mas seres artificialmente projetados. Percebeu também que havia uma curiosa divisão entre os 7 seres, uma espécie de classificação funcional por características específicas.

Era 4 grupos, 3 deles constituídos por uma única criatura, e o restante pelas outras 4. Isso ficara nítido num esquema imenso que localizara numa das cidades, que estivera associada, aparentemente a IOGSOTOT, o senhor dos portais. Ele próprio ocupava um dos conjuntos unitários da classificação. Fazia sentido, pois aparentemente sua função era controlar o espaço à volta do planeta, podendo criar portais mas estando de prontidão para, principalmente, impedir a criação de outros. Agora entendia porque DAMIATE decidira destruí-lo o quanto antes, pois ele dificultava seu teletransporte.

A outra categoria pertencia a AZATOT, o monstro nuclear, que agora sabiam, estava em torno do centro do planeta, e controlava basicamente o escudo de invisibilidade. Devia estar, neste momento, bastante perturbado com a inversão da fronteira fantasma.

Era na terceira categoria que Dalmana se concentrava agora, a mais significativa. Não teria ficado surpreso se a mesma incluísse todas as demais criaturas, mas na realidade incluam NIARLATOTEP, XUBNIGURAT, DAGON e MIGO. E o mestre dos sonhos, KUTLIU, estava de fora, numa outra categoria, cujos símbolos sugeriam, paradoxalmente, hora algum tipo de inferioridade, hora superioridade. Notou então que parecia haver algum tipo de tensão entre esses dois últimos grupos, ou seja, entre KUTLIU e os outros 4, visto que os demais, AZATOT e IOGSOTOT, pareciam antes máquinas sem mente do que seres intencionais.

Se lembrou então de algo estranho que acontecera. O anjo estelar dissera que a mente de Selia fora capturada por KUTLIU, mas ao mesmo tempo souberam que fora possuída por XUBNIGURAT, e agora se lembrava que Cemilion também fora vítima das ilusões e sonhos de KUT, mas novamente, foi possuída por XUB. Por outro lado Lunis e Viuik foram atacadas apenas por KUT, a feiticeira parecia imunizada contra XUB, mas a dobuk parecia ainda mais vulnerável à tudo.

Foi então que se deu conta de que, sendo uma multiplicidade de mentes, KUT não era um único ser coeso, ainda que suas mil mentes, ligadas aos mil cérebros, houvessem desenvolvido alguma coletividade, era altamente provável que estivessem agindo de forma desarmônica! Era perfeitamente possível que estivessem até mesmo lutando entre si. Isso explicaria o fato de KUT estar num grupo separado de NIARLA, DAG, XUB e MIGO, que de certo aparentavam ser bem mais coesos e mono mentais. Exceto talvez DAGON, que Zentaris confessara ser por demais intrigante, pois embora aparentasse ter uma mente única, tinha traços de outras presenças.

Mas não só isso, não apenas uma questão de mera quantidade de mentes, mas principalmente o fato de que os 4 pertencentes ao terceiro grupo pareciam ter funções específicas muito bem definidas, sugeridas por descrições cujos símbolos, similares a alguns que acabara de obter penetrando da rede informacional da frota marou, estavam associados a deveres e obrigações, trabalhos, devidamente definidos em harmonia com todo um plano gerencial planetário. Até mesmo os outros dois dos grupos anteriores, AZA e YOG, tinham funções definidas, embora fossem mais físicas que comportamentais. Por outro lado, à KUTLIU não era atribuída função alguma! Nada se exigia dele.

A conclusão era inevitável. Se aquele mundo era de fato uma prisão, o era para as mentes conectadas aos cérebros de KUTLIU, que eram mantidas cativas pela ação dos demais monstros, e isso só não fora mais óbvio por que ao menos algumas delas agiam umas contra as outras, possivelmente colaborando com os "guardas" do planeta em troca de favores ou outras coisas, mas que agora, pareciam estar em franca rebelião. Isso, no entanto, não mudava o fato de que o coletivo mental de KUTLIU era capaz de se espalhar por mentes próximas numa teia de conexões que poderiam ter as mais imprevisíveis variações.

Mas seus pensamentos foram interrompidos quando a dobuk, que dormia num dos quartos, gritou assustadoramente. O antróide correu para verificá-la e a encontrou em violentas convulsões. Conseguiu segurá-la a amarrá-la na cama, para que não se ferissem. Ela se acalmou por um momento, e então, numa voz embargada, quase ininteligível, disse. - É agora... Não dá mais pra escapar... - Por um breve momento ela se alegrou. - Pelo menos acabou... Ele me prometeu. - E então teve um último e violento espasmo, seus olhos se tornaram vazios, e ela caiu desfalecida.

Morrera. O antróide percebeu. A mente se fora, e o choque cerebral fora suficiente para inviabilizar o funcionamento do corpo. Deduzira que DAMIATE a usara contra KUTLIU, num ataque decisivo que fora demais para a pobre dobuk. Por um momento, teve raiva do Lorde Mestre. Como podia usar a vida de alguém daquela forma? Ou será que não tinha escolha?

Só rezava para que tivesse valido a pena.

Muitas horas depois, finalmente soubera do ocorrido. XUBNIGURAT e NIARLATOTEP foram destruídos pelas seilans e os marous. DAGON foi destruído por Zentaris, e DAMIATE havia sido destruído por Luriander. Achou que nada mais fazia sentido, mas percebeu que algo de fato mudara. Quando o campo de invisibilidade do planeta brilhou ainda mais intensamente, ficou nebuloso e finalmente voltou ao normal, então entendeu que AZATOT não tivera escolha em aumentar seu alcance dimensional até o ponto de desviar a própria gravidade, e muito mais, até o ponto em que saíra do próprio campo mentônico.

Dalmana fora o primeiro, e talvez o único, a realmente entender porque o Planeta Fantasma desapareceu sem deixar rastro, como se fosse removido da existência, principalmente porque ele, por pouco, não desaparecera junto, tendo escapado um instante antes que tudo estivesse terminado.

ZENTARIS

Quando o Guardião Estelar cortava os céus em velocidade máxima para se juntar ao RY-3 na luta aparentemente decisiva, estava incomodado por duas dúvidas. Uma era DAGON. Qual seria sua função? O que fazia ali naquele planeta? Durante muito tempo pensou que fosse inofensivo, apenas uma grande criatura errante vivendo entre outras nada inocentes, mas depois percebeu que, com toda aquela organização, teria que ser algo mais.

A outra questão era relativa ao Plano Astral. Ora, o Plano Mental é uma instância sutil da natureza que permite a viagem de ondas mentais por meio de um substrato mentônico sensível somente a elas. A mesma malha mentônica que é completamente insensível aos mais extremos eventos físicos, como explosões de anti-mátéria, reage de imediato a um simples pensamento consciente, propagando-a indefinidamente por uma dimensão onde a degradação termodinâmica é inexistente ou desprezível. Mas no Plano Mental puro, em geral, a maioria das mentes soltas, isto é, sem um corpo, perde sua individualidade, sendo absorvida numa mente coletiva ou dissolvida num caos mentônico. A individualidade, para ser garantida, exige que se construa algum invólucro que isole em algum grau uma mente individual, isto é, um agregado mentônico identificável sensciente. Esse invólucro é corpo astral.

No chamado Astral Superior, é criado o código genético desse corpo Astral, as instruções básicas necessárias para produzi-lo, com características específicas. Tal construção de densifica no chamado Astral Médio, onde as instruções mentônicas tomam formas claramente definidas, que permitem a um agregado mentônico se manter contínuo e específico. A multiplicidade de criações diretas, seus próprios corpos, e indiretas, projeções externas, constitui um mundo à parte, o Plano Astral Médio é, na realidade, o Plano Astral propriamente dito, uma vez que o superior é apenas uma instância emuladora que conecta-o com o Mental, e o Inferior, o que aproxima-o do Plano Físico, que é, basicamente, um Astral inúmeras vezes mais denso, indireto e isolante.

A questão era: Onde estava a população astral daquele planeta? Mesmo antes do massacre de nativos promovido por DAMIATE, deveria haver alguns facilmente localizáveis, visto que os seres senscientes, ao morrer, tinham que deixar um corpo astral ao menos por algum tempo, antes que a fraqueza da individualidade fosse tal que ele se dissolvesse também. Mas durante todo o tempo que observou, só viu entidades em astral na necrópole gigante onde resgatara os exploradores, e não estavam ali por acaso, foram lançados deliberadamente. Isso significava que havia algo que aprisionava a população Astral assim como KUTLIU aprisionava a Mental, podendo liberá-la para cumprir seus propósitos.

Então, é claro, percebeu que suas duas dúvidas se solucionavam em uma única explicação. O ser que controlava os astrais devia ser DAGON, visto que dois outros já estavam mortos, AZATOT não parecia sequer ter uma mente individual, NIARLATOTEP era pequeno demais para gerar uma prisão astral tão grande, KUTLIU com certeza não era e XUNIGURAT só o seria para entidades femininas.

As mentes ligadas ao cérebro de KUTLIU provavelmente não tinham corpo astral, isso era plausível, visto não terem sequer um corpo físico próprio, mas caso o desenvolvessem, na tentativa de conquistar alguma independência, este provavelmente seria capturado por DAGON! Isso explicava tudo! E se fosse verdade, era bem possível que estivessem à mercê de uma ameaça inesperada ainda mais terrível do que tudo o que já viram.

Não podia arriscar, tinha que descobrir isso naquele momento. A única forma era lançar seu corpo astral e deixar seu físico no automático, que manteria o curso de vôo rumo ao local de encontro com Luriander, embora isso diminuísse sua velocidade e tornaria sua reação tardia caso fosse atacado. Mas era um risco que tinha que correr. Separando-se de seu corpo, expandiu sua percepção astral na tentativa de rastrear algum sinal, e foi muito mais fácil do que esperava. Pôde notar claramente um punhado de corpos astrais bizarros sendo atraídos para algum lugar no subterrâneo no planeta, e seguiu-os por um tempo.

Com a certeza praticamente plena, decidiu se transferir instantaneamente para onde sabia que DAGON estava, próximo a uma das cidades menores, sob o imenso iceberg de um dos lagos. Como já havia estado no local, só precisou se concentrar e então estava lá, em astral, e pode ver o imenso peixe sugando uma miríade de corpos astrais para uma imensa esfera em torno de si. Tudo isso era invisível do plano físico, e ainda que ele tivesse percepções astrais mesmo estando no corpo físico, elas teriam que ser conscientemente ativadas, e mesmo assim não seriam tão sensíveis quanto eram agora. Por isso só então ele pudera ver o que significava aquele ser tido como inofensivo até então.

Era um aglomerado de fantasmas dos mais diversos tipos, onde pôde claramente reconhecer espécies similares às que vira na Cidade Fantasma. Nitidamente uma prisão, aquela imensa esfera luminosa rebatia violentamente qualquer tentativa dos astrais cativos em atravessá-la, mas a maioria nem tentava, parecia já devidamente conformada em um imenso exército fantasmagórico pronto para desferir um novo e temível ataque. Como se organizavam em torno de um corpo físico, estavam imersas no Astral Inferior, escondidas do Astral Médio.

O anjo foi percebido, e a esfera astral ficou mais agitada. Ainda estava capturando entidades que vinham de diversos pontos do plano astral planetário, certamente resultantes das vítimas do massacre. Após uma morte, principalmente se muito rápida, é comum o astral ficar difuso, inconsciente, como se dormisse em pleno mundo dos sonhos, o que, aliás, é o que acontece quando a maioria dos seres senscientes dorme. Mas cedo ou tarde acaba havendo uma densificação, a não ser nos casos de baixíssimo nível de individuação ou auto dissolução voluntária, caso que dificilmente ocorreria em seres de nível de inteligência tão baixo. As entidades vinham sendo localizadas e trazidas o mais rápido possível, e era provável que muitas resistissem, bem como ainda não tivessem sido rastreadas, o que sugeria que DAGON ainda teria muito trabalho pela frente. A presença do anjo, no entanto, exigiu a antecipação da operação.

Provavelmente DAGON planejava lançar um ataque surpresa atingindo todos no planeta, e possivelmente se lançando para além da fronteira invisível, agora visível, pois astrais eram completamente imunes àquele tipo de barreira. Se pudessem alcançar as frotas mais próximas, os resultados poderiam ser catastróficos. Até agora, todos foram vítimas do campo telepático de obsessão mental, e de influências astrais sutis, o que seria insignificante diante de um ataque maciço de astrais devidamente preparados. Não teriam efeito algum nos objetos físicos, mas seriam devastadores para as mentes senscientes dos tripulantes, e possivelmente até para os computadores mentais. Só as Espadas Espaciais seriam insensíveis, e também completamente cegas para o que estivesse acontecendo.

O monstro fizera sua escolha, e lançou de imediato um ataque maciço contra Zentaris, uma horda de fantasmas dos mais diversos e horríveis tipos, porém claramente ordenados num grupo coeso e equivalente, que fluía como um raio. Mas, mais uma vez, Zentaris mostraria porque era um dos maiores HiperMetanaturais de todos os tempos. Criou um escudo mental poderoso, constituído de mentons livres repulsivos, que ao atingir as subestruturas astrais, que são essencialmente mentais, agia como uma parede sólida ainda por cima suficientemente energizada para ferir até mesmo ao mais leve toque.

Era como um jato d'água atingindo um hemisfério de vidro. Os fantasmas eram rebatidos por toda a parte e vagavam impotentes por alguns momentos, até voltarem à sua fonte e se integrarem na fila para seguir novamente no fluxo. Uns poucos permaneciam vagando, e iam se aproximando mais lentamente, por volta do anjo, o obrigando a expandir o hemisfério em torno de si até uma esfera completa, isolando os seres que tentavam atacá-lo por trás.

Não poderia resistir para sempre, e o monstro parecia saber disso, tanto que em nada mudava a estratégia de ataque, mantendo o fluxo ofensivo no mesmo ritmo e deixando que se acumulassem mais e mais fantasmas dispersos em torno da esfera. Cedo ou tarde, eles a perfurariam.

O Anjo Estelar era reconhecidamente pacifista, evitava ao máximo possível causar a morte de qualquer criatura sensciente, isto é, a desintegração de sua individualidade corpórea, quer fosse física, astral e sobretudo mental. No entanto, havia muito em jogo, teria que passar à ofensiva cedo ou tarde, e lançar ataques mentônicos desagregadores, que dissolvessem radicalmente os espectros que, nesse caso, tendiam a ter baixa resistência.

Foi o que aconteceu. Mantendo a esfera em torno de si, começou a ocasionalmente lançar raios que desintegravam os que tentavam penetrar em outros pontos da esfera. Isso causava um desgaste adicional, não podia manter o escudo e lançar ataques ao mesmo tempo sem comprometer algo, ainda mais com seu corpo físico ativo, e distante, voando a alta velocidade. Com isso, não demorou a perceber que seria impossível deter a criatura, que por sua vez, pareceu mudar de estratégia no momento em que ele concluiu isso. O fluxo de ataque foi subitamente detido, e todos os astrais foram recolhidos de volta. Zentaris ainda pode desintegrar uns poucos antes de voltarem por completo à bolha de luz em torno do imenso peixe. Não mais que umas dezenas. E de certo havia milhões.

Então notou que só poderia haver um procedimento agora. O monstro partiria para o ataque geral, e então começou a enviar seus astrais em várias direções, uns poucos até mesmo se movendo por transição instantânea, alcançando seus alvos o mais rápido possível. O anjo então gerou uma parede de energia mental tão grande que parecia interminável, barrando os milhares dos seres que tentavam se afastar do peixe e obrigando-os a contorná-la seguindo na direção contrária. Mas aquilo era claramente paliativo. Só havia uma forma de impedir o ataque, tinha que atacar DAGON fisicamente, e para isso precisava do seu corpo.

Milhares de kms dali, o corpo físico do Guaridão Estelar mudou de trajetória, justo quando começava a se aproximar do combate aéreo que ocorria entre NIARLATOTEP e a frota marou. O anjo tentara contatar DAMIATE, que poderia ter agido muito mais rápido, simplesmente se teleportando e destruindo DAGON muito mais antecipadamente, mas o Lorde Mestre estava envolvido demais num ferrenho confronto mental para ficar disponível.

Por sorte, o corpo físico do anjo não estava muito longe, e aumentava de velocidade à medida que se aproximava do corpo astral. Enquanto isso, ele ainda travava combate com alguns dos fantasmas locais, tentando destruir o máximo possível, ou dissolvê-los temporariamente, visto que era comum os mais resistentes conseguirem se restaurar após algum tempo, embora de certo não seria o caso da maioria daquelas criaturas. Todavia, mais e mais elas conseguiam se mover por transição instantânea.

Finalmente, após um tempo curto mas aparentemente interminável, o corpo do anjo arrebentou o gelo do iceberg e surgiu nas profundezas. O corpo astral desapareceu, se transferindo de imediato ao físico, e ele era um novamente. Concentrou toda energia possível e emitiu uma rajada nuclear contra o imenso peixe. Ele ainda tivera tempo de gerar um escudo mentônico que defletira a maior parte da energia do ataque, mas o que penetrou foi mais do que suficiente para desintegrar-lhe a maior parte do corpo, gerando uma onda de choque que triturou o iceberg acima. Agora a criatura estava dividida em duas, uma monstruosa cabeça agonizante afundando numa direção, uma cauda com movimentos espasmódicos vagando para o outro lado. Preocupado com uma possível reconstituição, emitiu outros raios, um de cada braço, desintegrando por completo o restante dos corpos da criatura gerando novas ondas explosivas que elevaram as águas a centenas de metros de altura.

Fim do monstro. Ele também tinha um corpo astral próprio, mas com o colapso do físico, sofrera um choque severo, e demoraria muito para se reconstituir. Mesmo fazendo-o, nunca poderia contar com a mesma força que possuía antes, mesmo porque, não mais podendo se basear num corpo físico, teria que agir puramente no Plano Astral Médio, de modo que por enquanto, a ameaça astral estava muito provavelmente neutralizada. Agora, só restava voltar para a superfície e no que for possível, ajudar seus companheiros.

Muito tempo depois, finalmente, DAMIATE se comunicou com ele.

-" Zentaris. Quase tudo mudou. NIARLATOTEP e XUBNIGURAT foram destruídos mas KUTLIU deve ser deixado em paz, entramos num acordo. Agora só peço que desça ao centro do planeta e dispare um raio de Fusão Nuclear Impura o mais radioativo possível, e em seguida, o raio Positrônico mais intenso que você possa conseguir, na esfera nevoenta que envolve o núcleo do planeta. Quando chegar lá, você irá entender. Estou partindo agora. Obrigado."

O anjo não hesitou, podia não ter as devidas informações, mas DAMIATE não costumava lhe pedir algo que não fosse muito importante. Para chegar lá o mais rápido e seguro possível, o que tomou bastante de seu tempo, passou pelo melhor caminho que conhecia, aquele onde, com Luri, enfrentara MIGO.

Atravessou novamente o teto gelado, que antes pensara ser o chão, mas desta vez havia algo radicalmente diferente, a imagem das nuvens abaixo, que era de uma das cidades fantasmas, não existia mais, em compensação havia um verdadeiro sol dentro do planeta, brilhando com incrível intensidade branca, embora oscilando em algumas variações espectrais e ocasionalmente obstruído por pequenas partículas escuras que o circundavam. Era aquela luz que estavam sendo enviada para a superfície do planeta, fazendo o contrário do que fazia antes, que era capturar a luz da superfície e enviá-la para o subterrâneo, onde era rebatida no teto gelado e mandada em direção ao núcleo. Ainda mais impressionante era que a imagem da superfície agora estava sendo enviada para o centro mas no sentido contrário. Ao invés de ser de fora para dentro, para que refletisse no teto, estava sendo também mandada de dentro para fora. Ou seja, toda a imagem da superfície estava agora concentrada em torno do núcleo, produzindo um mapa invertido, interno, de todo o Planeta Fantasma, e desta vez belamente iluminado.

Resumindo, era como virar um planeta do avesso. Ao centro havia o núcleo luminoso, e em volta desse centro o mundo, acima! Em toda parte! Ele pode contemplar, deslumbrado, até mesmo as imagens das últimas naves se retirando do planeta, com dificuldades para atravessar a fronteira fantasma devido e intensa emissão fotônica. Pudera saber agora, que o planeta permanecia tão invisível por fora quanto sempre fora, mas que agora descarregava parte da incrível luminância acumulada em milhares de anos de luz capturada da superfície, que provavelmente era convertida, no núcleo, para algum tipo de energia útil.

Então ele entendeu. Se permanecesse assim por muito tempo, a luz enviada de volta retornando ao núcleo terminaria por sobrecarregar o sistema. Antes, ela era suave, sendo absorvida pela nuvem nuclear gradativamente, mesmo porque os poucos focos mais intensos eram as nuvens de tempestade. No momento, porém, a luz era violentamente expulsa do núcleo, mas acabava voltando, mantendo uma reação em cadeia que só poderia, enfim, resultar numa coisa, romper o escudo de invisibilidade e enviá-la para o espaço externo.

E o Anjo Guardião Estelar sabia por que aquilo não poderia ser permitido. A possibilidade, por mais remota que fosse, de que aquele Planeta fosse avistado de outros sistemas estelares por certas entidades e espécies que era preferível serem deixadas em paz. E o planeta brilharia intensamente, sendo facilmente visível em alguns anos. Com grande possibilidade, também havia em outros locais da Galáxia outros resquícios de Primordiais, bem como outros dispositivos de vigilância que poderiam estar atentos para qualquer evento como aqueles ocorridos com a profanação de um Planeta Primordial. Se a existência de NOVITA-5 fosse largamente exposta, ninguém poderia prever o que aconteceria exatamente, mas no mínimo algumas espécies mais antigas, como os Metiats, podiam se sentir compelidos a tomar providências que dificilmente seriam bem vistas pelas atuais potências da Galáxia.

Aquele planeta não deveria ter sido descoberto, fazia parte de um passado que deveria estar encerrado. Isso ele sabia desde o início. Foi por isso que veio até ele assim que soube da anomalia gravitacional recém descoberta, cuja melhor explicação era exatamente a que ele previa. Só havia então uma coisa a fazer, não apenas restaurar o núcleo ao seu modo operacional original, mas intensificá-lo ainda mais, para que escondesse o planeta definitivamente. Fez então, como DAMIATE pediu.

O raio de Fusão Nuclear Impura, com Fissão Nuclear Radioativa embutida, foi disparado, extremamente luminoso e transmitindo também frequências muito além do espectro normal. Com isso, ouve uma súbita sobrecarga no núcleo que acelerou seu processo de saturação, foi quando os poucos que ainda estavam no planeta, notaram uma intensidade muitíssimo maior na luminosidade do céu. Antes que ocorresse o colapso, porém, ele enviou o raio positrônico, e os anti fótons aniquilaram, por um momento, toda a luz que provinha da estrela interna, causando um breve apagão. Nesse breve momento, houve uma aparição de segundos, onde foi possível, enfim vislumbrar aquilo que só poderia ser AZATOT.

Era apenas uma nuvem granulada, com evoluções suaves como uma poça de gelo seco em câmera lenta, no entanto, alguma coisa ali parecia pulsar de vida e intenção. E diferente do que se esperava, era bonito! Causava uma sensação de conforto, quase prazer. Por um momento divagou enormemente, imaginando que seres menos esclarecidos certamente o tomaria como Deus, e ficariam olhando para ele indefinidamente. Teve certeza de que pessoas morreriam de fome, paradas, apenas contemplando-o, por serem incapazes de deixar de fazê-lo. Testou consigo mesmo essa hipótese, tentou virar de costas, mas não conseguia, aquilo, de algum modo, era hipnotizante, enebriante, de um modo completamente diferente do poder de sedução das seilans, que ele também já experimentara.

Era calmo, pacífico, mas por isso mesmo, ao mesmo tempo, parecia-se com a morte. Uma boa morte, capaz de embalar os seres conscientes em canções de ninar até que suas mentes fossem completamente desintegradas no caos mentônico, retornando a matriz primordial de toda existência mental.

Ele podia jurar que ouvira um agradecimento, e então, o núcleo começou a brilhar novamente, mais belo do que nunca, mas agora, Zentaris tinha que sair dali, e se certificar que todos fizessem o mesmo. À toda velocidade, chegou à superfície, e telepaticamente deu o alerta de evacuação. As seilans atenderiam rapidamente, ele pensou, principalmente se ele passasse por perto delas e seguisse para o espaço. Elas, no entanto, se detiveram por um tempo anormal, ainda deslumbradas com o espetáculo da contemplação de AZATOT, que sim, pôde ser visto da superfície do planeta também.

Chegou à nave de DAMIATE, a dobuk estava morta, o homem klumam estava lá, desacordado, e o antróide havia saído numa nave auxiliar. Não podia esperar, tinha que levar a nave para fora da fronteira fantasma o mais rápido possível e transmitir o aviso com maior a intensidade que pudesse. Por sorte, chegando lá, percebera que todas as seilans, os marous e Luriander já haviam saído do planeta. Só Dalmana ficara para trás.

Pouco tempo depois, o planeta invisível se tornou também indetectável até mesmo para os sensores de gravidade, e no último instante a pequenina nave auxiliar com o andróide escapou, sendo que segundos depois, um ZIG tentara penetrar no limiar da fronteira fantasma, mas nada aconteceu. Permaneceu voando no espaço, tão desnorteado quanto ficaram as inúmeras naves que foram abaladas pela súbita ausência da fonte gravitacional, que evidentemente, teria um impacto notável em todo o sistema estelar.

AZATOT, recuperando o controle, absorveu energia suficiente para elevar o nível de abrangência do escudo, que já envolvia todas as frequências eletromagnéticas. Agora, transportava também a gravidade e o próprio espaço tempo, escapando até mesmo da influência do campo mentônico.

O Planeta Fantasma se fora.

LURIANDER

Ao deixar para trás a nave marou que acabara de salvar, Luri não pôde evitar ainda ficar surpreso com a destruição aérea que já sabia estar ocorrendo. NIARLATOTEP era rapidíssimo, e ia deixando longas trilhas de fogo em movimentos radiais, pulverizando centenas de ZIGs. A nave que acabara de ser atingida brilhava de calor, mas ainda assim soltava uma nuvem aparentemente absurda de ZIGs e Pseudo-ZIGs, como uma colméia expulsando todo o seu exército de abelhas num enxame furioso.

Abaixo, a outra das naves colméia despencava acelerada, já tendo soltado todo o seu arsenal que agora subia no encalço do monstro voador. Mais abaixo, uma das naves, similar a um espada espacial, já havia se espatifado, mas as outras duas continuavam atacando, a distância. Os ZIGs, que pareciam um exame luminoso, disparavam tantos LASERs em cores distintas que era difícil até entender o que acontecia, ainda mais com aquele fundo branco ofuscante. NIARLATOTEP absorvia os disparos em sua aura, permanecendo relativamente lento por alguns segundos, e de repente se movendo em movimento brusco, gerando uma onda de arrasto que destruía inúmeros ZIGs enquanto forçava outros a abrir caminho.

O RY-3 voava rápido, subitamente arrependido de ter ficado tanto tempo à bordo da nave com as arqueólogas madre-terrestres e o noxi. Tivesse saído antes, talvez pudera evitar a morte daqueles tripulantes, e pensou que se eles fossem antropônicos, estaria agora arrasado. Por um momento, o monstro havia se afastado, descrevendo um movimento em curva tão amplo que chegou a sumir de vista. Mas após contornar uma nuvem avançou com força total contra a última nave colméia, que parecia estar se recuperando do ataque e já havia apagado o brilho do metal que fervia em sua fuselagem.

Ele achava estranho que estivesse sendo ignorado pela criatura, que parecia nem perceber sua aproximação. Decidiu chamar-lhe a atenção com um disparo nuclear direto que o atingiu em cheio. Sua micropremonição lhe permitiu intensificar o escudo e evitar o dano, mas o impacto o arremessou longe, e Luriander pode se interpor entre ele e nave. Curiosamente, a criatura não revidou, mas sim rumou direto para umas das outras naves, similar a uma espada espacial, que ordenou que os ZIGs se concentrassem a sua frente quase como uma parede sólida. O RY-3 partiu em seu encalço, se posicionando no vácuo que deixava, por entre a nuvem de destruição. Quase foi atingido por um resquício do disparo que a nave acertara em NIARLA, até que finalmente estava próximo o suficiente para que a micropremonição dificilmente fosse rápida a ponto de permitir o desvio, principalmente por estar submetida a duas frentes opostas de ataque.

Os feixes de energia de Luri atingiram dois alvos distintos. Um acertou em cheio o monstro, que mesmo tendo resistido ao disparo com seu escudo, caiu. O outro atingiu a nave marou de raspão, causando poucos danos. No entanto ela disparou de volta! O RY-3 enviou uma mensagem de desculpas e tentou explicar a situação, mas a nave continuou a disparar enquanto ele descia para alcançar NIARLATOTEP.

Subitamente o monstro surpreendeu saindo de uma nuvem, e Luri teve que agir muito rápido para evitar um contra ataque e se manter na ofensiva, o que fez simplesmente se jogando contra a criatura, abalroando-a com a escudo aura e empurrando para longe. A nave marou continuava atirando, nele! Sobrecarregando seu escudo, até que ele foi obrigado a paralisá-la mentonicamente e forçá-la a atirar no inimigo. Concentrando energia à frente, atirou em conjunto com a nave, atingindo o escudo esférico de NIARLA em duas frentes. Algo, porém, espantoso ocorreu. Possivelmente algum tipo de reversão de polaridade física fizera uma onda devastadora percorrer de volta os mesmos raios. A nave marou foi completamente e instantaneamente aniquilada, e o RY-3 simplesmente se desconectou antes que tivesse o mesmo fim.

O monstro finalmente ficou parado à sua frente, a uns poucos kms de distância. Ficaram ali, flutuando por entre as nuvens, como dois pistoleiros de faroeste prestes a duelar. O monstro era estranho, pra dizer o mínimo. Vagamente antropomórfico, tinha braços cuja envergadura media uns 3m, e eram como compridas garras com apenas uma articulação associável ao cotovelo, mas nada que parecessem mãos. Algo similar acontecia com as pernas que eram na realidade muito parecidas. Estivessem em posição similar, possivelmente seriam indistinguíveis dos braços. O tronco parecia anormalmente curto em relação aos membros, e a cabeça, se é que não era um encéfalo-tórax, mantinha o mesmo ângulo pontudo dos membros, como se a criatura pudesse ter a forma construída toda com pirâmides orgânicas alongadas.

Embora sua couraça fosse escura, a aura reluzia em diversas tonalidades, e ele pareceu ainda mais antropomórfico quando apontou os braços à frente, e de suas pontudas protuberâncias brotaram dois intensos raios. Luriander chegara a se desviar da rota original do disparo, mas curiosamente os raios fizeram o mesmo, atingindo-o em cheio. O escudo resistiu mas ele sentiu o baque. Contra atacou mas o monstro se desviou habilmente e disparou de novo, e mais uma vez ele não conseguiu evitar o disparo.

Quanto a mesma situação ocorreu pela terceira vez, percebeu que tinha que mudar de estratégia. Avançou rumo à criatura. Se não poderia evitar seus disparos, que diferença faria? E antes que ela pudesse atirar novamente a atingiu em cheio, agarrando-a pelo tórax e a empurrando uma dezena de kms à frente, para depois, rodopiar e arremessá-la de lado rumo ao chão. O objetivo era impedir que ela evitasse seu último disparo. Deu certo, ele o atingiu em cheio com um raio nuclear seguido de um raio elétrico. O duplo ataque pareceu desnortear a criatura, que num momento fingiu retirada, mas depois, num movimento rapidíssimo passou por Luri rumo novamente à frota marou.

A nave colméia havia recuperado alguns destroços bem como ordenado robôs a extraírem e trazerem alguns minérios, e voltava a produzir novos ZIGs, mas em ritmo mais lento, e embora ainda houvesse muitos no ar, não pareciam suficientes para deter o avanço da criatura. O RY-3 então achou que fariam melhor oferecendo outra barreira sólida contra o oponente, e controlou-os de modo a se juntarem num aglomerado, chocando-se com NIARLA e retardando significativamente seu avanço. As naves então puderam abrir distância novamente, mas o monstro não demorou a abrir caminho a tiros e quando Luriander estava se aproximando dele, sofreu um ataque totalmente inesperado.

O fato de sua micropremonição sequer ter funcionado sugeria que a criatura distorcera o tempo, visto que seguramente distorcera o espaço numa onda de choque cujo estrondo possivelmente poderia ser ouvido da superfície como um intenso trovão. Luri foi atingido em cheio, praticamente perdendo e escudo e despencando desnorteado por alguns segundos. Seu corpo fora atingido, mas já começava a se regenerar, brilhando em luz ciana, reparando os ossos, os músculos e a pele, que ficaram transparentes e luminosos.

Após alguns kms de queda, se recobrou e subiu novamente, disposto a se vingar da forma mais dura possível, atravessou uma espessa nuvem e então se deparou com uma cena que o deixara confuso. A nave seilan se aproximava, enorme, agora novamente cristalina, como uma imensa esfera que refletia o ambiente. Dela saíram quatro bolhas luminosas, supermetas, e duas hipermetas voando sem bolhas. O que elas fariam? Viriam capturá-lo? Tentavam isso há séculos, mas não poderiam ignorar NIARLA, que imediatamente reagiu, disparando contra elas.

- "Luri! Esqueça NIARLATOTEP! Vá ajudar Lunis, é absolutamente vital que o faça agora! Destrua XUBNIGURAT! Deixe NIARLATOTEP para as seilans!"

Ele atendeu, disparando rumo ao local onde a feiticeira enfrentava a kluman possuída. Curiosamente, embora as hiper e as supermetas tivessem ficado para trás, a nave seilan voou atrás dele, espantosamente rápida, considerando o tamanho. Era melhor deixá-las, e dobrou sua aceleração. A nave não pode acompanhá-lo, mas nem foi necessário, logo descia rumo à feiticeira que havia acabado de deixar o corpo da kluman para trás, e então teve que voltar pairando abaixo, novamente, da nave seilan.

Se desviou bem a tempo de evitar um devastador raio branco que atingiu o solo causando uma explosão em cogumelo. Era ali, entendeu ele, que Lunis pretendia chegar. Ele desceu e pairou um pouco acima da feiticeira, que abria caminho entre os vapores da cratera flamejante. De repente, um vento fortíssimo se formou, capturando todos os gases que sufocavam o ambiente e os lançando para longe ao alto, arrastando o RY-3 para trás enquanto a feiticeira, por baixo, avançava.

Sabia que ela estava prestes a enfrentar a criatura que devia ser destruída, e pensava em fazê-lo o mais rápido possível, a fim de voltar para verificar como ficara a situação com NIARLATOTEP. Desceu, ainda tendo problemas para visualizar através da fumaça, até que chegou à área que fora limpa pela criatura. Avistou então Lunis, parada, curiosamente parecendo paralisada, e sem a bolha cristalina. Teve que agir rápido, e agarrou a seilan pouco antes de ser atingida por uma nuvem negra que avançara com uma estranha aparência aracnídea e recuara com uma aparência cefalópoda, e era difícil saber qual era mais feia. Voaram para trás e pousaram sobre uma rocha, e então, com a dissipação da névoa, finalmente pôde ver a criatura livremente, algo do que se arrependeria para sempre.

É uma imagem da qual gostaria de se esquecer. A coisa era tão monstruosamente horrenda, tão grotescamente asquerosa, que ele simplesmente ficou petrificado, tomado de um pavor desesperador, sufocante, opressivo. Quando o ser se moveu, no entanto, ele reagiu de modo quase espasmódico, como se se afastar daquela coisa fosse um instinto dos mais primários, independente de qualquer deliberação racional. Agarrou Lunis novamente e subiram velozmente, só começando a diminuir de velocidade a mais de 10kms de altura.

De lá, concentrou toda a sua energia num disparo intenso, furioso, desesperado, com um ímpeto que NIARLATOTEP jamais seria capaz de lhe despertar. O raio envolveu o escudo da criatura, se dispersando em todas as direções, mas não foi efetivo, tendo como mérito apenas levantar poeira suficiente para ocultar o monstro por alguns instantes, o que parecia ser algo absolutamente vital para a sanidade de qualquer um que pudesse remotamente enxergá-la, e é claro que mesmo a distâncias quilométricas, os RYs, bem como qualquer hipermeta e grande parte dos supermetas, podiam aproximar a imagem e distinguir detalhes, que no caso, eram totalmente indesejados.

Lunis já voava por contra própria, mas continuava muda, sem reação, e o mesmo acontecia com a nave seilan acima deles. Todos pareciam tomados de um terror tão devastador, que mergulhar num caos de conjecturas desesperadas sobre o erro que havia sido vir a esse planeta parecia ser algo sensato a fazer. Luri ofegava e tremia de pânico, sabia que tinha que destruir aquela monstruosidade, perto da qual todos os outros juntos pareceriam adoráveis bichinhos de pelúcia. Ele iria exigir sua aniquilação mesmo que DAMIATE exigisse o contrário, só que não podia se aproximar novamente, na verdade, se afastava ainda mais, puxando uma Lunis ainda em estado de choque pelo braço.

Só havia uma coisa a fazer. Expandiu sua percepção e sentiu a presença da nave marou kms adiante, que acabara de ser atingida por NIARLATOTEP, o que causara ferimentos graves em seus poucos tripulantes, possivelmente a morte, mas ainda estava operacional. Não pensou duas vezes, rumou direto para longe controlando a nave mentalmente em sentido contrário, e deixando a feiticeira junto à enorme nave espelhada seilan. Que finalmente decidiu agir, disparando novamente contra a criatura com um ataque meticulosamente calculado, pois não queiram falhar sob hipótese alguma.

Conseguiram, o disparo, penetrou numa oscilação do escudo mentônico de XUNIGURAT, atingindo-a em cheio e a desintegrando completamente. Embora a nave marou já estivesse em posição, Luriander se sentiu aliviado. Adoraria não ter mais que destruí-la, porque isso implicaria em, ao menos uma última vez, olhar para ela de novo. Mas para seu mais profundo terror, uma nuvem luminosa, começou a se condensar, lentamente, até que foi impossível negar que a criatura estava se formando novamente.

Quando o monstro finalmente se reconstituiu, as seilans dispararam novamente, mais uma vez atingindo-a, embora não com tanta eficiência, causando apenas um vasto estrago em seu corpo. Mas XUBNIGURAT se reconstruiu mais rapidamente ainda. Luriander já vira aquilo antes. Foi uma de suas primeiras batalhas, quando ainda era muito jovem. Com seus irmãos, enfrentaram um robô fotônico que podia se reconstruir indefinidamente, enquanto possuía uma fonte de energia remota. Era algo similar, mas onde estaria a fonte?

Antes que pudesse dizer algo, a nave seilan se moveu de novo, e então disparou um feixe menor, numa direção diferente. Ele teve tempo de perceber que o disparo aniquilara o corpo de Cemilion, que flutuava inerte, e a horrenda criatura pareceu gritar de ódio e revolta. Então ele percebeu que era agora, de algum modo, sua fonte de energia remota, ou coisa que o valha, estava na kluman. Então se concentrou e controlou a nave marou, e tendo que observar o monstro atentamente uma última vez, ordenou um perfeito disparo nuclear, que a varreu definitivamente da existência.

Mesmo confirmando a destruição, ele não ficou tranquilo.

Mais tarde, quando se encontrou com DAMIATE, ouvira. - Agiu muito bem Luri, mas agora você precisa ir. Não posso mais protegê-lo, meus poderes estão esgotados depois do confronto com KUTLIU, e cedo ou tarde minha mente vai ser desconectada deste corpo. Por isso preciso antes de um último favor seu. Destrua este corpo completamente!- O RY pensou não ter entendido, mas o Lorde Mestre insistira. - Sem a minha mente, o astro clone vai começar a forçar o corpo a assumir sua configuração, e provavelmente ele se tornará um Deomi-Zate. Os riscos de um deles à solta neste planeta, correndo o risco de ser cooptado por alguma força oculta, é elevado demais para se permitido. Destruindo esse corpo, minha mente partirá, e o astro clone ficará inerte. Portanto, Luriander, vaporize-me totalmente! E sua missão estará cumprida.

Ele aquiesceu, tomou uma distância adequada e apontou o braço. Os ossos do omoplata começaram a brilhar por baixo da carne e da pele, então o brilho avançou lentamente até chegar aos dedos.

- E Luri. Assim que o fizer, saia deste sistema imediatamente. Minha proteção telepática residual ainda irá durar algum tempo, mas depois se esvanecerá. E você é precioso demais para cair nas mãos das seilans.

- Certo. Não se preocupe. Está pronto? - DAMIATE desativou totalmente qualquer escudo corpóreo, e confirmou. E então um único, intenso e devastador disparo, desintegrou o corpo do Lorde Mestre sem deixar rastro. A explosão luminosa foi amplamente vista por diversos ZIGs.

Feito. Ele subiu aos céus, em velocidade máxima. O escudo de invisibilidade começara a se estabilizar e a luminosidade diminuíra, começando a ser predominante não mais o branco, mas as oscilações coloridas, quando de repente, houve uma explosão de luz ainda mais intensa. Decidiu ignorá-la, e acelerando ao Máximo, o RY-3 saiu da fronteira fantasma em poucos minutos, e disparou rumo à órbita de NOVITA-6, onde sua nave já começava a acelerar para adentrar o hiperespaço. Como ele próprio, e DAMIATE, já esperavam, as seilans o seguiram, mas ele tinha grande dianteira, antes que elas pudessem se aproximar mais ele alcançara sua nave, que já se aproximava de 3 mil km/s. Tentaram abordá-lo telepaticamente, mas ainda havia um notável bloqueio que enfraquecia rapidamente, embora mais lentamente do que o necessário.

E a nave sumiu entre as estrelas.

DAFINAIA

-"... Você tem que matá-la! Destrua o corpo imediatamente!" - A "voz" mental de DAMIATE soava estranha naquela reprodução, e a Sacerdotisa Mestra, líder da frota seilan, afirmou. - Ele falava com sinceridade. Tinha razão. - E então reproduziu outra parte. -"XUBNIGURAT transformou o corpo dela numa Horcrux, depositando parte de sua vitalidade, enquanto o corpo de Cemilion ainda tiver vida, mesmo que o de XUBNIGURAT seja destruído, ela poderá se reconstituir!" - Lunis ficou constrangida, e percebendo seu incômodo, Dafinaia Zelana Xuni preferiu acalmá-la. - Mas não posso, é claro, culpar você. Era sua obrigação como nossa irmã lunaxia, desconfiar de DAMIATE. - Ela se aproximou de Lunis e acariciou-lhe os cabelos. Somente as duas num recinto semi iluminado, e pequeno.

- Percebendo que você não o atenderia, ele apelou a nós, a suas companheiras, e apesar de desconfiadas também, elas acabaram percebendo que estavam diante de algo perigoso demais para correr riscos.

- Mas o que é uma HORCRUX?!

- Um equivalente a um cristal de armazenamento de aura, embora intensificado. Na kluman foi injetada uma dose extrema de vitalidade alheia, difícil de detectar devido ao espectro de aura confuso. Como o corpo daquela... Coisa horrenda era fotoplásmico, bastava que a aura, e parte da mente, fosse recuperada para produzir uma nova cópia do corpo original. Na verdade, a verdadeira XUBNIGURAT estava na kluman. É uma técnica que já existiu entre nossas ancestrais, até ter sido totalmente abolida e proibida pelas deusas.

- Pela deusa LUNAX... Como pode haver tamanha perversão?! Como pude ficar tão... Impotente?

- Não se envergonhe mais do que eu. Pensar que aquela entidade, sendo feminina, poderia nos trazer algum benefício, foi uma das piores ingenuidades que já tive. Esse Planeta era monstruoso, nada havia aqui que nos interessase. Se não tivesse desaparecido, nós o destruiríamos totalmente. Somente aquele fenômeno ao final, que eu gostaria de ter visto com meus próprios olhos, parece ter valido a pena.

- Sim... Foi como contemplar... SAAM... Mas... E quanto ao homem kluman?

Dafinaia acionou outra reprodução mental, que capturara ondas telepáticas e as gravava em cristais vitais. - "Nada podia ser feito por Cemilion, mas ainda podemos salvar Irig. Para isso, preciso de você novamente, e confie em mim desta vez!"

- Novamente, ele estava certo. Foi a forma mais eficiente e rápida de libertá-lo do caos mental em que estava.

- Não sei o que será pior. Ser culpada por ter matado a mulher ou ter dominado o homem.

- Você não a matou.

- Mas eu tenho que assumir a culpa. A infração tem que ser minha, para que eu somente seja responsabilizada, ou teríamos novamente uma guerra contra KLUMA.

- Sim... Minha adorável irmã lunaxia. Você é uma heroína, infelizmente, isso não poderá ser amplamente conhecido. Não tanto quanto a heróica morte de nossa irmã, no conflito com o monstro hipermetanatural, que também foi um notável desafio. Já o ataque astral, que inicialmente parecia fortíssimo, acabou se revelando débil.

Lunis baixou a cabeça, conformada com o seu sacrifício pelo bem de sua adorada SEILA. - Mas tenha certeza, minha querida, que você será profundamente amada por todas as que souberem. Seu sacrifício não será em vão. - Dafinaia a abraçou com intensidade e carinho maternal, e Lunis sussurrou em seu ouvido.

- E quanto a Zentaris?

- Fora de cogitação tentar capturá-lo. Não será responsabilizada por isso nem pelo RY-3, que escapou de nossas irmãs. De nossa parte, posso garantir que não há débito algum em seus atos.

- Ainda devo ir à Madre-Terra?

- Sim. Provavelmente, você nem terá escolha.

- Compreendo. Espero poder servir SEILA de lá.

- Você já o fez. Quando aceitei essa missão, tinha sérias dúvidas sobre você, mas agora vejo que, embora estivesse deixando nosso planeta, você é mais seilan do que muitas que jamais saíram de lá.

- Obrigada irmã.

Dafinaia deu-lhe outro amigável sorriso. Abraçou-a novamente, e beijou-a nos lábios.

KEIKO XASANAIA

Ela assistira a partida de Zentaris, que tomara uma nave que chegara sozinha ao sistema estelar muito tempo depois de ele, misteriosamente, ter chegado sem nave alguma. Mas no fundo, não conseguia deixar de pensar em Luriander, e sua profana aliança com DAMIATE. Um dos motivos pelo qual o odiava era por que ela admirava as seilans. Sim, evidentemente, as seilans tinham simpatizantes, principalmente entre os homens, e havia bons motivos além do simples apelo erótico estético. Que outro planeta poderia dizer que não registrara um único assassinato há gerações entre seus 7 bilhões de habitantes?

Ela acreditava na superioridade moral de uma Ginocracia, bem como de uma Teocracia esclarecida. Sabia, é claro, dos problemas típicos das seilans, seu autoritarismo, seu etnocentrismo, seu fundamentalismo religioso. Mas achava que tudo era principalmente reação a posturas hostis de outras civilizações. Achava que o modelo ideal de sociedade seria largamente inspirado em SEILA, em especial no cuidado delicadíssimo que tinham com tudo que fosse relativo à vida, ao conforto, o prazer e a segurança.

Mas agora lembrava-se do RY-3, e do diálogo que tivera com ele quando estavam ainda no Planeta Fantasma, diálogo que fora quase íntimo, visto que praticamente sussurravam, isolando o noxi e sua colega exo-arqueóloga. Ela pesquisara sobre o planeta natal de Luriander, ORIZON, e se impressionou com sua notável história. Os RYs foram criados para enfrentar um ameaça ancestral, e conseguiram salvar sua civilização. Durante décadas neutralizaram as poderosas armas e computadores inimigos, e o planeta teve paz, até que um dia o próprio Luri fora vítima de uma armação sentimental, e de repente, um coração partido quase foi capaz de fazer o estrago que as mais avançadas estratégias computacionais jamais tinham logrado conseguir. Depois achara o relato de sua estada no sistema Sirenia Menor, onde supostamente teria morrido, que fora também muito interessante, bem como especulações sobre uma possível viagem a Taixai 4. Depois disso, porém, as informações praticamente eram inúteis, pois estavam envoltas em mitos, lendas e a maior parte delas eram contraditórias.

Mas a história inicial, bem analisada, era linda, emocionante! E o que a marcara profundamente em seu diálogo com Luri, foi quando ele lhe dissera. - "Eu vivi uma vida fantástica, tive uma história pessoal fascinante em meus primeiros anos, e primeiros séculos, de vida. Só que eu só conheço essa história pelos registros, eu não me lembro de nada sobre ela! Não me lembro de meus irmãos, de minha casa, nem de minha grande primeira paixão. E sabe por quê? Por que quando me capturaram, as seilans mergulharam eu meus mundos pessoais mais profundos, e os tomaram. Elas tiraram todas essas lembranças de mim! Apagaram o que eu sou e tentaram implantar o que elas queriam que eu fosse! Um escravo! Tão submisso e impotente que não tinha prazer nem em voar se não tivesse o consentimento explícito da minha senhora! É incrível o grau de controle que elas tentam exercer. Não basta fazer o que elas disserem, tem que passar a fazer sem que elas precisem pedir. E então tem que ser capaz de avinhar tudo o que elas gostariam, e ser capaz de prever o mínimo detalhe que poderia desagradá-las. Quando dominam todas as suas falas, trejeitos, aspirações, não se satisfazem, e querem descer cada vez mais, não deixando em paz nem mesmo suas mais íntimas intuições e sensibilidades. Foi DAMIATE quem me ajudou a me recuperar, a resgatar minha estória. Ele me protegeu de ser um mero objeto nas mãos delas. É contra isso que ele luta, e eu quero lutar com ele!"

Depois disso, ela ainda tentou retrucar, mas então ele precisou sair, às pressas, quando as outras naves da frota começaram a ser atacadas. Afinal, ironicamente, foram as próprias seilans que destruíram a ameaça, num confronto que custou a vida de uma super meta. E mais ironicamente ainda, foi o próprio Luriander quem acabou ajudando as seilans, ao destruir a criatura que ameaçava enlouquecê-las. Maior ironia ainda, foi que finalmente DAMIATE e as seilans tiveram um objetivo comum, e acabaram lutando lado a lado.

Na verdade, não fora a primeira vez. Mas praticamente ninguém sabia disso.

Curioso que tudo tivesse acontecido logo após aquele desabafo de Luri, que a deixara tão decepcionada com as seilans. Curioso que após isso tudo, ela teve que admitir que agora odiava bem menos a DAMIATE.

VELEK

Quando embarcara pela primeira vez numa das naves da Pastor-6, Velek sabia que suas funções como exo-arqueólogo provavelmente seriam obscurecidas por suas funções como telepata. Mas não poderia esperar que estaria envolvido numa descoberta de tamanha magnitude, e que, ironicamente por suas peculiaridades, acabariam obscurecendo seus conhecimentos de arqueologia espacial em prol de suas habilidades telepáticas ainda mais do que poderia imaginar.

Tivera o cuidado de contratar um auxiliar que lhe era semelhante, o telepata cinzento, para que se encarregasse dessas funções, mas isso não fora o suficiente. Com isso, ocorrera que a maior parte do trabalho arqueológico acabara sendo desenvolvido pelo antróide Dalmana, que fora o último a sair do planeta e testemunhou eventos que ninguém mais pudera ver, embora aparentasse guardar segredos somente para si próprio. Bem como outros cientistas da frota, incluindo Randol. Mas na verdade, o trabalho pesado de interpretação de dados, e as melhores conclusões, terminaram por ser desenvolvidos pelos marous, e também pelas exo-arqueólogas Keiko Xasanaia e Xang Hitleria.

Por outro lado, no entanto, o trabalho telepático que tivera acabara por lhe revelar informações que a exploração arqueológica em si jamais poderia sonhar, e se era verdade que qualquer abordagem telepática sempre estava sujeita a dificuldades interpretativas, as vezes tão intrincadas quanto a interpretação de sonhos, ainda assim era verdadeiro que também tinham um potencial de revelar sutilezas inapreensíveis por qualquer outra forma, ainda que muitas vezes sejam incomunicáveis, deixando o telepata estudioso muitas vezes com o conhecimento preso em sua subjetividade.

Nesse caso, isso não seria tão grave, visto que muito do que fora descoberto em NOVITA-5 foi classificado como não publicável, constituindo itens de segurança galáctica. Um acordo entre as partes, mais notadamente Mãe-Terra, KLUMA, SEILA e ROUMA (Marous), acertou que a uma grande parte dos itens não seria liberada ao acesso livre por tempo indefinido. Controle de informação em SEILA ou ROUMA era uma coisa simples, culturalmente aceita. Em KLUMA ou Madre-Terra era bem mais complicado, exigindo intervenções radicais na indomável Infosfera. O procedimento mais comum era simplesmente inundar a rede de informações falsas, supostamente obtidas por quebras de segurança, de modo que só se poderia confiar nas publicações acadêmicas oficiais, que no caso foram especialmente modestas.

Tudo isso tornaria muito difícil um estudo eficiente dos acontecimentos realmente ocorridos no Planeta Fantasma, não apenas por parte da população, mas também pelas instituições de pesquisa autorizadas, visto que boa parte do conhecimento progressivo vinha da livre iniciativa intelectual da população. Embora o sistema NOVITA tenha se mantido como um dos focos de maior interesse em Madre-Terra nos anos subsequentes, NOVITA-5 estava envolta em tanto mistério e desinformação que o interesse diminuiu vertiginosamente. Algumas das mais notáveis publicações recentes sobre o sistema NOVITA, por exemplo, conseguiam se dar o luxo de dedicar trechos bem modestos ao Planeta Fantasma, que originalmente era o tema que ocupava praticamente todo o conteúdo de qualquer publicação que citasse o sistema NOVITA.

A situação fora perfeitamente análoga nos diversos sistemas CINZAs da Galáxia. Com o agravante de que as redes telepáticas ostensivas mistificariam ainda mais as informações. Era por isso que Velek não estava muito chateado com o fato de jamais poder revelar plenamente tudo o que concluíra por si próprio, pois não era uma mera questão de autoridade científica ou segurança planetária, mas sim, antes de tudo, um problema de epistemologia e psicologia radicais.

O Planeta Fantasma fornecera um ótimo exemplo do que poderia ocorrer em redes telepáticas profundas, isto é, que favorecem a integração de partes mais íntimas de uma menor quantidade de mentes em detrimento de uma vasta interligação superficial de um número maior de mentes. Foram contados no mínimo 1024 cérebros em KUTLIU, e era possível que alguns deles armazenassem mais de uma mente, embora também fosse possível que uma única mente ocupasse mais de um. De qualquer modo, essas mil mentes se entrelaçaram de forma tão intensa entre si, e também com as demais mentes do planeta, dos demais monstros arcaicos, bem como das primitivas criaturas senscientes, que a perda ou adormecimento da individualidade se tornou irrisório perante o fechamento da própria percepção da realidade física circundante em si.

Algo que mereceria o nome de "Sectopsismo", isto é, um grupo relativamente pequeno de mentes que interagem entre si projetando uma "realidade" privada que depois é tomada como o todo da realidade em si. Ao passo que o solipsista acredita viver sozinho em seu próprio mundo mental, aquelas mentes acreditavam viver em grupo em seu próprio mundo mental coletivo, só sendo libertadas desta ilusão com a chegada da frota Pastor-6, que começou, inicialmente, a se conectar de forma inconsciente com o restrito mundo mental do planeta, principalmente na forma de sonhos estranhos e incompreensíveis. Só posteriormente as mentes de KUTLIU se deram conta de que estavam entrando em contado com um outro grupo de mentes, de poucas centenas de indivíduos que não faziam parte de uma rede mental única, e então sentiram a necessidade desesperada de conhecer mais sobre ela. Foi por isso que atacaram Viuik e Lunis, bem como assediaram qualquer mente que se aproximasse.

O mundo mental do Planeta Fantasma poderia ser dividido em 3 esferas. A mais externa era a que englobava as criaturas senscientes da superfície, bem como qualquer entidade semi sensciente ou as mentes que ainda vagassem num plano mental puro ou no Astral Médio. A segunda esfera era constituída por um pequeno e seleto clube das mentes inumanas de NIARLATOTEP, XUBNIGURAT, DAGON e seu séquito astral, MIGO e uma parte das mentes de KUTLIU, bem como a proto mente de AZATOT, que era mais um caos mentônico fechado e modulado de modo a reagir instintivamente à eventos e administrar o campo de invisibilidade. Fora uma "decisão" dele, quase certamente, o de remover o planeta de nossa realidade, enviando-o, talvez, para um universo alternativo qualquer.

A terceira esfera era o mundo mental da maioria das mentes de KUTLIU, que considerava vagamente a existência da esfera externa, mas a desconsiderava como digna de atenção, conhecia algo da segunda esfera, mas nutria certa hostilidade contra algumas de suas mentes, e por fim, considerava seu mundo particular como a instância suprema do universo. Era difícil saber o que essas mentes originalmente eram.

Supermetas telepatas criminosos que foram aprisionados em prol da segurança da sociedade da época?

Mentes indomáveis que ameaçavam uma conjuntura sócio política específica?

Objetos de alguma experiência científica mental ousada e suficientemente bem estruturada a ponto de poder produzir seres colossais?

Um mero "parque de diversões" sectopsíquico onde integrantes de um clube privado decidiram se isolar?

Era difícil saber. O que quer que aquelas mentes tivessem sido há meio milhão de anos atrás, não o eram mais. Mesmo uma cruel situação de mentes prisioneiras mantidas cativas por carcereiros hostis poderia ter se transformado em seu completo oposto com o passar das eras. Seguramente, o Planeta Fantasma não mais desempenhava a função original para a qual fora projetado, era uma relíquia esquecida do passado, perdida de sua própria história, e possivelmente uma ameaça a qualquer civilização que viesse a interagir com ela.

Com a ajuda de outros telepatas, incluindo seu colega cinzento, de Zentaris, das seilans e dos marous, Velek concluíra algo bem próximo ao que DAMIATE informara por meio de seu hipermeta, o RY-3, e que Randol concordava. As mentes em KUTLIU, inicialmente, estavam mais querendo obter uma saída do planeta do que querendo fazer mal a quem quer que fosse. Independente de que fossem, assim que descobriram-se como encerradas num mundo mental particular ínfimo se comparado à vastidão galáctica de trilhões de mentes que aqueles novos visitantes demonstravam existir, sentiram-se prisioneiras e pretenderam se libertar. A dificuldade de comunicação entre seres tão estranhos entre si, bem como a simples discordância interna, tornaram a situação completamente caótica, a ponto de não ser possível qualquer contato civilizado eficiente, e na maior parte do tempo, elas lutavam umas com as outras e se dividiam em grupos, alguns fiéis ao estado de coisas original e tencionando apenas se manter em paz em seu mundo mental próprio, outras dispostas a partir para outros horizontes de existência, e outras dispostas mesmo a destruir seus visitantes, quer fosse por medo, ou por mera precaução.

Mas havia coisas que somente ele pensava ter percebido. Como o próprio DAMIATE sugeria, se as mentes de KUTLIU fossem suficientemente poderosas para de fato criar uma rede telepática ostensiva, o que garantia que já não o tivessem feito? O próprio DAMIATE fora capaz, como todos tiveram que admitir, de enviar sua mente por mais de 75 Anos-Luz de distância. Por que aquele coletivo formidável de mil mentes não poderia ter feito o mesmo em algum momento da história galáctica, precisando para isso, no máximo, ter enviado algum corpo qualquer para algum sistema estelar distante para estabelecer a conexão?

Tempo, houve de sobra, NIARLATOTEP poderia viajar no espaço, mesmo a velocidades sub luminais, para ter espalhado a rede mental num raio de dezenas de sistemas estelares próximos, dos quais poderiam ter sido lançadas outras investidas. Poderia também ter sido manipulada a evolução biológica do planeta para construir um ser sensciente que pudesse se tornar um Hipemeta, ou mesmo ter sido desenvolvida tecnologia para isso. Aquelas mentes tinham seguramente tal potencial. Além do mais, era possível que fossem capazes até mesmo de gerar um campo mental ou astral tão poderoso que fosse capaz de alcançar outros sistemas estelares sem suporte físico, como a teoria da Convergência Anatômica Zenitron prevê. Dessa forma, era perfeitamente plausível que o Planeta Fantasma, e talvez outros similares a ele, viessem dirigindo a evolução galáctica de modo extremamente sutil, conduzindo os rumos da história de formas que jamais poderiam ser compreendidas.

Dificilmente essa hipótese poderia ser verificada, mas ela podia lançar muitas dúvidas a respeito de um dos maiores consensos não explicitados, principalmente entre os CINZAs, que era a idéia de que os Metiats eram os grandes arquitetos da galáxia pós-primordial. Talvez fosse melhor não insistir muito nesse assunto.

Voltavam agora à Madre-Terra, e o que antes era uma missão de exploração aparentemente comum, fora uma dos eventos arqueológicos mais memoráveis da história galáctica. Apesar dos percalços, o resultado final ainda fora positivo, apesar de 5 fatalidades, 6 se considerassem que um dos técnicos ressuscitados voltara tão diferente que era psicologicamente irreconhecível. Um rapaz que antes era alegre e expansivo, extrovertido e conhecido de todos, agora era estranhamente introspectivo, até mesmo difícil de ser telepaticamente acessado.

Não se conformava, porém, com a morte de Viuik. Era certo que fora o primeiro contato mental íntimo das mentes de KUTLIU com o universo exterior, o que criara nela uma ponte de acesso permanente, embora totalmente inconsciente, à qualquer lugar onde estivesse. DAMIATE nunca revelara por que de fato a matara, mas Velek sabia. Em qualquer lugar que ela estivesse, seria um canal constante de acesso das mentes do Planeta Fantasma. Se ela fosse levada à SOFISTIA, por exemplo, permitiria que KUTLIU lançasse sua rede telepática sobre o planeta. DAMIATE não quis arriscar, e preferiu levá-la consigo para, usando-a como um canal de acesso facilitado, justificar sua morte. Não era necessário. Era totalmente dispensável! DAMIATE poderia simplesmente tê-la matado sem dar qualquer satisfação a ninguém! Como já fizera inúmeras vezes. Mas já que não o fizera, por que simplesmente não deixá-la viva ali mesmo, numa das expedições que ficou em NOVITA 5? Isso a tornaria um canal praticamente inútil, visto que estaria tão próxima de qualquer lugar quanto o próprio Planeta Fantasma. E o pior, que ao final, fora totalmente inútil, porque NOVITA-5 acabou sendo removido da realidade! Desaparecera! E não parecia haver possibilidade de retornar.

A não ser... Que tivesse ocorrido algo similar ao que XUBNIGURAT fizera. Randol explicara do que se tratava aquilo que DAMIATE re referira pelo termo Horcrux, por sinal, um termo também da mesma época das referências HPs, inclusive de uma obra com as mesmas iniciais, que porém se referia a um conceito bem mais antigo. No caso, a idéia de separar parte da vitalidade e ou da mente de um ser sensciente e depositá-la num outro corpo, mesmo um objeto não vivo, podendo recuperá-la para construir um novo corpo caso o original fosse destruído.

Até ele tinha receio de pensar nisso. Se fosse assim, talvez tivesse sido melhor que todos tivessem morrido.

JEROK

Ele era um meta antropônico. A maioria não sabia, visto que usava cabelos artificiais que disfarçavam eficientemente seu crânio avantajado, como era comum, por sinal. Ademais, se comportava de modo bastante usual, passando por um antropônico normal apesar de sua genialidade como engenheiro informático. Meta antropônicos eram também sexuados, e tão sensíveis a sensualidade quando antropônicos normais, mas tinham algumas reservas típicas, um certo comedimento, e era esse tipo de conduta padrão dos meta antropônicos que agora enchia Jerok de vergonha, visto que sucumbira ao encanto da seilan sem que esta sequer tivesse lhe dado ao menos atenção.

Como poderia explicar isso? Não havia evidência alguma de que ela tivesse lhe seduzido, fora iniciativa dele, o que o tornava responsável, diferente do que ocorreria caso ela o tivesse deliberadamente dominado. Sua defesa ficaria muito complicada, visto que fora iniciativa dele procurar os seilans e incentivá-los a agir. Talvez, sem isso, eles não tivessem se envolvido nas ações que deixaram SEILA e Madre-Terra tanto tempo em deliberações judiciais. Além disso, sem eles, os demais motineiros que tiveram iniciativas espontâneas, jamais poderia ter levado adiante suas ações.

Mas tudo isso, mesmo toda a repreensão e a vergonha de seus atos, nada eram comparado ao fato de que tudo fora em vão. Ele não teria a atenção de sua amada, que foi proibida de se aproximar dele, e mesmo que não fosse, ela havia afirmado não ter interesse algum, até pelo contrário, visto que não preenchia os requisitos básicos dela, e ainda por cima ele era um desagradável meta antropônico, opinião que, no entanto, não era compartilhada pela maioria das seilans. Tanto que uma delas, chegara a entrar em contato com ele... Discretamente.

Pouco antes da frota começar a se mover a caminho de Madre-Terra, Jerok sabia que a punição que o aguardava já seria desagradável, mas que o simples fato de deixar para trás a proximidade da frota seilan constituía uma sensação muito pior. Decidiu então tomar uma atitude.

Primeiro, cometera um suicídio de baixo impacto. Isto é, dos que não seriam difíceis de ser revertidos pela ressuscitação. A julgar pela situação de restrição em que ele estava, isso era compreensível, porque qualquer um que praticasse um suicídio de baixo impacto tendo a possibilidade de fazê-lo de um modo mais irreversível, especialmente sabendo que havia ressuscitadores por perto, era imediatamente visto como tendo outra intenção, e havia punições para o "pseudo-suicídio".

Como ele não dispunha de métodos mais eficientes de se matar, aquele suicídio não chegara a ser considerado suspeito, principalmente porque os motivos que ele possuía eram bem convicentes. Suicídios de homens rejeitados por seilans não eram simplesmente comuns, eram a regra.

Assim, foi levado para a ressuscitação, e para sua sorte, como esperava, não sentira qualquer grande modificação psicológica, apesar das comuns modificações físicas que o processo bem sucedido de ressuscitação incluía. Era padrão, por exemplo, eliminar cicatrizes ou defeitos adquiridos como em qualquer terapia estética típica. Exceto em expressa declaração requisitando o contrário, uma vez que em plena era da perfeição corpórea, ainda havia pessoas que gostava de suas cicatrizes. A sondagem telepática por que passara, procedimento padrão, não fora muito profunda, devido ao fato de que não se desconfiava de algo, como também porque após tamanho estresse telepático em torno do Planeta Fantasma, elas haviam sido contra indicadas, e não foram ainda devidamente retomadas mesmo como desaparecimento do planeta. Caso a sondagem fosse mais intensa, ele estava preparado para tentar ludibriá-la o melhor possível. Algum treinamento competente permite a qualquer não telepata resistir ou enganar leituras telepáticas ao menos até o nível 3. Ademais, ele já contava com alguma proteção, que obtivera... Discretamente.

Totalmente renovado fisicamente, e conservado mentalmente, conseguiu aproveitar o pouco tempo que teve para executar o seu plano, durante o processo de reabilitação e as terapias psicológicas e investigações típicas do ocorrido, antes que fosse colocado novamente em restrições. Obteve acesso a um pequeno comunicador portátil, onde pode ativar seu último trunfo, uma instrução oculta no sistema da IANTIS que era modesta demais para ser motivo de preocupação, visto que só tinha acesso ao sistema de registro e reprodução de imagens públicas, sem nenhum acesso a níveis de segurança mais complexos.

Não são raros os casos em que hackers usam tais recursos para divulgar mensagens de amor, brincadeiras ou gozações com os amigos, ou mesmo auto publicidade, que em geral são consideradas infrações leves. Mas Jerok não fez nada disso, ele acessou uma imagem perfeitamente pública, mas que ninguém queria acessar, e conseguiu reproduzi-la em praticamente todos os dispositivos visuais da nave. Era a imagem horrorosa de XUBNIGURAT.

A reação foi tão violenta que ele poderia ter sido submetido a uma punição equivalente à aplicada a um ato terrorista. Setores inteiros da nave pararam. Técnicos pularam de suas cadeiras se afastando das imagens, e outros chegaram a ativar desligamento total de alguns sistemas para não ter que fazê-lo gradativamente enquanto as viam. A confusão foi tamanha que ele pôde escapulir com alguma facilidade, e chegar a um local de acesso à parte externa da nave, passando pela sala dos trajes espaciais. Colocar um e sair por uma das escotilhas, por incrível que pareça, não era muito difícil. Complicado era fazê-lo sem ser notado, ou conseguir recursos para atitudes mais radicais.

Quando estava do lado externo, foi evidentemente seguido por robôs de segurança e de resgate, mas conseguira uma façanha ainda mais improvável do que a anterior. Conhecia uma rotina que o permitia violar o sistema de segurança do traje, que era projetado para impedir qualquer forma de uso indevido, como remover a proteção e se expor ao vácuo espacial. Com tal feito, ameaçou os computadores com o suicídio, e os intimou a não impedí-lo quando ativou foguetes à impulsão máxima, violando também os sistemas de economia compulsiva que o impediriam de gastar toda a energia. Com o impulso, se afastou da frota, e todos pensaram que ele queria, pura e simplesmente, cometer um suicídio da alta eficiência, pois se expor subitamente ao vazio do espaço costumava, naqueles casos, simplesmente explodir o próprio corpo causando um dano sabidamente irreversível. Com isso, ninguém pôde notar que ele enviara uma mensagem, mais uma vez... Discretamente.

Tudo que as câmeras dos ZIGs pegaram foi um traje sendo aberto e um corpo sendo literalmente destrinchado, o que já esperavam. Pedaços voaram por toda parte se espalhando rapidamente, e teriam sido recolhidos não fosse o fato de uma misteriosa explosão gaseificá-los completamente. Isso encerrou o caso, a única dúvida que ficou foi onde ele conseguira aquele artefato explosivo, muito similar a cristais explosivos seilans. Os servos de Lunis disseram que não havia como saber se ele havia adquirido cristais explosivos pouco antes de provocarem a terrível explosão na IANTIS. Era possível que ele os tivesse escondido em algum lugar, e os recuperado antes de se lançar ao espaço. Assim, ninguém se preocupou em verificar mais atentamente a possibilidade de que as imagens fossem artificialmente produzidas, projetadas, por exemplo, por um dispositivo óptico capaz de transformar imagens mentais em projeções fotônicas.

Lunis sabia, mas jamais contaria. Pois discretamente, Jerok fora resgatado por uma nave invisível seilan, onde a feiticeira que antes o visitara telepaticamente, com um acobertamento providencial de sua colega residente à bordo da IANTIS, propusera levá-lo consigo. Ele era talentoso demais com sistemas informáticos, e as seilans nunca desperdiçavam oportunidades de capturar homens que poderiam ajudar a sabotar a tecnologia eletromagnética de seus adversários.

Como seilan alguma jamais lançara seu poder sobre ele, foi facílimo para a outra fazê-lo, pois um homem comum só pode resistir ao encanto de uma feiticeira seilan se já estiver sob o encanto de outra.

Ele nunca estivera apaixonado por Lunis, era apenas apaixonado pelas seilans.

KLUBIS

A frota LEPTA-27 Voltava agora para ROUMA, o sistema estelar dos marous. As exo-arqueólogas madre-terrestres voltavam com ela, pois ainda estavam na metade de seu tempo previsto de intercâmbio cultural interestelar. Mas no momento, a noxi estava completamente imersa em seus próprios pensamentos sobre todas as descobertas feitas sobre o Planeta Fantasma, e sobre seu desaparecimento misterioso.

De fato, a cultura que construíra as mega cidades fantasmas estava extinta há 570 milhões de anos, tendo deixado alguns vestígios bem menos impressionantes em outros planetas. A teoria favorita continuava sendo a de que o Planeta Fantasma era uma prisão para supermetas poderosos, em geral telepatas, que não podiam ser mortos porque tal civilização reprovava a pena capital e também porque alguns deles eram suficientemente fortes para reencarnarem intactos em outros corpos, ou perambularem ilesos no astral, promovendo toda sorte de atos similares aos pelos quais foram condenados. Por isso, cérebros cópias foram construídos e as mentes transferidas por um processo que implica ativação do cérebro cópia, conexão mental e destruição do cérebro original, conectando a mente com o novo cérebro.

Isso não impediria, é claro, que as mentes desenvolvessem independência em astral, e por isso criaram o imenso peixe, que os madre-terrestres batizaram de DAGON, para neutralizar tais tentativas. Ainda assim, a ativação simultânea de vários cérebros bem como sua proximidade e provável afinidade acabava aprisionando-os mais pela atração mútua e pela coletividade espontânea do que pela coerção, bem como as enfraquecia pelas ilusões mútuas que geravam uma na outra, lançado-as em perpétuos sonhos, pesadelos e delírios. A união de todas as mentes numa única vontade coesa provavelmente as tornaria suficientemente poderosa para subjugar as mentes das outras criaturas, porém, essa coletividade "forçada" acabava deixando-as tão imersas em seus próprios mundos que tendiam a se desinteressar pelo mundo exterior. Além do mais, o interesse restante costumava ser canalizado pela criatura em si, chamada de KUTLIU, visto que seu corpo e órgãos sensoriais enviavam estímulos simultâneos para todos os cérebros, que podiam, porém, ser recebidos ou não de acordo com a vontade de cada mente. Assim, algumas acompanhavam atentamente as viagens submarinas do monstro, outras sonhavam, outras se conectavam com as demais, de modo que ficavam distraídas ou concentradas em coisas distintas, em momentos distintos.

KUTLIU era, em si, a prisão, mas os "carcereiros" também eram prisioneiros, ainda que incumbidos de vigiar as mil mentes. Somente NIARLATOTEP poderia ser considerado um autêntico guarda, mas estava vital e mentalmente preso à AZATOT, de onde retirava sua força e sem o qual sucumbiria. Este era responsável por gerar o escudo de invisibilidade, cuja principal função era impedir que observadores de sistemas estelares remotos, ao observarem o planeta, facilitassem que as mentes aprisionadas encontrassem uma rota de saída, visto que a simples percepção visual de um local pode permitir que um telepata residente consiga sintonizar uma mente distante com maior facilidade. Ademais, como o sistema foi completamente abandonado, e os demais planetas não eram interessantes, atrasaria muito que espécies senscientes incautas viessem até ele, o que de fato ocorreu.

Mas pouco poderia ser dito sobre o destino da espécie primordial que o construiu, que como todos os demais Primordiais, desaparecera sem permitir que fossem devidamente conhecidas arqueologicamente. NOVITA-5 foi sem dúvida o maior achado arqueológico primordial de todos os tempos, comparável somente aos anéis espaciais e aos escudos planetários de POLAIGA. Considerando a quantidade e alcance dos anéis espaciais primordiais, era estranha a escassez de outros vestígios na grande maioria dos sistemas estelares interligados, que muitas vezes não tinham evidência alguma da passagem de primordiais além dos próprios anéis. A vastidão das cidades fantasmas era algo completamente inédito, e ainda não fora dada uma boa explicação de por que construções tão colossais foram deixadas intactas ao passo que edificações bem menos expressivas haviam sido destruídas, como algumas lendas antigas afirmavam. Possivelmente achavam que não seria necessário eliminá-las, ou talvez tenham se retirado do planeta às pressas. Foi sugerido inclusive que após a "ativação" da prisão, possa ter ocorrido algum tipo de rebelião que obrigou o evacuação do planeta, deixando-o integralmente para seus moradores definitivos.

Algumas teorias propunham que muitos primordiais tinha se movido para fora da Galáxia, outras, que foram para universos paralelos, possibilidade que ganhou um reforço após o estranho desaparecimento do planeta, que era, afinal, o que mais intrigava a todos, inclusive a Klubis.

Após o confronto telepático entre DAMIATE e KUTLIU, aparentemente, houve na realidade um tipo de acordo. Algumas mentes concordaram em evitar quaisquer hostilidades e tentar impedir outras que insistiam numa abordagem agressiva. Parte delas estava aliada a XUBNIGURAT, na tentativa de cooptar o poder das seilans a seu favor, ainda que muitas estivessem tão assustadas quanto estavam os visitantes. Outras estavam determinadas a manter o isolamento do planeta, e foram essas que convenceram NIARLATOTEP a destruir a frota marou, bem como haviam influenciado YOGSOTOT para abrir o portal que derrubara a GENIUS.

De qualquer modo, apenas KUTLIU e AZATOT foram poupados, tendo sido todos os demais destruídos, o que deixou então o planeta à disposição das mil mentes e de um novo plano astral que agora estava superpovoado. Saber se era por isso que AZATOT decidira remover o planeta da realidade, não parecia possível. Ademais, algumas questões, provavelmente, somente DAMIATE poderia responder, mas considerando que ele gastara sua última cartada ao projetar sua mente de EXARIA, algo que não era previsto pelo pacto, agora não mais poderia fazê-lo novamente, visto que o pacto incluiu a proibição de qualquer tipo de projeção mental por parte dele. Mais do que nunca, ou talvez, somente agora, DAMIATE estava definitivamente restrito ao seu longínquo planeta.

Klubis também entrevistara Dalmana, mas não conseguira muitos detalhes adicionais. Embora fosse sensciente, havia alguma dificuldade extra em penetrar na mente do antróide. Estivera no planeta por mais tempo que qualquer um, e fora o último a sair, numa das naves auxiliares de DAMIATE. Ao que parece, após o fim da batalha, DAMIATE e Zentaris haviam chegado a um tipo de entendimento, e seus atos culminaram com o fenômeno que removeu NOVITA-5 da realidade.

O que o antróide dissera não era muito útil. Ao menos, não o que ele repetira exaustivamente.

Que havia visto a deusa XANTAI.

A vingança pessoal do noxi era saber o que os madre-terrestres não sabiam. Quando ressuscitaram um de seus membros, o que mais demorou para ser atentido, eles não trouxeram a mente original de volta, e sim uma entidade do Planeta Fantasma. Agora ele estava a bordo da Pastor-6, rumo à Madre-Terra.

FILIA E TAULIN

Quando a frota Pastor-6 chegara ao sistema solar, havia muita expectativa. Apesar do controle da Infosfera, especulava-se muito sobre tudo e todos, e era sorte que a chegada da seilan gerasse tanta repercussão e tanto assunto para inesgotáveis debates que iam da preocupação ideológica cultural até a pura frivolidade, que possuía predominância.

O anjo estelar também fora assunto constante, e mesmo o antróide, do tipo cuja fabricação era proibida em Madre-Terra, fora um tema notável. A destruição de uma das naves e a morte de alguns membros da frota também foi muito explorada, e com tudo isso, conseguiu-se após um tempo, relegar a verdadeira importância das descobertas para um plano mais restrito, que fora de interesse mais dos entendidos no assunto. Não demorou para que estudos sobre o desequilíbrio gravitacional ocorrido em NOVITA após o sumiço de um planeta tivesse se tornando o tema mais frenquente entre os acadêmicos.

Os 3 dirigentes da frota, Filia, Taulin e Velek tiveram agendas bastante cheias. À primeira, passar por um severo julgamento que terminou por inocentá-la da maior parte das acusações devido aos atenuantes. Recebera uma "punição" quase simbólica, sendo nomeada diretora de uma distante estação espacial. Para quem nascera e vivera quase toda a vida no espaço, não era algo que realmente magoasse.

Aos demais, só honrarias, e Taulin preferiu abandonar as viagens interestelares, ao contrário de Filia, era um terrestre nato, e viveria o restante de sua vida assim. Velek, um tanto soturno, ainda passou muito tempo visitando ex membros da frota, em especial o antróide e a seilan, que afinal se tornara parte da equipe de super metas de Nova Acrópolis, a "capital" da Mãe-Terra.

Pouco depois, o rapaz que fora ressuscitado, e que mudara bruscamente de personalidade, foi aceito no curso regular de metanaturais da cidade de Xantai. Bem além da idade normal. Com habilidades Bem acima da média dos iniciantes normais.

Foi vigiado muito atentamente.

DAMIATE
Foi um alívio para ela quando viu novamente o Lorde Mestre. Ele estivera hibernando, todos sabiam, mas ninguém tinha idéia do porquê. - Seja bem vindo senho... DAMIATE. - Disse a jovem. Era curioso que DAMIATE embora aceitasse ser tratado como Lorde Mestre, preferia ser chamado simplesmente pelo seu nome, sem nenhum título, por quem quer que fosse. Ela não teria coragem de perguntar, mas considerando a curiosidade ardente de seus colegas, que colocaram nas costas dela a responsabilidade de tentar descobrir mais, ousou perguntar. - Sua... Carga chegou ao destino em segurança?
- Sim. Perfeitamente. E não se preocupe. Eu não saí de EXARIA.
- Claro. - E tentou descontrair, inclusive acenando de modo um tanto displicente. Era curioso que o Lorde Mestre jamais fora autoritário, severo ou mesmo sarcástico com qualquer um, ao menos que ela soubesse, mesmo assim, havia algo nele que deixava todos nada à vontade, exceto 'A Senhora', é claro. O que era bastante compreensível, visto que ela era muito mais perturbadora do que Ele. Arrebatadoramente linda e encantadora, mas ainda assim, terrível.
DAMIATE movia o corpo de modo cuidadoso, típico de quem passou muito tempo desacordado, e então relaxou, flutuou cms acima do chão, e como era de se esperar, desapareceu no seu típico pulso luminoso rosado. A área que restava costumava ser imediatamente preenchida pelas pequeninas fadas, que pareciam querer achar o local por onde ele acabara de sair. Mesmo ali dentro, num dos prédios de operações, elas costumavam importunar ocasionalmente.

Numa das torres, A 'Senhora' esperava, contemplando o por da lua sobre imensos campos de flores luminosas. Ela sabia que Ele voltara, pôde sentir o retorno de sua mente no momento exato em que ocorreu. Poderia senti-la mesmo que estivesse em um outro planeta.
Se houvesse uma lista dos 10 maiores telepatas da galáxia, Ela certamente estaria nela, mesmo uma que incluísse todas as espécies sencientes, mesmo os Metiats. Ela, sem dúvida alguma, era a maior telepata antropônica. Maior até do que DAMIATE, se ele pudesse ser realmente considerado um antropônico.
Mesmo assim, ela não podia penetrar na mente dele. Ela poderia fazê-lo com praticamente qualquer um, exceto raros telepatas de nível muito alto. Havia muitas disciplinas mentais que podiam bloquear qualquer tipo de investida telepática, disponíveis inclusive para não telepatas. Mas tais disciplinas tinham limites, e na realidade nenhuma delas teria qualquer eficiência contra Ela.
Ela poderia entrar na mente de qualquer um, mesmo bons telepatas, e fazer o que quisesse. Apagar, copiar, alterar ou implantar memórias, emoções, personalidades. Poderia fazê-lo sem que a vítima sequer se desse conta. Exceto é claro, alguns poucos telepatas realmente poderosos. Como Ele, que acabara de chegar.
Não adiantava tentar lê-lo, se ele não o quisesse, e Ele parecia estranhamente fechado. O diálogo teve que ser normal.

Foi mais desgastante do que eu pensava. Mas funcionou. A ameaça foi neutralizada. O planeta foi removido. Uma preocupação primordial a menos.
O que elas acharam?
No começo estavam empolgadas, mas agora, provavelmente já perceberam que nada havia ali que as interessasse.
Você gastou um de seus melhores trunfos. Não poderá mais fazê-lo novamente. Espero que tenha valido a pena.
Espero não mais ter que fazê-lo até que tudo esteja preparado. Meu exílio está se aproximando do fim. Não creio que passe do ano 4.000 madre-terrestre.
Após todo esse tempo, você ainda conta o tempo pelo padrão antigo da Mãe-Terra. Curioso esse saudosismo de um tempo remoto que sequer caracteriza o que você é. Impressionante como frustra minhas tentativas de entendê-lo.
Você me entende melhor do que qualquer outra pessoa jamais poderia sonhar.
O que torna você o ser menos compreensível da galáxia. Eu sei menos sobre você do que sei sobre esse Planeta Fantasma.
Você não tem nada melhor para fazer com essa sua... Maior inteligência antropônica existente?!
Mesmo seus sarcasmos são indecifráveis.
Os seus também!
Somos tão estranhos um para o outro quanto quando nos conhecemos. Talvez até mais. Aceitei me unir a você por que não podia dar as costas a uma ameaça tão grande. Melhor vigiá-lo de perto. Mas agora, penso que nem isso posso esperar de você. Eu o compreendo menos ainda.
Talvez estudando as novas informações sobre o Planeta Fantasma, e aprendendo sobre as poucas coisas a respeito das quais você não sabe tudo, te ajude a entender um pouco mais este Universo que vivemos.
Estudarei com afinco, principalmente se me ajudar a compreender você. Mas não deveria me incentivar tanto. Se eu tiver compreensão suficiente, posso decidir destruí-lo.
... E meus funcionários pensam que você gosta de mim.
Se sentimentos de tal ordem ainda se aplicassem a mim, eu provavelmente o odiaria.
Certamente. Infelizmente eu não poderia retribuir-lhe esse ódio. Nunca odiei algo.
De certo que não. Mas, afinal. O que ele buscava? Era tão importante a ponto de você enviar Luriander?! Pensei que estivesse apreensivo com a exposição do maior Anjo Estelar à ameaça delas, que devemos admitir, podem ser questionáveis em sua capacidade de dominá-lo. Mas Luri? Ele é ainda mais precioso para nós, e muitíssimo mais vulnerável. O que acha que Bentom faria se ele fosse capturado?
De Bentom só espero o melhor. O problema é a sua prima! Sim... Do ódio dela eu deveria ter medo. De qualquer modo, foi muito válido. A maioria das informações jamais será amplamente liberada, eu aposto. E nem deve. Havia uma criatura lá que era o contrário de vocês. Isso é, tão monstruosamente repugnante para os humanos quanto você é divinamente atraente, capaz de infligir um sofrimento diametralmente oposto ao prazer que vocês podem fornecer. Não podia permitir uma coisa dessas à solta na Galáxia. Foi por isso que promovi a Guerra Celestial! Com ela, arranquei o Inferno da Mãe-Terra e o mandei para onde jamais poderá voltar! Não poderia permitir outro ser capaz de reinstituí-lo novamente! Quer fosse lá, ou em algum outro lugar.
Então tínhamos outra ameaça equivalente aos IEGs?
Talvez até pior. Aliás, alguma novidade enquanto estive fora?
Não. Creio que os exterminamos por completo. Eu soube que havia um ser que controlava portais. O que aconteceu com ele?
Destruído também. Não temos mais que nos preocupar com nada naquele planeta.
Nem com o mestre dos sonhos?
... Um rapaz o apelidou de KUTLIU. Bem, esse pode ter espalhado sua influência bem além do que eu gostaria. Uma de suas mentes se infiltrou num dos tripulantes da Pastor-6, que foi ressuscitado muito tardiamente. Mas não creio que ele possa ser perigoso. Me preocupa mais o antróide. Ele passou tempo demais naquele planeta. Mas de qualquer modo, a grande ameaça foi removida. Esse KUTLIU era um coletivo de mentes bastante poderoso, poderia criar uma rede telepática extensiva de alcance imprevisível. Mas eu o convenci, espero que tenha convencido a maioria deles, que permanecer em seu universo particular era mais interessante do que vir para o universo externo.
Sim. Afinal, não há qualquer diferença qualitativa entre o universo mental de toda a Galáxia, e o universo pessoal de uma única mente, caso ela possa ser auto suficiente. Me impressiona que estes seres tenham sido tentados a sair de seus protetorados pessoais. Como podem querer trocar o papel de divindades pelo de seres subordinados à divindades?
Foi basicamente o que eu disse a eles. Isto é, eles já tinham essa idéia, eu só a reforcei, com argumentos que mostravam que nossa galáxia atual é bem menos interessante que a de milhões de anos atrás. Nem todos concordaram, é claro. Tive que destruir alguns, mas os outros se importaram menos do que eu esperava. Enfim, consideraram que se abrir a um novo universo mental era como expor sua própria interioridade a qualquer ataque externo. Tiveram que acreditar em mim quando contei minha história.
Então você está prestes a me revelar um pedaço da sua história?
Apenas que... Essa situação de haver um universo mental restrito vivendo de forma totalmente independente e autônoma, é como um Paraíso. Quando a influência externa chega, conecta-se a ele forçando-o a absorver uma nova realidade superveniente. O Paraíso é destruído. Isso aconteceu antes, e foi por isso que fui criado. Para defender o paraíso. E eu falhei. É tudo. Me identifiquei com as mentes cativas de KUTLIU, e minha história, totalmente à prova de qualquer dissimulação, os convenceu.
Também defendi um Paraíso certa vez. Mas eu sabia que a derrota era inevitável. Apenas não queria aceitar. Mas, e agora? Qual será nosso próximo passo? Se você precisar, posso projetar minha mente para outras partes da Galáxia também, e eu não preciso de um astro clone.
Também não precisarei mais dos meus. Na realidade, meu próximo passo agora é destruí-los.
Sim, uma vez que descobriram essa possibilidade, não mais tolerarão sua ocorrência. Isso se não forem suficientemente sofisticados para tentar chegar à você através de um deles. É algo que eu esperaria delas.
Por isso mesmo preciso destruí-los! Alguns deles chegaram a adquirir uma sensciência própria. E um deles já sabe que haverá um soma clone disponível em Madre-Terra em, no máximo, 14 anos locais. Provavelmente tentará capturá-lo. Tenho que desenvolver um plano para evitar isso.
Isso não afetará nosso prazo?
Não! É muito improvável.
Pois bem. Posso esperar. Mas se estourarmos o tempo pré-estabelecido, e não tivermos solucionado essa situação, eu destruirei você. Veja. Não é algo que eu queira, ou gostaria, de fazer. Apenas terei que fazê-lo.

DAMIATE se aproximou dela, que sorria, prestes a se despedir. - Chego quase a desejar falhar, apenas para viabilizar essa situação. Sim. Você poderia me destruir, e é por isso que decidi não dar as costas a você também. Como seria? Como seria ser aniquilado por você? Um êxtase magnífico! Certamente. Mas o que mais?

E desapareceu, deixando-a só por um tempo, até desaparecer também, teleportando-se para outro lugar.

F I M

Marcus Valerio XR
7 de Janeiro de 2010