Universidade de Brasília, Julho de 2014
Departamento Graduação em Filosofia
Disciplina de Idéias Filosóficas em Forma Literária – 139653
Professora: Ana Miriam Wuensch










DESLEITURAS EM PIZAN

Sobre um enfoque Feminista Atual
a uma obra feminina medieval

O alegado Feminicídio na obra
A CIDADE DAS DAMAS
de Cristine de Pizan

Aproximadamente 21.450 caracteres










Marcus Valerio XR

Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade de Brasília
www.xr.pro.br

Tendo finalizado meu Mestrado em 2010, evidentemente nunca mais publiquei textos na seção de Monografias de meu site, visto que a mesma pretende abrigar somente meus textos redigidos em disciplinas acadêmicas. No entanto, no primeiro semestre ano de 2014 tive o privilégio de cursar, como ouvinte, esta disciplina ministrada por uma estimada professora que, por sinal, foi a mesma que ministrou a disciplina na qual produzi uma das minhas primeiras monografias da Graduação em Filosofia, ainda no Segundo Semestre de 2002, Introdução a Prática Filosófica. Bem como uma mestra que me influenciou bastante, tendo a perspicácia de inclusive me colocar em contato com David Hume, que na época eu não conhecia e que viria a se tornar certamente o filósofo com o qual mais tenho afinidade de pensamento, e o qual trabalhei em minha Tese de Mestrado.

Nesta disciplina de Idéias Filosóficas em Forma Literaria tivemos a oportunidade de estudar uma obra que desde meu primeiro contato com a professora Ana Mirian viria a despertar minha curiosidade, A CIDADE DAS DAMAS, de Cristine de Pizan (1364-1430 dEC), publicado em francês em 1405, mas que desde então por uma série de fatores não tivera a oportunidade de ler. Sabendo que uma das mais eficientes formas de fazer com que um livro assuma a frente da prioridade de uma extensa lista de leituras é trazê-lo a um debate atual, não perdi essa oportunidade de cursar essa disciplina mesmo sem estar na condição oficial de aluno da UnB, condição de que usufrui por mais de 15 anos no total.

Para essa empreitada, tomamos como referência principal a Tese de Doutorado de Luciana Eleonora de Freitas Calado, A CIDADE DAS DAMAS: A Construção da Memória Feminina no Imaginário Utópico de Christine de Pizan, de 2006, pela Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Letras. O texto inclui uma tradução para português, um tanto acidentada mas útil, desta obra de Pizan na íntegra.

Extremamente gratificante, a disciplina no entanto me trouxe várias surpresas. A primeira a de que a obra em questão não era, como eu pensava, uma Ginotopia, isto é, uma concepção de uma sociedade ginocrática utópica, mas sim uma alegoria que de forma apologética defendia o valor da condição feminina por meio de uma coletânea de mulheres históricas, e míticas, de grande valor, agrupando-as simbolicamente numa cidade poética que serve de estrutura referencial ordenadora de suas características. Portanto, essa percepção eliminou de início minha primeira intuição com potencial de elaborar uma monografia sobre a mesma.

Também para minha surpresa notei um tom apologético compatível com algumas propostas feministas contemporâneas, embora pouco populares, em especial o resgate de feitos históricos promovidos por mulheres. Porém, como é bastante típico da literatura medieval e antiga, essa seleção de mulheres notáveis pouco distingue eventos históricos consensuais de mitos e lendas de teor sobrenatural, tornando dificílima uma abordagem histórica. Ocorreu-me abordar o Mito das Amazonas, que aparece bastante no Livro Primeiro da obra no mesmo sentido originário de uma Ginotopia, mas exigiria uma abordagem que praticamente sairia por completo da obra de Pizan, e no qual um dos temas mais relevantes já foi tratado em Genogênese - Produção de Pessoas.

Por fim, optei por uma ideia que foi sugerida em sala de aula, mas que não chegou a ser desenvolvida nem pela professora nem por quaisquer dos alunos, que tiveram ampla liberdade de escolha de temas. Seria a percepção de que o Livro Terceiro poderia ser lido pelo enfoque atualíssimo do conceito de 'Feminicídio', que por sinal é termo que tem sido utilizado somente a partir deste Século XXI.

Assim, unifiquei num só breve texto uma abordagem da obra de Pizan em si, a um tema que tem me ocupado fortemente, aliás majoritariamente, nos últimos anos, uma forte crítica ao Feminismo, especificamente o de Segunda Onda, dos quais, ao lado do Abortismo e da Doutrina da Cultura de Estupro (que maliciosamente apelidei de 'Estuprismo'), reúno a Doutrina do Feminicídio como os temas mais equivocados, e infelizmente populares, dessa tradição de pensamento.

Lanço então tardiamente esta brevíssima "monografia", em estilo nitidamente distinto das demais, até por não necessitar do mesmo rigor acadêmico, estando então num espírito mais próximo a de meus Ensaios. Se bem que muitos destes também tem se aproximado do rigor acadêmico de minhas monografias, em especial os textos sobre HIPERGAMIA, que foram desenvolvidos num grupo de estudos acadêmicos, mas que nunca foram publicados aqui porque nunca os dei por terminados.

Marcus Valerio XR
1 de Dezembro de 2014

INTRODUÇÃO

Meu problema com o conceito de 'feminicídio' começa pelo nome, que já parece excessivo perante 'femicídio', e ainda assim desnecessário diante do já previsto termo 'ginocídio', que me pareceria perfeitamente suficiente a não ser pelo fato de existir a pretensão de um enfoque culturalista que transcenda o simples e objetivo homicídio de uma pessoa do sexo feminino.

O conceito de feminicídio pretende especificar um tipo de ginocídio necessariamente cometido por um homem, desconsiderando o ginocídio intra gênero, e que teria como motivação primordial o simples fato, como se tem dito, da "vítima ser mulher".

Mas essa noção tem sido confusa entra as próprias feministas, que melhor descreveriam tal tipo de ginocídio "em função da condição de mulher", e não "por causa de ser", pois esta simplificação tornaria esse tipo de crime nada menos que inexistente. Todo assassinato, especialmente se doloso, pressupõe um motivo específico que não pode jamais ser reduzido a sua generalidade exceto nos casos de um genocídio devidamente orquestrado, o que jamais poderia ser o caso visto que o genocídio não distingue gênero.

Até mesmo os ginocidas seriais possuem um perfil de vítima feminina, não basta ser mulher, é preciso que isso concorra com uma faixa etária, um grupo étnico, uma aparência específica e normalmente alguma conduta de ordem sexual. Assim, apesar de realmente a vítima ser morta 'em função da condição feminina', jamais o é 'apenas por ela'.

O mesmo se diz dos casos passionais, outrora vistos no imaginário como "crimes de paixão", mas hoje melhor descrito como crimes de 'possessividade' ou 'ciúmes'. Nesses casos, o motivação do ginocídio não é o simples fato de pertencer ao gênero feminino, mas de, em função deste pertencimento, estar envolvida numa relação específica com certas peculiaridades. O motivo do ginocídio será então 'ciúme doentio', 'possessividade desmedida', alguma séria 'desavença pessoal de ordem conjugal' ou qualquer outro motivo usualmente fútil.

Se esse conceito já não encontra uma boa representação na realidade atual, por mais que se insista em tirar o foco da conduta individual para uma suposta conduta coletiva, muitíssimo menos pode ser visto na obra de Cristine de Pizan, em especial o Livro III, e isso deveria ser incrivelmente evidente pelo próprio teor predominantemente apologético religioso da obra, que deixa claro que na totalidade dos casos a morte e tortura de mulheres se dá por motivos religiosos, e não pela mera condição feminina.

Segue então uma demonstração disso por meio de uma listagem exaustiva dos casos citados pela autora.

O LIVRO TERCEIRO

Composto de 19 capítulos, retiro da consideração o primeiro e os dois últimos, visto que não relatam casos de sofrimento e vitimação de mulheres, que são a tônica dominante dos demais. Começando então com o Capítulo II temos o relato das Irmãs de Nossa Senhora e de Maria Madalena cujo infortúnio de resume a testemunharem o sofrimento de Cristo, sendo portanto também irrelevante para o enfoque da tortura e morte de mulheres, bem como os Capítulos XIII e XVI, o primeiro contando como a Virgem Eufrosina passou-se por homem e viveu como um respeitado santo, dando grandes mostras de virtude, sem ser incomodada por suplícios ou ameaças, e o segundo conta a história de Santa Natali, que a exemplo do capítulo segundo, teve como desventura a prisão, tortura e morte de seu marido, devido ao fato deste ser cristão, ao qual confortou dedicadamente até sua morte, e com o qual viria a sonhar, falecendo pacificamente para se encontrar com ele no reino dos céus.

Restam então apenas 13 capítulos cujos relatos de fato envolvem o martírio, suplício, tortura, perseguição e morte de mulheres. Parece-me didático dividi-los em 3 grupos.

1 - GRUPO DO EXCESSO DE SOBRENATURALISMO

No primeiro agrupei os Capítulos VI, VIII, IX e X, onde temos os casos da Virgem Martina, Santa Justina, Virgem Eulália, Virgem Macra, Santa Fé, Virgem Marciana, Virgem Eufêmia, Virgem Teodósia, Santa Bárbara, Santa Dorotéia e Santa Cristina, além de algumas outras virgens não nominadas.

Embora alguns casos envolvam questões de ordem afetiva, em TODOS tais mulheres foram supliciadas ou mortas por terem insistido em se manter cristãs, perante o assédio de outras religiões que pretendiam fazê-las renegar sua fé. Mas o mais problemático é que tais relatos são muitos difíceis de serem trazidos a uma luz contemporânea porque estão repletos de eventos sobrenaturais de dimensões bíblicas.

Virgem Martina, que por sinal fora a única mulher torturada e morta junto com inúmeros homens também cristãos, vertia leite no lugar de sangue, apresentou regeneração instantânea digna do Incrível Hulk, e em outros casos invulnerabilidade ao ferro e ao fogo comparável à do Super-Homem, entre outros vários eventos mágicos espetaculares a tal ponto de tornar o relato inaproveitável para qualquer efeito prático.

No Capítulo VIII, a história de Santa Justina não relata morte nem qualquer tortura ou martírio. Virgem Eulália, Santa Fé e Virgem Eufêmia foram torturadas e mortas, mas também em meio a espetaculares eventos sobrenaturais, incluindo regeneração ao melhor estilo Wolverine. A Virgem Macra chegou a ter os seios arrancados, mas um anjo restaurou sua integridade corporal. E a Virgem Marciana, que como outras relatadas no livro era também iconoclasta, tendo sido presa por destruir ídolos pagãos, foi salva de um estupro graças a uma parede milagrosa que se ergueu entre ela e o agressor.

O mesmo ocorre no Capítulo IX onde as virgens Teodósia, Bárbara e Dorotéia cultivaram-se recusando casamento. Mas seus martírios também foram motivados por inabalável fé cristã. Teodósia sofreu tentativas inúteis de tortura, que não lograram êxito graças a constantes intervenções divinas. Bárbara, de grande beleza, foi torturada e morta em meio a eventos sobrenaturais. Somente a Virgem Dorotéia não apresenta em seu martírio relatos de eventos fantásticos, mas converteu um certo Teófilo que também teve seu mesmo destino.

Por fim, o Capítulo X narra a estória, e aqui friso o termo ESTÓRIA, de Santa Cristina, pois esta é tão titânica e apoteótica no supra realismo fantástico que obscurece até obras como O Senhor do Anéis. Numa ocasião um anjo a salvou matando mais de mil descrentes!

Em suma, é muito difícil, se não impossível, fazer uma leitura contemporaneamente aproveitável desses relatos, razão porque prefiro suspendê-los da consideração. E de qualquer forma, em TODOS os casos a motivação para a perseguição, tortura e morte foi religiosa, que se abateu também em uma quantidade muito maior de homens sendo que as personagens citadas, enquanto mulheres, são exceções.

Aqui, evidentemente, Cristine de Pizan não pretende fazer qualquer forma de vitimismo exclusivista, não quer chamar a atenção para a crueldade masculina contra as mulheres, e sim fornecer, como diz no primeiro parágrafo do Capítulo III "...a prova de que Deus aprovou o sexo feminino, dando a mulheres dóceis, frágeis e de pouca idade, força e constância, semelhantes aos homens, para se submeterem a horríveis martírios pela glória da santa fé."

2 - GRUPO DE BAIXO OU NENHUM SOBRENATURALISMO

A tônica motivacional aqui não muda. Tais mulheres continuam sendo vitimadas por sua condição religiosa embora com algumas nuances políticas. A diferença é que a presença do sobrenatural é bem menos espetacular, permitindo uma leitura histórica potencialmente válida.

Temos os Capítulos III, IV, V, VII, XIV e XV. No primeiro Santa Catarina e uma rainha foram torturadas e mortas, assim como um número indefinido de sábios e guardas da prisão (homens), pois admoestou Maxêncio contra suas práticas pagãs provando, por argumentos, que só havia um único Deus. Ele convocou então sábios para contra argumentar que, não tendo sucesso, terminaram por se converter a fé cristã e foram então aprisionados, torturados e mortos assim como vários guardas que ela também convertera. O mesmo destino teve a própria esposa do Imperador, que também se converteu. Catarina teve a graça de ter seus suplícios neutralizados por intervenções divinas, graça que não se estendeu aos demais, mas tais eventos são bem mais discretos que os descritos no livro anterior, podendo ser uma mera licença poética para uma resistência física e psicológica incomum.

No capítulo seguinte temos o relato de Santa Margarida, que assim como a anterior Catarina, foi cortejada e rejeitou um Imperador. Este usou a religião cristã como pretexto para torturá-la e matá-la, e ela também foi beneficiada por eventos milagrosos, mas estes parecem ter ocorrido somente a ele própria, podendo ser reduzidos a alucinações. O mesmo destino teve outra virgem chamada Regina, que havia convertido muitas pessoas.

Já Santa Lúcia, no Capítulo V, foi torturada e decapitada, juntamente com um rei que a admirou e a venerou por 20 anos, e outros 12 convertidos, mais uma vez, por sua fé. E por fim no Capítulo VII, há uma outra Santa Lúcia cujos detalhes da morte não são relatados, apenas o de um fenômeno sobrenatural que a protegeu de ser levada a um local de prostituição, embora o mesmo mais uma vez possa ser reduzido a uma licença poética. Já a Virgem Benedita foi martirizada e morta junto com suas 12 discípulas após ter convertido países inteiros à fé cristã, mas novamente não são dados detalhes de seus suplícios e execuções. Santa Fausta tem suas torturas descritas com detalhes apavorantes, e só parte delas gozaram de proteção sobrenatural. Terminou morta em caldeirão de água fervente juntamente com vários homens que ela havia convertido, inclusive um prefeito, numa ocasião em que aparentemente a proteção divina se manifestou novamente desta vez em benefício não só dela mas dos seus companheiros que lhe seguiram.

No Capítulo XIV Santa Anastácia se apiedou com os sofrimento de inúmeros mártires cristãos, incluindo Santo Crisogno. Confortando-os em companhia de inúmeras outras moças cristãs. Dentre elas as nobres Agápia, Queonia e Irene, ao qual o Imperador propôs casamento e riquezas se renunciassem a fé cristã. Recusando-se foram chicoteadas e presas, sendo consoladas por Anastácia. O imperador ordenou o suplício de todos os cristãos tentando forçá-los a adorar os ídolos. O prefeito Dulcitius cobiçou as 3 nobres, tentando possuí-las, mas foi tomado pelo diabo sofrendo delírios e humilhações diversas. As moças nobres foram supliciadas, em meios a proteções sobrenaturais, mas morreram e Anastácia tratou de seus corpos mortos, porém intactos apesar das chibatadas e da fogueira. Na sequência temos o Capítulo XV, onde Teodota, companheira de Anastácia, foi torturada e morta junta com seus 3 filhos. Depois Anastácia, após o martírio e morte de 300 pessoas (homens, mulheres e crianças) finalmente "recebeu a coroa do martírio".

Apesar de também haver intervenções sobrenaturais nestes relatos, eles são mais sutis e podem ser removidos da narrativa sem quaisquer prejuízos, ao passo que os do grupo anterior parecem por completo embrenhados nos relatos de um modo que terminam tornando todo o ocorrido inverossímil. Também neste grupo é mais evidente que morreu uma quantidade de homens bem maior que o de mulheres e numa proporção crível, diferente dos milhares que teriam morrido nos grupos anteriores por meio de ataques celestiais diretos.

3 - GRUPO DOS CASOS DIFERENCIADOS

Aqui reúno os capítulos XI, XII e XVII, que relatam casos distintos, que devem ser tratados em separado.

No Capítulo XI, intitulado "Mulheres que viram o martírio dos Filhos", temos uma mulher chamada Felicidade, que viu seus 7 filhos homens serem torturados e mortos, e depois quis oferecer-se ao sacrifício, mas não se sabe se foi martirizada ou morta. Chama atenção a passagem "Aquela excelente mãe os reconfortava, os exortava a mostrarem-se corajosos e a ficar firmes na fé. Ela havia expulsado de seu coração, pelo amor de Deus, aquele amor que toda mãe tem pela carne de sua carne."

Noutro relato, Julieta viu seu menino, Ciro, ser torturado e morto, relatando que "Aquela mulher o instruiu continuamente na fé cristã (...) os torturados não puderam quebrar nem fazer-lhe renegar o nome de Jesus com a tortura, mesmo sendo tão criança. Com sua vozinha clara, enquanto o torturavam gritava com todos os seus pulmões: "Eu sou cristão! Glória a ti, Senhor Deus."" Não fica claro se esta mãe foi também fisicamente torturada, ou apenas psicologicamente, pelo sofrimento de seu filho, e é dito que ela continuou a louvar o Senhor e encorajar outros mártires.

Diferente foi o caso de Blandine e sua filha de 15 anos, que foram ambas torturadas de forma horrenda e mortas, sem renegar a fé cristã.

Chamo atenção que havendo 8 pessoas do sexo masculino torturados e mortos com detalhes repugnantes, sem direito a intervenções divinas, e apenas duas do sexo feminino, que seguramente tenham tido o mesmo destino, mais uma vez notamos que não há aqui qualquer foco no gênero feminino, mas sim que Pizan quer apenas mostrar que mulheres também foram martirizadas, mesmo que em quantidade bem menor.

Já o Capítulo XII, temos o caso da Virgem Santa Marina, que passou-se por um homem, e viveu como abade num mosteiro. Foi acusada de ter engravidado uma mulher, e por isso, como se fosse um homem, sofreu punições e severo ostracismo, mas sem revelar seu verdadeiro sexo. Somente ao final de muitas anos de privações e humilhações, em função de sua aparente masculinidade, descobriu-se após sua morte que era uma mulher, e então todos se arrependeram dos males que lhe foram afligidos, inclusive a mulher que falsamente a acusou de violentá-la, que Não Recebeu Qualquer Punição, como aliás sempre foi comum. Portanto, aqui, mais do que nunca os suplícios, que numa rara exceção não tem a ver com a fé, foram infligidos a Marina em virtude de sua aparente condição de homem. Ou seja, ela sofreu por uma conduta exclusivamente masculina.

Por fim, o Capítulo XVII, sobre Santa Afra, relata que ela fora prostituta, mas seu tormento e morte foi resultante de sua conversão ao cristianismo, visto ser esta uma desonra ainda pior que a mera desonra do corpo. Ou seja, uma conduta tipicamente feminina, a prostituição, era vista de forma mais benevolente que uma conduta independente do gênero, a adoração da fé cristã. Após sua morte na fogueira (não são relatadas torturas) ela concebera vários milagres em favor de Deus.

CONCLUSÃO

O que é perfeitamente demonstrável aqui é que NÃO HÁ qualquer foco específico no gênero feminino, pelo contrário. As perseguições, prisões, torturas e mortes pelo Fato de Ser Cristão se aplicam em sua grande maioria a homens, sendo essas mulheres vitimadas exceções à regra. O que determina tais brutalidades é uma Condição de Fé, SOB HIPÓTESE ALGUMA uma condição de gênero.

Cristina de Pizan, tanto neste Livro III quanto nos outros nos mostra o exato contrário. Que a condição feminina diminui drasticamente o risco de sofrer violência. A exemplo do Livro II Capítulo XXIV, intitulado 'Sobre um Grupo de Damas que Juntas Salvaram seus Maridos da Morte'. Quando esses homens foram condenados à morte por conspirarem contra os poderes estabelecidos, crime que, como a história evidencia, sempre é punido severamente, suas esposas nada mais fizeram do que libertá-los da prisão travestindo-se com as roupas deles, de modo que eles escaparam e elas foram levadas para a execução. Mas Cristine diz: "Quando perceberam que os condenados eram mulheres, ficaram admirados com a astúcia delas e louvaram-nas. Os cidadãos tiveram piedade de suas filhas, e nenhuma foi morta."

Se elas tomaram essa atitude, seus maridos consentiram, os cidadãos e os poderes da cidade agiram assim, é porque era óbvio que elas NÃO seriam punidas por isso, e todos sabiam disso. Como é possível crer que uma sociedade assim, por mais preconceituosa que seja com relação as virtudes femininas, pode ser considerada como propensa à violência contra mulheres ou qualquer tendência feminicida?

O exame da realidade tanto histórica quanto atual demonstra o absoluto oposto. Mulheres ainda são no máximo cerca de 10% das vítimas de assassinatos, porque a tendência normal da humanidade e preservá-las em detrimento dos homens. Estes são dispensáveis e são enviados aos milhões para morrer em guerras, em aventuras arriscadas ou trabalhos insalubres, sem vitimismo envolvido, pois na maioria das vezes vão de forma voluntária. Até hoje homens ainda são 95% dos mortos em acidentes de trabalho e 100% dos heróis voluntários ou profissionais que se arriscam para salvar vidas alheias em situação de risco. Em qualquer contexto coletivo, numa súbita situação de perigo, o que se observa é a mobilização masculina praticamente imediata para enfrentá-lo e também uma espontânea retração das mulheres, numa dinâmica instintiva e perfeitamente harmônica deles se organizando para protegê-las.

A vida feminina sempre foi mais valiosa e valorada que a masculina. Por isso mesmo frisamos que, num morticínio qualquer, morreram "inclusive mulheres e crianças", porque não se espera delas que se submetam a situações de risco e normalmente não são o alvo preferencial das ações violentas. A regra viciosa nas atrocidades e guerras normalmente seleciona as mulheres como alvo de violência sexual, mas a violência letal é direcionada aos homens.

Mulheres são de fato estupradas por serem mulheres. Mas quem é morto apenas em função de seu gênero é o gênero masculino. Eliminar os homens e tomar as mulheres é a norma da pilhagem, invasão, guerras e toda sorte de violência. Como diz o Deuteronômio Capítulo 20 versículos 13 a 15 "...logo que o Senhor teu Deus a entregar nas tuas mãos, passarás ao fio da espada todos os homens que nela houver; porém as mulheres, os pequeninos, os animais e tudo o que houver na cidade, todo o seu despojo, tomarás por presa; e comerás o despojo dos teus inimigos, que o Senhor teu Deus te deu. Assim farás a todas as cidades que estiverem mais longe de ti, que não são das cidades destas nações."

Não é apenas na obra de Pizan que não cabe a conceito de Feminicídio, ainda que caiba o de misoginia. Na realidade, esse conceito não cabe em lugar algum. O conceito de Feminicídio, como uma pretensão de vitimar e eliminar mulheres por conta apenas de seu gênero se relacionando até ao Genocídio, é uma falsificação histórica, uma fraude sociológica e uma impostura intelectual que subverte por completo a estrutura da realidade em nome de uma ideologia que parte de pressupostos absolutamente falsos e só pode levar a resultados nefastos.

Marcus Valerio XR
Julho de 2014

ADENDO

Ou melhor, esse conceito não cabe QUASE em lugar algum. Existe sim um contexto no qual ele se aplica, que é o infanticídio seletivo, cuja tradicional modalidade pós-parto está em nítida retração no mundo, em favor do infanticídio intra uterino, por meio do Aborto Seletivo.

Neste, de fato, meninas, e algumas vezes também meninos, são mortas simplesmente em função de seu gênero, ou seja, nada mais é necessário além disto para justificar a morte. Da mesma forma como, analogamente, num campo de concentração nazista, apenas a condição de ser judeu é suficiente para a execução, exatamente o que caracteriza o genocídio, algo que não possui qualquer paralelo no caso do ginocídio, visto jamais se ter ouvido falar de um contexto minimamente notável que tenha sistematicamente eliminado mulheres apenas em função do gênero. (Tema muito similar é detalhadamente examinado em O ESTUPRO DA CULTURA.)

Curiosamente, é justo nesse ÚNICO caso onde o conceito de Feminicídio realmente se aplica, que o Feminismo não fará esforço algum no sentido de combater, pelo contrário, dedicando todas as suas forças para preservar.

1 de Dezembro de 2014

BIBLIOGRAFIA

CALADO, Luciana Eleonora de Freitas. A Cidade das Damas: a construção da memória feminina no imaginário utópico de Christine de Pizan / Luciana Eleonora de Freitas Calado. Recife, 2006. (Disponível em www.pgletras.com.br/2006/teses/tese-luciana-eleonora-freitas.pdf)

RUBIN, Anderson Cardoso. Razão, Retidão e Justiça: a questão do conhecimento em A Cidade das Damas de Christine de Pizan. Monografia Filosófica disponível em bdm.unb.br/bitstream/10483/7501/1/2013_AndersonCardosoRubin.pdf é um exemplo de aplicação direta do conceito atual de Feminicídio nesta obra de Pisan, a exemplo de afirmar na página 43: "Assim como do graal jorra incessantemente o sangue de Cristo, da taça de ouro da Dama Justiça jorra o sangue das mulheres vítimas do feminicídio," ainda que remetendo o termo a sua principal autora, Rita Segato, que o popularizou em 2011. Bem como na página seguinte temos: "Ante a dura realidade do feminicídio, Christine apresenta uma atitude de resistência – ante o extermínio, a sobrevivência; ante a provação, a contemplação da vitória final." Monografia referenciada em bdm.unb.br/handle/10483/7501

SEGATO, Rita Laura. Femigenocidio y feminicidio: una propuesta de tipificación. Revista Herramienta Número 49. Ediciones Herramienta. Buenos Aires, Argentina, 2011. Apresentado na mesa “Feminismos Poscoloniales y descoloniales: otras epistemologías” durante o II Encontro Mesoamericano de Estudos de Gênero e Feminismos, 4-6 mayo de 2011, na Cidade de Guatemala. (Disponível em www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-49/femigenocidio-y-feminicidio-una-propuesta-de-tipificacion)


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