Universidade de Brasília, Abril de 2004
Departamento de Filosofia
Disciplina de Hermenêutica Filosófica
Professor Miroslav Milovic
(Em anexo, trecho voltado para Disciplina de História da Filosofia Moderna
Professores: Samuel Simon, Agnaldo Cuoco Portugal, Miroslav Milovic)








HERMENÊUTICAS
SOLIPSISTÊMICAS

Aproximadamente 62.600 caracteres (sem espaços).







Marcus Valerio XR
FREE MIND!!!
www.xr.pro.br
Graduando em Filosofia
Matrícula: 02/98255



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Observação Inicial

Este trabalho é um dos menos lineares que já realizei até hoje, misturando partes antigas com novas, e sendo o único onde reuni reflexões fragmentárias, ocorrendo até aforismas. Adições cronologicamente muito posteriores coexistem com estruturas prévias praticamente fossilizadas, remanescentes de minhas mais antigas elucubrações.
Ele se baseia em 3 grandes aspectos:
O Primeiro, num de meus textos mais antigos na Internet O SOLO PSÍQUICO, começo do ano 2001, desde sempre disponível na Internet, onde formulei a alma de todo meu pensamento sobre o assunto. Evitarei é claro uma simples reedição deste texto, mas é difícil escapar da estrutura fundamental. Darei então apenas um enfoque diferente, me distanciando do teor "teológico/religiológico" que desenvolvi na ocasião.
O Segundo é o direcionamento para a disciplina de Hemernêutica Filosófica, que me foi inesperado por sinal, pois inicialmente eu pretendia desenvolver tal monografia para a disciplina de Filosofia Moderna, como uma oportunidade de conciliar explanações sobre Descartes e Berkeley. Diferente do Primeiro, está não poupará referências à obras filosóficas famosas, onde pretendo mostrar porque os filósofos jamais superaram o problema do Solipsismo.
O Terceiro é a utilização de algumas obras literárias para exemplificar melhor certos problemas, em especial do espetacular conto de Ficção Científica EM SOLIPSE, do filósofo lusitano Pedro Galvão, onde ocorre a genial imaginação de uma civilização onde o Solipsismo fosse levado à prática diária de todos os cidadãos, sendo a força motriz dos processos sociais.
Esses 3 aspectos, no entanto, não surgirão separados, pois estão todos entrelaçados, e com isso, espero realizar um projeto muito antigo, que é o de sistematizar este tema, que me é tão fascinante e caro, para uma avaliação acadêmica.

ÍNDICE

Observação e Índice---------------------------------------------------Página 02
Introdução---------------------------------------------------------------Página 03
Aquecimento Mental (Aforismas)-----------------------------------Página 04
Freud Explica por que Filósofos Modernos subestimaram o Solipsismo.-Página 06
Hermenêutica Epistemológica Solipsíquica------------------------Página 11
SolipSistemas-----------------------------------------------------------Página 14
Concluindo e Bibliografia---------------------------------------------Página 18

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INTRODUÇÃO

Desde muito antes de me tornar aluno regular do curso de Filosofia da UnB, eu já me auto declarava um Filósofo. Tal pretensão é baseada principalmente no fato de que, diferente de todos os outros alunos que conheço até agora, eu já possuo há anos uma produção literária filosófica disponível ao público na Internet, com uma considerável repercussão, além de que minhas reflexões filosóficas pessoais são tão antigas quanto minha consciência de individualidade.
Criei alguns sistemas filosóficos, um deles bastante abrangente, e entre as diversas problemáticas filosóficas com as quais me defrontei, talvez nenhuma tenha sido mais arrebatadora do que a descoberta do Solipsismo. Talvez por não ter sido introduzido ao problema por meio de uma corrente filosófica específica, me deparar com a natural constatação da possibilidade de que tudo o que parece existir a minha volta seja mera ilusão gerada por algum nível inconsciente de minha mente tenha sido um tanto mais perturbador, pois não demorei a perceber a impossibilidade de se superar tal dificuldade, coisa que Todos os sistemas filosóficos alheios sempre pareceram fazer com uma naturalidade que me intrigava.
Desde os antigos gregos até nossos contemporâneos, e em especial nos modernos, filósofo algum parece ter dispensado ao Solipsismo mais do que uma atenção necessária para demonstrar como seu sistema de pensamento parecia superá-lo. Descartes e Berkeley apelaram para Deus, Locke e Hume para o Mundo, Kant para a própria Razão, mas fato é que nenhum deles pareceu sequer ter sido abalado pelo problema, transpassando-o com tal aparente tranquilidade como se fosse mero obstáculo trivial e passageiro.
Porém o que constatei antes por mim mesmo é algo totalmente diferente. Percebi que há possibilidades de evitar o Solipsismo, mas nenhuma delas é garantida. Todas parecem ser nada mais do que mera volição, como costumo dizer, sou convicto de que todo e qualquer passo além do Solipsimo, é um ato de crença. Um voto depositado numa das limitadas e triviais possibilidades diretamente resultantes de uma certa ponderação epistemológica que descobri em reflexões simples, provavelmente nada historicamente originais.
Minha posição é que filósofo algum jamais ofereceu uma saída segura. Todos os seus argumentos por melhores que sejam não conseguem superar a esmagadora força tautológica da possibilidade Solipsista. O motivo é que provavelmente não seja possível transcendê-lo, o Solipsismo é tão irrebatível que não há esforço racional capaz de refutá-lo, mas por outro lado, é tão incômodo que ninguém a ele se conforma, e num arroubo passional e talvez intuitivo, assume-se uma tentativa de fuga sempre previsível, que em algum grau pode ser reduzida a uma das possibilidade previstas em meu sistema.
A própria Hermenêutica pode ser vista, num primeiro nível, puramente como uma “escolha epistemológica” dentro de um restrito espectro de opções de fuga do problema, adota-se uma hermenêutica que, suponha-se, tenha as melhores chances de solucionar o impasse. Num segundo nível, seria o horizonte de possibilidades a serem desenvolvidas dentro do campo aberto pela escolha inicial, que por mais que sejam sofisticados e avançados, nunca poderão porém superar a dúvida inicial e garantir o valor de verdade da escolha.
O Solipsismo é como uma maldição existencial. É tão intrínseco e inevitável que chego a pensar, e de fato cheguei a formular, a hipótese de que caso exista uma instância extrafísica superior e regente, esta teria como ao menos um dos principais objetivos de nosso mundo físico, produzir a experiência mental solipsíquica, e consequentemente o insuperável problema epistemológico da existência de outras mentes.
Como filósofo, também me vejo às voltas com o problema, e reconheço que é preciso ao menos estudá-lo por mais inútil que ele pareça em suas implicações práticas. Um dos motivos é bem simples. O Solipsismo é psicologicamente perigoso, poderia muito bem levar à loucura. Loucura entretanto, fruto da mais pura racionalidade. Mesmo que não me pareça “são” querer retirar dele qualquer implicação que resulte em alguma mudança em nossa vida diária (nossas posturas e condutas podem lhe permanecer intocadas e totalmente insensíveis), ainda que mereça ser desprezado pela maioria, e que não deva ser “levado a sério” além de seu âmbito meramente epistemológico. Curiosamente, tudo isso parece torná-lo ainda mais insensível a qualquer abordagem baseada em elementos externos.
Como meus colegas, no dia de minha apresentação viriam a insistir, é um Nó Epistemológico, e é intrigante notar como os teóricos do conhecimento, o Departamento de Filosofia da UnB incluso, parecem fazer pouco caso do problema, indo a avançados e ousados redutos da reflexão quando no entanto sequer puderam solucionar algo tão fundamental. Caberia até mesmo aqui, o questionamento da validade da Epistemologia como “saber de algo”, sendo esta um quase circular “saber sobre o saber”, enquanto ela não for capaz de superar um obstáculo tão primário, que permanecendo insoluto, me parece tirar o mérito de qualquer outra investigação em nível mais elevado.

Marcus Valerio XR
Junho de 2004

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Aquecimento Mental
(Aforismas)

Faço aqui uma atividade inédita em meus escritos, que é reunião de uma série de pensamentos parcialmente dispersos, aforismas, e aparentemente auto-suficientes. Tais reflexões foram sendo desenvolvidas e anotadas em cadernos durante as aulas
Alfa Se nenhum pensador jamais defendeu publicamente o solipsismo é por que isso não faria sentido. Se alguém é realmente solipsista, não teria motivos para "exteriorizar", com toda a contradição que isso implica, suas reflexões e posições. Quem o faz, no mínimo já está a apostar numa das rotas de fuga ao menos com uma mínima probabilidade.
Beta Minha fuga pessoal favorita é pressupor que não só a minha, mas que as outras mentes existam, antes de tudo. Portanto esse "Mentalismo" seria mais epistemicamente provável como ponto de partida do que o Materialismo, podendo resultar em muitas possibilidades, como o Holoteísmo, que é uma das possíveis implicações desta possibilidade lógica de escape.
Gama Uma vez que é certo que minha mente existe, não seria mais plausível supor a existência de outras entidades como ela, do que entidades totalmente diferentes? Os objetos materiais são mais estranhos à minha mente do que outras mentes, me parece mais natural pensar na existência das mentes do que na das "não-mentes". Sendo assim, a saída mais promissora do solipsismo me parece ser o "pluripsismo", e então possibilidades como panpsiquismo, holopsismo e etc, parecem-me epistemologicamente mais plausíveis do que um "objetivo" mundo material. Além disso, fechado em si mesmo, esses mentalismos são internamente coerentes, podendo explicar-se clara e amplamente. Por outro lado, o pressuposto materialista/fisicalista, entre outros problemas, parece ser impotente para explicar a mente. O psiquismo seria então, a alternativa mais racional.
Delta A única articulação onde parece haver chances promissoras de resistência ao solipsismo seria na Filosofia da Linguagem. Ao que tudo indica, a reflexão solipsista só parece possível após um certo nível de sofisticação linguística, e se depende da linguagem, e esta pressupõe (aparentemente) um mundo externo, teríamos um bom argumento contra o Solipsismo. Entretanto, essa articulação ainda é incapaz de superar a Barreira Fenomênica.
Epsilon "Uma aparente contra prova ao solipsismo parece ser a imbecilidade latente do mundo, pelo menos Eu não me vejo capaz de conceber nem mesmo inconscientemente coisas tão imbecis quanto algumas que vejo neste mundo!" (Poderia valer o reverso, eu não me veria capaz de conceber coisas tão geniais.)
Zeta A Fenomenologia pode parecer uma boa derivação, defensiva e moderada, alternativa ao solipsismo, sendo uma proveitosa solução para evitar o dilema Mente-Mundo, interconectando-os por meio do inegável "Fenômeno". Mas ela não vai tão longe quanto deveria, pois termina por revelar o quanto o Solipsismo é mais provável do que a existência do mundo material. Se é simples imaginar um fenômeno perceptivo "sem" objeto, ou com objetos virtuais projetados pela própria mente, é totalmente absurdo imaginar um fenômeno sem mente.
Eta Chamo "Barreira de Ilusão", ou "Abismo Fenomênico", a possibilidade de todo o "fenômeno" ser uma "ilusão onírica", uma projeção de um nível inconsciente da própria mente. Tal obstáculo faz com que qualquer "dado" do mundo, "ABSOLUTAMENTE E SEM EXCEÇÃO concebível!", possa ser "Auto-Ilusão". Quer seja sensações e evidências empíricas, experiências, raciocínios, e etc.

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Teta Quanto a possibilidade da "Auto-Ilusão", ora, me parece ser uma das coisas menos carentes de "provas" se levarmos em conta a experiência de mundo. O Ser Humano parece nascer com uma intrínseca capacidade de Auto-Ilusão. Não apenas indivíduos, grupos e sociedades, mas a civilização humana em peso depende da crença em ilusões por ela mesmo criadas. Diante disso, imaginar que todos os dados que nos chegam à mente sejam fruto da mesma mente, ainda que num outro nível, me parece extremamente compatível com a "natureza" humana. E não só a Auto-Ilusão, mas ademais, e talvez mais intensamente, a Projeção é também onipresente na experiência humana. Projetamos tudo, sentimentos humanos em animais, objetos e eventos naturais, perspectivas em grupos e pessoas, elementos psíquicos em pessoas que não os tem. Nos iludimos constantemente, vemos no externo aquilo que só está mesmo, inequivocamente, dentro de nós mesmos. Civilizações e culturas inteiras foram erguidas nos pilares da projeção de conteúdos de nosso inconsciente no suposto mundo físico. Sendo assim, como duvidar da plausibilidade da possibilidade de que todos os fenômenos que nos ocorrem sejam projeções nossas?
Iota A Memória não prova a História.
Kappa Um elemento importantíssimo, e que ainda preciso desenvolver mais profundamente, é o do conceito de Continuidade. Na verdade, a interconexão entre os instantes relativos a um ente é muitíssimo mais determinante para identificar tal ente do que pode parecer à primeira vista. Se dizemos que tal pessoa é fulano, ou que tal objeto é "aquele" objeto, estamos na verdade indicando uma "linha" cronológica que interliga entes temporalmente diferentes, mas unificados pela idéia de um contínuo existencial. O Solipsimo é severamente afetado pela noção de continuidade, pois a própria existência individual o é. O Eu só se garante instantaneamente, não podendo garantir que sua existência vá além daquele momento onde a constata, pois que poderia ter sido criado há segundos atrás com as memórias já prontas, ou que deixará de existir nos próximos segundos. Tal implicação levou alguns a utilizar o termo Solipsismo Quântico, considerando como "Quanta" o tempo mínimo necessário para uma mínima reflexão solipsista.
Lambda A razão pela qual os filósofos modernos teriam subestimado o Solipsismo poderia ser explicada por sua carência de um conceito claro de Inconsciente, Freudiano, já os filósofos contemporâneos talvez estejam confiantes na Filosofia Analítica, ou meramente satisfeitos com os rumos da Fenomenologia. No entanto, nada disso, a meu ver, é páreo para o Solipsismo.
Mu A Hermenêutica Primordial seria nada mais do que o primeiro passo além do Solipsismo, um voto de Fé numa rota de escape. Fé esta que não pode ser provada.
Nu Todo conhecimento começa com um ato de crença.
Xi Com o desenvolvimento dos sistemas de realidade virtual, em breve poderemos estar criando nossas próprias simulações, que poderão, se quisermos, representar mundos e personagens que nós mesmos inventemos. Se a qualidade dessas simulações for suficiente, bem como a aparelhagem, seremos capazes de mergulhar em nossos mundos de fantasia pelo tempo que quisermos. Se adicionarmos ainda um sistema de suporte vital que nos permita permanecer no sistema indefinidamente, não haveria limites para a dimensão de nossa experiência. Que resultados poderiam advir disso? Poderíamos esquecer que estamos num mundo ilusório? Poderíamos, como em The Matrix, nascer nesses sistemas? Poderíamos também, ao invés de criarmos um mundo próprio, criar um compartilhado? Se isso é possível, quem garante que já não o fizemos?
Omicron Quantos solipsistas já teriam existido? Eles tenderiam, naturalmente, a não comunicar sua visão de mundo. Seriam alguns loucos, solipsistas convictos?

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Freud Explica...
...por que Filósofos Modernos
(Descartes, Berkeley, Russel, Kant)
subestimaram o Solipsismo.

Há poucos problemas realmente novos na Filosofia, e o Solipsismo não é um deles, no entanto, está no rol das questões cujas abordagens até um certo período podem ser desprezadas.
É certo que os Céticos gregos antigos se depararam com o problema, sendo que o Solipsismo é nada menos que o resultado terminal de um Ceticismo radical e inegociável, ocorreu também aos medievais esbarrões no mesmo, mas ninguém, em especial estes últimos, parecem ter trazido o problema mais à tona do que DESCARTES.
Em seu Discurso do Método e em suas Meditações, Descartes promove uma viagem ao princípio fundamental da certeza, e tal como já prenunciara Agostinho, conclui pela certeza indubitável da existência de um elemento básico para toda a realidade, um substrato sensível e pensante, um Eu, ou como dizia Agostinho, uma Mente.
Usarei aqui o termo Mente como sempre faço, como um facilitador, quer seja ela um epifenômeno cerebral ou uma instância divina superior à matéria, o que importa é que podemos falar em uma Mente. Podemos também falar em um Eu, mesmo que seja ilusório, ocorre uma espécie de “Centro” essencial de nossa mente, um sujeito.
Digo então que Descartes detectou a existência de um Eu, ou de seu próprio Eu, e a existência de uma certa individualidade necessária não me parece auto questionável por qualquer mente sã que tenha entendido o argumento. Para que ninguém diga então que a Filosofia não tem certezas, esta é uma delas.
Além do Eu, estamos submetidos também a uma miríade de eventos que ocorrem a este Eu. Que é constantemente afetado por coisas que prefiro chamar de Fenômenos, antecipando já o século XIX.
Detectamos então a existência de duas coisas, do Eu, e do Fenômeno, que ao que tudo indica é gerado por um Mundo que cerca o Eu, e aqui já começam nossos problemas.
O que é este Mundo? Ele de fato existe ou é apenas uma Ilusão?
Ora, de nada adianta apelarmos aos nossos sentidos, eles são notoriamente falhos, que dizer de nossa razão, que prova apenas nossa própria existência. Um raciocínio empirista não escapa do fato de se basear nos duvidosos sentidos. O que, afinal, pode nos garantir que experienciamos algo realmente diferente de um estado de perpétuo sonho?
O mundo à nossa volta poderia ser um mero delírio onírico, uma complexa e ardilosa ilusão, produzida por um Gênio Maligno, uma Matrix, ou uma Pedra do Sonho. O próprio Descartes declara várias vezes que o fato de que somos regularmente imersos no mundo de Morfeus, nos deveria deixar ao menos relutantes em confiar de imediato na existência real de tudo que nos chega aos sentidos.
Porque nesse exato momento eu não estou sonhando? Como posso ter certeza disso?
Curiosamente, já aqui, parece cair por Terra qualquer possibilidade de superar essa dúvida por qualquer dado que nos venha por meio dos sentidos, o que inclui a experiência e o próprio método científico. Razão esta pela qual posso dizer sem hesitar que os Empiristas jamais superaram esse problema. Todo e qualquer dado que proceda dos Fenômenos, é inútil para derrubar a Barreira de Ilusão, vide aforisma eta.
Outra apelação comum, e bem mais promissora, parece ser o da racionalidade, utilizada como último recurso pelo próprio Descartes de um modo até um tanto desdenhoso. Segundo suas próprias palavras:
“E devo rejeitar agora todas as dúvidas hiperbólicas e ridículas, particularmente esta incerteza tão geral no que diz respeito ao sonho que eu não podia distinguir da vigília: pois agora encontro uma diferença muito notável no fato de que nossa memória não pode jamais ligar e juntar nossos sonhos uns com os outros e com toda a sequência de nossa vida, assim como costuma juntar as coisas que nos acontecem quando despertamos.” (Meditação Sexta, Parágrafo 42.)
Aqui Descartes já está encerrando suas meditações, apoiando esta conclusão já em sua demonstração da existência real do Mundo mediante a existência de Deus. Não obstante, essa solução não me parece superar ao menos 3 dificuldades severas:

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1 - Porque essa aparente racionalidade que permite as relações causais do eventos ocorridos na Vigília, e aponta a desconexão causal dos eventos oníricos, garantiria que esta Vígilia é de fato ocorrida num mundo “Real”? Ela poderia ser apenas um nível de sonho mais denso, da mesma forma como, creio, a maioria já deve ter experimentado os curiosos sonhos dentro de sonhos.
2 - Ao menos eu, tenho com frequência experiências oníricas onde em meu sonho, não apenas estou numa situação que posso dizer completamente diferente de meu mundo real, mas também posso invocar instantaneamente qualquer memória relativa a este mundo de fantasia. Ou seja, eu me vejo num outro planeta, numa outra vida, e quando penso em qualquer aspecto dela, este me vem instantaneamente à mente, as memórias por mais longínguas que sejam ocorrem como se sempre houvessem estado lá, posso me lembrar de minha infância neste mundo, de todos os eventos, com clareza e nitidez equivalente ao de minha Vigília. Em síntese, posso sim ligar e juntar, nesse momento, coisas umas com as outras do mesmo modo como as posso juntar em um presente qualquer da Vigília.
3 - Em complemento à anterior, Descartes garante tal argumento apenas para uma operação mental que podemos fazer em um momento de nossa vigília, que é tão válido quando o que eu poderia fazer em um momento de nosso sonho, caso contrário ele ignoraria um obstáculo invencido do problema da existência, de que a garantia do Eu é meramente Instantânea, ou seja, não podemos ter nenhuma certeza de que de fato existimos no passado. Como costumo dizer, a Memória não prova a História. Poderíamos ter sido criados num segundo atrás com todas as memórias já prontas, da mesma forma como costuma me ocorrer em meus “sonhos instantâneos”.
Vale lembrar que Descartes propõe até mesmo uma existência quântica, como se o Universo fosse projetado por Deus em quantas regulares de momento, onde entre um instante e outro nada existisse. Uma analogia interessante são programas de simulação num computador. Qualquer um que jogue um bom videogame de RPG ou similares, sabe que o que conta é o tempo de execução do programa, se deixarmos de ativá-lo por anos, quando o fizermos continuaremos imediatamente após o evento anterior. A inexistência não pode ser experimentada.
Se tal descontinuidade é possível, então nada impede a criação instantânea, ou mesmo a alteração de elementos entre uma ativação existencial e outra, o que nos condena a uma inviolável incerteza com relação a nosso passado. Portanto, ser capaz de fazer conexões entre elementos de nossa vida pregressa com desenvoltura racional não demonstra qualquer realidade de nossa existência na vigília, ao menos não além da que podemos fazer durante qualquer sonho mais lúcido, do tipo dos que conseguem nos enganar.
Ademais, se tal capacidade racional fosse tão confiável para nos garantir a existência real, porque ela parece inútil para nos fazer diferenciar o sonho da realidade? Porque continuamos sonhando coisas que nos parecem tão reais, em especial quando agradáveis, e depois acordamos com aquela decepcionante sensação de que, “era apenas um sonho”? O inverso vale para o caso do pesadelo. Tal capacidade de juntar as coisas numa sequência racional só nos parece válida enquanto estamos aqui, neste aparente mundo mais racional, ou seja, é um argumento circular, ou então também é válida quando estivermos lá, no mundo dos sonhos.
E para finalizar, quem garante que realmente estamos vivendo num nível mais intenso de realidade do que quando estamos no sonho? E se, todas as noites, ao dormirmos, na verdade despertamos para uma vida muito mais lúcida e racional, esquecendo de tudo ao despertarmos? Essa é, por sinal, uma alegação comum em certas religiões espiritistas e xamânicas.
Portanto o argumento da Racionalidade embora me pareça suficiente para estabelecer uma superioridade epistemológica temporária entre um nível de existência e outro, o do mundo vigílico sobre o mundo onírico, não é ainda assim capaz de garantir a “realidade” deste mundo vigílico.
Concluo então, que Descartes se deparou com o problema do Solipsismo, mas o menosprezou, bem como TODOS os demais filósofos modernos. Em parte creio que isto se deva ao fato de que eles não consideraram um conceito que só viria a lume com Freud, o do Inconsciente, com o qual poderia perceber o quanto a possibilidade de que todos os eventos à nossa volta sejam projeções de nossa própria mente, não seja imediatamente contraditório.

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Vejamos por exemplo, as conclusões de GEORGE BERKELEY ao se deparar com o problema em sua obra “Tratado sobre o conhecimento Humano”.
“29. Mas. Seja qual for o meu poder sobre os meus pensamentos, as idéias percebidas pelos sentidos não dependem por igual da minha vontade. Quando abro os olhos de dia não posso escolher se verei ou não, nem determinar os objetos particulares que se me apresentam à vista; como para o ouvido e para os outros sentidos as idéias neles impressas não são criaturas da minha vontade. Há, portanto, alguma outra vontade ou espírito que os produz.”
Berkeley pressupõe de imediato, que a fonte das impressões que nos vêem à percepção necessariamente estão fora de nós mesmos. Já é estranha tal conclusão tão precipitada visto que todos temos a experiência dos sonhos, que em momento algum é analisada nesta breve obra de Berkeley. Se olharmos porém do ponto de vista psicanalítico podemos facilmente por a pique esta afirmação, quando constatamos que nosso inconsciente pode agir como uma Vontade aparentemente externa, ou mesmo como um Espírito alheio. Mesmo hoje em dia, milhões de pessoas crêem na ação direta de espíritos e demônios para explicar ações pessoais insensatas, quando tais ações são mais apropriadamente explicadas pela Psicologia.
Mais interessante, é que mesmo a afirmação de que não “podemos escolher ver ou não”, caiu por terra já nos estudos de Freud sobre Histeria, onde abundam casos de pacientes que sobrepujam a própria percepção, como o da paciente puritana que, ao receber a notícia do falecimento do pai em um prostíbulo, e ao ser levada para reconhecer o corpo, ao se deparar com a cena que lhe era moralmente inaceitável, simplesmente ficou cega. Ou seja, sua mente se sugestionou de forma tão intensa que afetou a própria percepção.
Mesmo antes do surgimento das idéias freudianas, já era conhecimento trivial da humanidade os efeitos causados por certas substâncias alucinógenas, e hoje não mais precisamos supor a existência de fantasmas quando nos deparamos com a idéia de alucinações. E também a Hipnose pode induzir a uma subordinação dos sentidos à vontade consciente ou inconsciente.
Com tudo isso, não vejo como sustentar a opinião de Berkeley de que a constatação de que o mundo não está sob nosso controle, seja uma evidência imediata da existência de uma vontade ou mais precisamente, Espírito externo. Como ele reitera a seguir:
“146. Mas, embora muitas coisas nos convençam da sua produção por agentes humanos, ninguém ignora que as chamadas obras da natureza, isto é, a maior parte das nossas sensações e idéias, não são produzidas pela vontade humana nem dependentes dela. Há pois algum outro Espírito que as causa, visto não poderem subsistir por si (v. $29).(...)”
É evidente que ele irá levar seu raciocínio no sentido de demonstrar que o tal Espírito em questão é Deus. E é flagrante que ele aparentemente nem cogitaria a possibilidade de levar seu raciocínio no sentido contrário, no do materialismo latente de seus colegas Locke e Hume, por motivos evidentemente religiosos e subjetivos, pois um teor explícito em sua obra é a apologética religiosa e uma ofensiva contra qualquer forma de ateísmo.
Outros fizeram na verdade o exato contrário, radicalizando ainda mais e negando, se não nossa individualidade, mas nossa existência independente como mentes num mundo mental, ao afirmar que todos nós seríamos meras “Idéias na Mente Divina”, conceito que encontra eco em algumas outras doutrinas exóticas. De certa forma, nós seríamos facetas da Psique de Deus, isoladas umas das outras, e apesar desse caminho permitir a existência da Matéria, como no Panteísmo, a concepção de que cada individualidade aparente não passaria de um fragmento de uma única consciência universal, que dada a tal fragmentação resulta na ilusão do mundo físico, me parece muito mais interessante.
Mais uma vez, haveria lugar até mesmo para o Inconsciente. Talvez, nós fôssemos fragmentos da consciência perdidos na Mente da divindade, talvez nós mesmos fôssemos o próprio Inconsciente de Deus.

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Mas voltando a Berkeley, vemos que ele não considerou que os eventos que nos ocorrem além de nossa própria vontade, poderiam muito bem ser gerados por nós mesmos, da mesma forma como em nossos sonhos nos ocorrem coisas contra nossa vontade. Antigamente, poderíamos muito bem considerar que tais eventos nos sonhos nos fossem impostos por outros fenômenos mais exóticos, como outros espíritos, súcubos, liliths ou o que quer que fosse, hoje podemos melhor considerá-los como elementos de nosso próprio inconsciente.
Tal possibilidade parece ter escapado a outros filósofos como BERTRAND RUSSEL, que em seu ensaio “Aparência e Realidade”, declara:
“Mas estes filósofos, embora neguem a matéria enquanto oposta à mente, admitem-na, contudo, noutro sentido. Recordemos as duas questões que fizemos: 1) Existe uma mesa real? 2) Se sim, que espécie de objeto pode ser? Ora, tanto Berkeley como Leibniz admitem que existe uma mesa real, mas Berkeley diz que ela consiste em certas idéias na mente de Deus e Leibniz diz que é uma colônia de almas. Portanto, ambos respondem pela afirmativa à primeira questão e divergem da visão das pessoas comuns apenas na resposta à segunda. Na verdade, quase todos os filósofos parecem concordar com a existência de uma mesa real; quase todos concordam que, por muito que os nossos dados dos sentidos - a cor, a forma, a lisura, etc. - possam depender de nós, a sua ocorrência é, todavia, um sinal de algo que existe independentemente de nós, algo que talvez difira completamente dos nossos dados dos sentidos e, apesar de tudo, seja olhado como a causa desses dados dos sentidos sempre que estamos numa relação apropriada com a mesa real.”
Mas como vemos, à luz do conceito de Inconsciente, é fácil refutar todas essas afirmações.
Ratificando, o Solipsismo pode ser definido como a possibilidade de que todo o mundo a nossa volta seja uma mera projeção de nossa mente, em especial de uma parte de nossa mente que não é imediatamente acessível ao Eu, da mesma forma como na Psicanálise, a maior parte do Inconsciente não o é. Como eu disse em meu texto original, o mundo Solipsíquico seria uma projeção de nosso AlterEgo, diferente de uma projeção do Ego, pois evidentemente, não controlamos todos os eventos à nossa volta, somente um Deus o faria, ou um louco acharia que o faria.
Por fim Deus, essa é a solução proposta por Berkeley e Descartes para sustentar a existência do mundo à nossa volta, e não cair no Solipsismo. Descartes garantindo um mundo físico pela bondade de um Deus Perfeito, Berkeley garantindo um mundo sensitivo pela bondade de um Deus Perfeito.
Nem pretendo aqui entrar na batida refutação que qualquer estudante de Filosofia parece capaz de fazer, da idéia cartesiana de garantir o mundo por meio de Deus, lembrando apenas de perguntar: Se Descartes só aceita idéias claras e distintas, deixando por sinal bem claro e distinto o que ele entende por isso, como ele pode ter certeza de que possui a idéia de Deus, e de sua Perfeição, se esta mesmo não é clara e distinta? Ele não poderia afirmar que entende essa Perfeição Divina tão clara e distintamente quanto entende os entes matemáticos, ou a própria percepção da Res Cogita. Quem duvida da clareza do “Penso, Logo Existo” ou dos entes matemáticos mais básicos? Por outro lado, quem consegue demonstrar a clareza da idéia de Perfeição.
Por fim, como foi reiterado pelo professor Samuel no início de nossa disciplina, a idéia de Perfeição foi estéril nos saberes humanos, já a idéia de Infinito foi bastante frutífera, e sou um flagrante delator da tensão existente entre a idéia de Perfeição e a idéia de Infinito, analisada em minha monografia DEUS ME LIVRE..
Descartes também parece não apenas comprometido com uma apologética cristã, mas até mesmo temeroso de disseminar qualquer idéia que parece ir de confronto ao Cristianismo. Acho altamente plausível a idéia de que parte de sua Filosofia tinha um mero caráter defensivo.
Por fim, mesmo que concordássemos com tudo o que ele diz, não vejo uma só razão para que um Deus perfeitamente justo e bom não criasse para nós um mundo meramente ilusório, se tal mundo agisse como um mundo real. A perfeição de Deus não garante e nem exige um mundo físico independente. E ainda por cima, levando em conta a possibilidade das criações sucessivas, que a cada instante o mundo é recriado, por que não fazê-lo com estruturas menos densas que a matéria? Como meros “sonhos”?
Já Berkeley parece excessivamente preocupado em combater o ateísmo e materialismo para se permitir sequer uma experiência de construção de uma possibilidade que dispensasse Deus. Posso imaginar várias possibilidades de remover Deus de seu sistema sem prejuízo para o mesmo.
Ao deixarmos de perceber a cadeira, porque ela precisa continuar existindo? Porque é preciso um Deus para percebê-la e garantir sua existência? Nada nos garante de que quando nenhum agente percebe a Lua, ela se fato continua lá, a existir.

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Há mais de 15 anos, antes de eu ser capaz de dizer o que era Filosofia, construí uma hipótese de que o mundo era na verdade um imenso vazio, sendo progressivamente construído involuntariamente pelas consciências. Se houvesse um “local” onde ninguém jamais estivera, como uma parte de uma floresta inexplorada, ele seria um vácuo preenchido talvez apenas por uma “substância” amorfa, um caos potencial e sensível às consciências, ou mesmo por um total Não-Ser. Claro que na época eu não usava os termos desta maneira.
Assim que lá chegasse o primeiro ser consciente, este, por condicionamento, jamais esperaria encontrar um vazio, mas sim teria uma expectativa de encontrar coisas típicas da floresta, árvores, rochas, rios e similares, e então, com isso, sua mente geraria uma realidade compatível. Ou talvez suas condições mentais estivessem, num complicado jogo de disposições conscientes e inconscientes, aptas a projetar uma realidade mais exótica, talvez uma mina de ouro, ou algo fantasmagórico.
Assim que chegassem outros seres conscientes, estes tenderiam a captar à mesma realidade criada, ou se comunicar sutilmente, telepaticamente, com a mente que tivera a prioridade criadora, reforçando-a a projeção ou remodelando-a, numa cooperação inconsciente que aos poucos iria densificando a realidade.
É claro que seria preciso desenvolver bem mais a hipótese para lhe dar uma estruturação mais convincente, e na verdade até cheguei a faze-lo, mas o que interessa aqui é mostrar o quanto e fácil para um jovem pensador do final do século XX, pós Freud, imaginar coisas que pareciam mais obscuras ou demasiado improváveis a grandes mentes pré Freud, até mesmo para seus contemporâneos, como Kant.
Minha interpelação ao modo como IMMANUEL KANT se esquiva do Solipsismo é inversamente proporcional ao volume de sua obra. Podendo ser simplesmente resumida em uma só frase.
Pergunto: Se Kant afirmava que não temos nenhuma possibilidade de aceso à “Coisa em Si”, o que o faz pressupor que tal Coisa realmente existe como Objeto distinto do Sujeito?
Kant parecia tão empolgado em sua revolução copérnicana epistemológica que parece deixar escapar a possibilidade mais assombrosa. De que o Sol não apenas não girasse em torno da Terra, mas que na realidade nem sequer existisse como objeto, sendo um mero reflexo de um fogo oculto emitido pela própria Terra! Ou seja, de que os objetos não apenas não definem a percepção do sujeito, mas que estes nem sequer existem fora do sujeito, sendo meros reflexos projetados pelo próprio Eu.
Na verdade Kant chega a arriscar essa possibilidade, mas não a desenvolve. Ao invés disso concentra-se em elaborar suas complexas categorias mentais, bem como a propor os curiosos imperativos, o que me leva a afirmar que a rota de fuga kantiana do Solipsismo é simplesmente apelar para a própria Razão, ou Intuição, como o depositário de uma natureza anti solipsista. Parece ser um Juízo Analítico a Priori que o Mundo realmente exista fora de nós mesmos, ainda que encoberto pela barreira fenomênica.
Alguns pensadores hindus chamariam essa barreira de véu de Maya, e proponho uma interessante alegoria sobre ela.
Suponhamos que nossa mente seja como um centro de luz em torno do qual, muito próximos, orbitam os mais variados objetos, incluindo os dispositivos de nossa própria percepção. Estando imersa num vazio, sua luz é completamente invisível. Mas suponhamos que se erga ao seu redor uma tela de projeção, e então a Mente promoverá um autêntico teatro de sombras à sua volta.
Os objetos que ela percebe seriam meras projeções, imperfeitas, de seus próprios elementos internos. Uma espécie de Sol Platônico interno projetando sobras na Caverna fenomênica. E é claro, um tipo de Idealismo Egocêntrico.
Evidentemente teríamos que admitir uma certa realidade externa, a tela de projeção, onde tais objetos podem ser lançados, mas ela é abissalmente diferente da idéia de que haja de fato objetos reais externos à nossa mente. Pode-se recorrer a idéia de um Caos sensível, pronto a reagir à menor oscilação emanada de uma Mente.
Mas até mesmo isso pode ser descartado, e para isso, podemos apenas abusar da Navalha de Ockham.
Se pretendermos reduzir ao máximo nosso número de hipóteses, poderíamos cortar a hipótese da existência de Deus, do mundo, da matéria, das outras mentes, de nosso próprio corpo físico, e restringir todo o Universo a uma única mente, vivendo um perpétuo sonho.
Eu não concordaria se alguém interpelasse que a pressuposição de um Inconsciente seria uma hipótese adicional, mesmo porque, convenhamos, na atualidade é quase impossível conceber nossa idéia de Mente sem algo parecido.
O Universo ficaria então reduzido aos Fenômenos, e ao Eu, que na verdade os gera.
Essa seria a Teoria mais simples.

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Hermenêutica Epistemológica Solipsíquica

Outrora, desenvolvi um raciocínio próprio que, sem saber, imitou parte dos passos de Descartes. Ele pode ser acompanhado em meu site, começando no texto O DESTRUIDOR DE MUNDOS, onde reduzi toda minha certeza meramente à própria existência. Depois, na tentativa de reconstruir um mundo “epistemicamente sólido”, me vi numa miríade de possibilidades sem chance de certeza.
Por fim, cheguei na alma do processo, que desembocou no texto entitulado, O SOLO PSÍQUICO, onde esquematizei algumas possibilidades de concepção do Universo, direcionando-as para possibilidades teístas, e partindo do Solipsismo, formulei a base para quatro Hermenêuticas de fuga, o Ateísmo, o Panteísmo, o Monoteísmo/Politeísmo, e o Holoteísmo.
Nesta monografia, devo redirecionar o raciocínio.
Vejo a Hermenêutica como uma possibilidade de interpretar a realidade, e partindo do Solipsismo, haveria 4 delas, num sentido bem primário, como sendo plenamente plausíveis para fugir do delírio incômodo de uma existência solitária, todas se agarrando principalmente com o grande calo do Solipsismo, o fato dos fenômenos não estarem sobre controle direto da Mente. Ei-las:
PRESSUPOSIÇÃO DA MATÉRIA
Seria apostarmos que de fato existe uma substância fora de nós mesmos, e ou que fosse a responsável por nós mesmos, incluindo nossa mente. É a aposta Materialista em si. Nela, o Universo fica reduzido ao Monismo Físico. Toda a natureza à nossa volta existe, as outras pessoas e outras mentes existem seguramente, e são resultado de um complexo e longo processo evolutivo, regido por leis meramente naturais e sem qualquer intencionalidade.
As vantagens desta via, que seguramente implicam numa reificação da Natureza e dos modos de pensar mais fisicalistas, é a simplicidade de hipóteses. Há um mundo concreto, há as mentes, e consequentemente os fenômenos. A grande desvantagem é a dificuldade de explicar o surgimento da Mente, em especial a Intencionalidade, e o incômodo “Problema de Outras Mentes”.
É evidentemente nesse sentido que vão os Empiristas, e se ainda que nem sempre intencionalmente, acabam se vendo ao menos diante da impossibilidade de se demonstrar qualquer coisa além disso, especialmente depois do aperfeiçoamento das ciências que poderiam, mediante a evolução da complexidade, dispensar a idéia de um Criador Inteligente.
Nessa hermenêutica, o mundo escapa à vontade consciente da Mente por motivos óbvios.
PRESSUPOSIÇÃO DE DEUS
A princípio nada impede que se acrescente à pressuposição anterior a idéia de Deus, como o fez Descartes ainda que não por via Empirista. Mas a grande peculiaridade aqui é considerar que a necessidade da idéia de Deus é anterior a do Mundo. Reificamos então Deus, e as Teologias.
Coloca-se então o controle dos eventos nas mãos de uma Mente intencional e externa, ou em muitas mentes, razão pela qual digo que daqui pode-se advir tanto o Monoteísmo quanto o Politeísmo. Dessa forma, a Mente não tem poder sobre o mundo pelo simples fatos de que outras Mentes muitíssimo mais poderosas o tem.
Uma das vantagens dessa concepção é explicar mistérios da realidade que a via materialista parece estar longe de conseguir, como a origem e propósito do Universo, ou a própria existência individual, porém, há tantos modos de explicação e com tantas implicações, que é difícil não notar que a simplicidade da via anterior é muitíssimo mais adequada para as Ciências.
Mais importante é que essa via porém, pode dispensar o mundo independente. Descartes e os Deístas podem se sentir melhor com um mundo criado por Deus, mas relativamente autônomo, porém Berkeley não. E assim, garante-se que, seja o que o mundo for, ele de certa forma está subordinado à Deus, a ponto de talvez ele sequer possuir uma existência própria.
Vale lembrar que apesar de ter dispensado Deus, Descartes não deu uma boa razão de porque o mundo não poderia ser uma mera projeção virtual. E por fim, é vital acrescentar que essa é necessariamente uma concepção de Dualismo de Substância, onde mesmo que Deus projete um mundo virtual, poderia fazê-lo auto sustentável, o que lhe confere uma certa independência.

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A PRESSUPOSIÇÃO PANTEÍSTA
Numa espécie de meio termo entre as anteriores, implica em supor que há uma substância separada da Mente individual, mas que não é exatamente uma Mente como a nossa, nem mesmo uma Não-Mente como a Matéria. Esse Deus Impessoal resiste a ser comparado com uma Mente, pois seria uma Substância única, se não pensante ao menos intencional num sentido muito sutil, mas que sobretudo não admite personalização, ou seja, não admite separação em relação ao mundo.
Como se pode inferir, engloba a filosofia de Espinosa, Giordano Bruno e qualquer outro Idealista Monista. O Mundo à nossa volta existe, mas é intencional, embora não seja exatamente uma Mente distinta.
O problema fica mais claro quando percebemos que é nessa possibilidade que encontramos solo fértil para a hipótese de que na verdade nós não somos seres realmente individuais, mas sim fazemos parte desse Universo Vivo, embora numa forma fragmentada aparentemente adormecida. Aqui podemos ser “Idéias na Mente de Deus”, podemos ser facetas de uma Consciência Única.
O mundo fenomênico estaria fora de nosso controle direto exatamente devido a esse adormecimento, que não nos permite interagirmos com o Todo de forma mais direta. Essa concepção abre portas para possibilidade verdadeiramente assombrosas, como as de algumas religiões que pregam possibilidades de feitos “sobrenaturais” um vez que tal conexão com o Universo for atingida, resultando na conquista de uma certa divindade.
Na atualidade estamos repletos de concepções místicas como essas, e um último adendo necessário para distinguir essa Hermenêutica da próxima, é que aqui o mundo físico não deixa exatamente de existir, mas sendo apenas um modo de apresentação da realidade. Seria então um Monismo com propriedades Duais, onde na verdade, ao menos a princípio, a propriedade Mundo não poderia deixar de existir.
PRESSUPOSIÇÃO INTERSUBJETIVA
Indo de encontro à idéia de Intersubjetividade, ainda que com sutilezas distintas, chamei essa concepção de Holoteísmo, pois ao invés de pressupor a existência de um Mundo, de um Deus ou de um Deus/Mundo, e por meio deles garantir a existência de outras Mentes, preferi de imediato pressupor a existência dessas outras Mentes, que tal como a minha, seriam reais e similares.
O mais importante é que aqui não é necessário pressupor nada além, o mundo seria na verdade não uma projeção mental solitária, mas coletiva, sendo fundamentalmente ilusório, mas ainda assim fora do controle direto de uma única mente devido à densidade da projeção decorrida da sustentação condicionada plural.
Para selar a diferença com relação à hipótese anterior, aqui o Universo seria nada mais que “A Soma de suas Partes”, sem uma dimensão consciencial superior. É claro que é fácil unir essa possibilidade com a anterior, resultando numa Hermenêutica Holopanteísta, que admiti com minha favorita em meu texto original, mas é possível fazer algo semelhante com todas as possibilidades anteriores.
Como sempre friso, há uma peculiaridade única nessa possibilidade. Ela é teoricamente Testável! Se pudéssemos organizar todas, ou um grande número de Mentes na tentativa de alterar algum aspecto físico do mundo fenomênico, seria possível confirmar, embora não refutar, essa hipótese. Já é uma vantagem, considerando que as anteriores não são falseáveis e também não são confirmáveis. Evidentemente o teste parece praticamente inviável, mas não impossível, como seguramente o é nas hermenêuticas anteriores.
Outra diferenciação terminal com relação à Hermenêutica Panteísta, é que lá “Deus” estaria presente tanto em nós, como consciências, mas em cada “partícula” de matéria, o que implicaria na curiosa visão Holística, onde tudo é Deus. Aqui, em contraposição ao nome que adotei, somente as Mentes são “Deuses”, a Matéria é ilusória, mero fenômeno resultante da relação entre as mentes, e é claro, essa possibilidade é minha versão mais amadurecida da tenra hipótese do “mundo como um vazio sendo preenchido por mentes inconscientes”, citada no capítulo anterior.
Pode parecer difícil explicar uma série de fatores, mesmo porque as possibilidades abertas aqui tendem a extremos do insólito. Poderíamos considerar que o mundo, ilusório, certa feita foi mesmo plano, enquanto as mentes assim o pensavam, mas com o tempo foi sendo esferizado, a medida que Mentes hábeis e fortes foram “demonstrando”, na verdade convencendo, sua curvatura à mentes mais suscetíveis. O Sol de fato girava em torno da Terra, até que Mentes brilhantes, ao “criarem” novos sistemas astronômicos de observação, “decidiram” que o Universo faria mais sentido Heliocentricamente.
Perturbador também é imaginar que níveis microscópicos da matéria e galáxias distantes não estão sendo descobertas, mas sim Criadas! A cada instante pela ação inconsciente das mentes, individual ou coletivamente, ao sabor do processo de descoberta. Comprovar uma teoria à outra mente seria convencê-la a compartilhar a ilusão, para depois disseminá-la para outras, que podem aceitar ou não, dependendo de sua respeitabilidade.

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O QUE FIZERAM OS FILÓSOFOS?
A meu ver, nada mais do que seguir uma ou outra dessas vias, que me parecem as únicas possibilidade possíveis, uma vez que temos que colocar a responsabilidade pela autonomia do mundo nele próprio ou num Ser externo ao nosso se quisermos fugir do Solipsismo.
Não é atoa que seguiram tais caminhos, o Solipsismo é como um fantasma que deve ser exorcizado, e me parece que uma horrível intuição adianta à qualquer pensador a idéia de que não é possível fazê-lo, então, a melhor saída é nos afastarmos e fingirmos que ele não existe, e foi o que fizeram todos os aqui citados, e muitos outros. Mesmo Kant, parece seguir uma mistura de via Materialista e Teísta, mesmo porque se propõe a fundir Racionalismo e Empirismo, tendo como um fator diferenciador em sua filosofia sua apelação à elementos da própria razão pura, sem uma interferência de idéias proveninentes de um Deus.
Suas saídas todavia são basicamente votos de crença, ou mesmo fé, numa ou outra hermenêutica específica, pois o ceticismo extremo não permitiria a ninguém transpor o abismo fenomênico. Simplesmente adotamos uma possibilidade como favorita, e apostamos nela. Essa primeira escolha, como eu já disse no aforismo Mu, seria a Hermenêutica Fundamental, bastante restrita e limitada, e só então, uma vez estabelecidos os fundamentos do caminho a ser seguido, fundamento que, se permite uma edificação filosófica coerente, num nível epistemológico primário não tem qualquer segurança, pode finalmente se desmembrar numa Hermenêutica mais avançada.
Não obstante, o dilema fundamental continua inalterado. Como é possível refutar o Solipsismo? Não apenas fugir dele, evitá-lo, mas realmente refutá-lo!
Como antes sugeri no aforismo Delta, a Filosofia da Linguagem parece ser a mais promissora, pois uma vez que o Solipsismo só parece pensável num certo estágio de desenvolvimento da cultura e da linguagem, decorre que seria como uma invenção tardia na história humana, dependente de toda uma articulação estrutural que certamente pressupõe um mundo real. Ou seja, só parece possível cogitar a possibilidade lógica do Solipsismo após se adquirir algo proveniente de uma realidade externa do mundo.
Muitos parecem achar esse argumento convincente, no entanto, eu não preciso mais que opor a ele o aforismo Eta, pois toda essa elaboração poderia ser nada mais que um artifício que a parte Inconsciente da Mente criou para comunicar à parte Consciente algo sobre a virtualidade por ela mesma projetada. O argumento da Linguagem ainda é nada mais que um “dado do Mundo”, uma cadeia de fenômenos, tão passíveis de dúvida quanto qualquer outra sensação primitiva, apesar de sua complexidade.
Além do que, é discutível que o Solipsismo só seja mesmo concebível após uma certa etapa do desenvolvimento cultural. De início, temos o problema aparentemente intransponível de que se alguém repentinamente se convencer de que é a única Mente existente, teria a forte possibilidade de jamais comunicá-lo a quem quer que seja. Na sequência, há indícios de possibilidades de desenvolvimentos solipsíquicos na mais antiga das grandes religiões do mundo, o Hinduísmo, e ainda que isso também já pressuponha um certo nível de articulação linguística, como saber o que certos yogues e ascetas ainda mais antigos afinal faziam vivendo suas vidas completamente isolados? Não seriam alguns deles solipsistas ao menos em potencial? E por fim, como lidar com o fato inalienável dos sonhos? Todos os humanos sonham, e não raro confundem sonhos com realidade. Algun pensadores, como Émile Durkhein, chegam a hipotetizar em “As Formas Elementares da Vida Religiosa”, que a realidade dos sonhos pode ser a geratriz da idéia de Alma. Será que muitos, como dizia a tradicionalíssima fábula do Sábio Chinês, um dia não acordaram pondo em dúvida se o sonho não era o seu mundo de aparente vigília? Que consequências isso teria?
Por tudo isso, vejo que apesar de ainda promissora, a Filosofia da Linguagem está longe de romper a Barreira da Ilusão, sendo incapaz de transpor o Abismo Fenomênico num pulo tão ousado. Tudo poderia ser, como eu já disse, uma mera estratégia de nosso Inconsciente para comunicar ao consciente a possibilidade do Solipsismo, num processo lendo e parcelado. Ilusões sobre ilusões, projetando mundos, história, saberes, filosofia e argumentos complexos.
Para não voltarmos a Freud, utilizemos agora a idéia de Jung de que o Inconsciente humano sempre se comunicou com o Consciente das mais diversas e complexas formas possíveis, por meio de símbolos, mitos, arquétipos e mesmo por meio de suas supertições e ciências.
Numa leitura de Psicologia Analítica Jungiana, qualquer processo de pensamento mediante o fenômeno poderia ser meramente um sofisticado truque do Alter Ego que projeta o mundo, que seja para nos iludir ou para nos libertar.

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SOLIPSISTEMAS

Começo aqui uma outra dimensão desta monografia, que é a ilustração de certos conceitos relativos ao tema que são melhor compreendidos mediante a literatura fantástica.
Responde em parte porque o Solipsimo, mesmo sendo dispensável da reflexão para qualquer efeito prático, poderia ser absolutamente vital para uma existência individual num certo contexto, e talvez até mesmo para os rumos de uma civilização, bem como põe um problema grave para a epistemologia.
O título deste capítulo é um trocadilho que dá nome a um de meus contos de Ficção Científica (FC), denominado “Bem Vindo à Solip Systems Entertainment”, que infelizmente ainda está em desenvolvimento e deverá demorar um pouco a ser concluído e publicado na Internet. Basicamente se refere à estória de uma empresa que, ao desenvolver avançadíssimas tecnologias de Realidade Virtual onde seus clientes criam o mundo que quiserem para efeitos de entretenimento, acabam por descobrir nessas experiências uma chave para uma revolução sem paralelo em todos os tempos da história da humanidade.
Muitos outros de meus contos de FC abordam o tema do Solipsismo, ou temas similares do Pluripsismo ou mundos ilurórios em geral, como “O Mundo da Ilusão” , e a aventura em “Solo Psíquico” entitulada “Quem é Deus?” , onde um melhor conhecimento de questões filosóficas teria tornado a vida do protagonista bem mais fácil, e outros que prefiro não contar para não estragar surpresas.
Outros autores de FC lidam com temas semelhantes, como em filmes famosos como Matrix ou Cidade das Sombras, embora poucos, como o escritor Robert A. Heilein, realmente desenvolvam o tema em si.
Mas o que mais me chamou atenção até agora foi sem sombra de dúvida, o espetacular conto de um filósofo chamado Pedro Galvão, que o publicou na publicação virtual lusitana de filosofia “REVISTA INTELECTO”.
Trata-se da obra denominada “EM SOLIPSE” , também disponível em www.intelectu.com/arquivo.html, que considero de leitura obrigatória não somente a fãs do gênero e interessados em certas questões epistemológicas, mas a qualquer estudante de filosofia.
Ao invés de lidar diretamente com o drama de se estar ou não num mundo real, uma situação centrada no personagem, esse conto analisa o impacto que o Solipsismo poderia ter numa cultura se fosse expandido a um nível maciço de aceitação.
Kant lança a pergunta fundamental: O que posso conhecer? Que vem sendo o tema central da Epistemologia, bem como as formas de conhecer. Quanto às formas, a nível de possíveis hermenêuticas, creio haver bom espaço para uma reflexão livre do incômodo de dúvidas extremas, mas quanto ao que pode de fato ser conhecido, temo que o Solipsismo parece responder de modo bastante inconveniente.
A única coisa realmente passível de um conhecimento seguro é aquilo que Descartes já enunciara em sua primeira certeza, e também o fato de que existem fenômenos. Mas daí em diante, nada mais é certo. Nada mais podemos conhecer realmente. O Solipsismo reduz a Epistemologia à praticamente nada!
As conseqüências disso seriam, no máximo, uma crise existencial epistemológica que jamais transcenderia a reflexão íntima de uma pessoa sensata, pelo menos em nossa condição humana normal.
Mas porque isso se dá? Não faz grande diferença o mundo a nossa volta ser de fato real ou não? Que implicações isso teria se fosse de fato levado a circunstâncias extremas?
Ainda que o argumento da filosofia da linguagem não solucione o problema, ele aponta ao menos para algo importante. Ao que tudo indica, a maioria esmagadora dos seres humanos não apresenta qualquer disposição para por em dúvida a sua realidade perceptiva. A simples dureza do mundo físico frustra de imediato qualquer tentativa de viver mediante a suposição de sua natureza ilusória. Ainda que tudo fosse de fato um sonho, esse sonho parece nos dizer que é melhor viver de acordo com suas regras. Ou seja, quer o mundo seja real ou não, é sem dúvida melhor viver como se ele o fosse.
É por esse motivo que parece impossível a qualquer cultura humana elevar o Solipsismo além de seu restrito âmbito epistemológico, o mesmo porém, poderia não ocorrer com uma outra espécie inteligente.
É exatamente sobre essa tese que trabalha Pedro Galvão. Ele concebe um futuro, ao final do século XXII, onde a humanidade desenvolveu meios de viagens interestelares em tempo hábil e, vasculhando a galáxia, encontrou e catalogou várias formas de ecossistemas extra solares. Muitos destes possuem civilizações inteligentes, embora algumas de difícil compreensão.
É o caso do planeta que foi batizado de Solipse, e seus habitantes, de solipsanos. Uma civilização que atingiu um nível tecnológico similar ao do período medieval terrestre, e se estagnou por centenas de milênios. Observada à grande distância, sem qualquer contato, esta civilização revelou comportamentos bizarros, que desafiavam os conhecimentos dos cientistas, mas só recebeu maior atenção quando surgiu uma crise civilizacional aparentemente terminal, que parecia prestes a extinguir a espécie inteligente. Um tipo de loucura coletiva que parecia se alastrar de modo irresistível.
Diante disso, os cientistas decidiram promover uma investigação mais direta, se dirigindo ao planeta e inclusive entrando em contato com solipsanos que aparentemente estavam entre os poucos não afetados pela insanidade, mesmo assim a maioria deles não estava preparada para o contato, e em geral suicidavam de modo sutil e inevitável. Descobriram porém uma vasta biblioteca, e aprenderam a linguagem escrita e oral dos nativos, investigaram seus fundamentos culturais e fizeram descobertas no mínimo intrigantes.
Os Solipsanos possuíam uma densa produção filosófica, com especial rigor na lógica, e numa vastíssima matemática e linguística. Sua própria linguagem era extremamente rigorosa em termos sintáticos. No entanto, jamais desenvolveram uma ciência que lhes permitisse controlar a natureza do modo como nós o fizemos, por uma aparente falta de interesse sobre o mundo físico, o que explicava sua estagnação tecnológica. Entre outras peculiaridades dominantes, estava uma incontestável posição da realidade objetiva dos entes matemáticos, e uma ênfase aguda na reflexão filosófica, em especial relacionando a Ética à Lógica, sempre se pautando em estabelecer formalidades impecáveis. Também apresentavam uma predisposição intuitiva para conceber o tempo como intrinsecamente determinado pela própria mente. Notadamente, o pensamento solipsano se conduzia numa linhagem kantiana.
Isso deveria explicar muita coisa. Qualquer civilização que levasse categorias kantianas a nível prático correria sérios riscos de crise estrutural séria. Mas o problema verdadeiro só viria a ser esclarecido quanto os pesquisadores descobriram que vários elementos de profunda reflexão filosófica não se restringiam apenas à elites intelectuais, mas se infiltravam no senso comum solipsano, e isso implicava também, ao mesmo tempo que um fortíssimo realismo matemático, um extremo ceticismo com relação à realidade do mundo.
O Solipsismo, que evidentemente inspirou o batismo do planeta pelos pesquisadores, sempre atormentara os solipsanos, e dada as suas peculiaridades anatômicas, neurobiológicas e evolutivas, os solipsanos não tinham bons motivos para desprezar o valor prático desta reflexão.

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Diante do impasse epistemológico, alguns solipsanos optaram por aceitar a possibilidade solipsista, e devido a sua cultura de associação de ética à forma, esses adeptos tendiam a assumir posturas amorais, que podiam implicar mesmo pelo total desprezo pela existência alheia. Quando confrontados com seus “aparentes” semelhantes, os solipsistas tendiam a desconsidera-los totalmente como moralmente relevantes, e com isso comportavam-se de modo que em geral inviabilizava a vida civil, tudo isso para salvaguardar um precioso valor que deveria guiar toda a sua conduta.
Extremos valorizadores da racionalidade, os solipsanos se viam angustiados com a possibilidade de estarem agindo irracionalmente, e uma miríade de posturas surgiam, mas invariavelmente dependentes da opção ou não pelo solipsismo prático. Muitos até defendiam que diante do impasse epistemológico, o suicídio era a opção mais aceitável.
Apesar de várias combinações de postura, invariavelmente havia uma grande divisão entre os que pressupunham a realidade do mundo, e os que adotavam o solipsismo, o que conduziu a longa e relativamente repetitiva história dos solipsanos numa alternância destas duas posturas. O que foi determinante para isso, foi adoção do Dualismo Prático, que foi abraçado em massa pelos solipsanos, e que consistia em agirem num certo período sob o pressuposto solipsista, e no outro sob o pressuposto contrário, em geral de modo coletivo, o que gerou o estranhíssimo comportamento que chamou a atenção dos pesquisadores.
Como os próprios solipsanos já supunham, deve haver uma certa universalidade das questões filosóficas para quaisquer seres que entendamos como racionais. A tentativa de vencer o solipsismo por meio do argumento que para ser concebido o Solipsismo depende da linguagem, e dessa forma pressupõe um mundo real, também foi tentado por filósofos solipsanos.
Mas o mais interessante é o estranho resultado que isso gerou. Muitos solipsanos preferiram então deixar de aprender e transmitir a linguagem a seus descendentes, o que gerava recrudescimentos civilizacionais que invariavelmente levavam suas sociedades de volta à barbárie, e então a uma reedição de toda a história anterior.
Esse padrão só fora interrompido com o surgimento do dualismo prático, que inaugurara numa nova fase da história que durara cerca de 40 mil anos (em termos terrestres). Uma nova reviravolta só viria a surgir quando um novo argumento parecera estabelecer a vitória definitiva do solipsismo, e resultar na crise civilizacional que por pouco não exterminara a espécie.
Antes, convém tocar uma das mais brilhantes passagens do texto, onde constatamos que esse dilema existencial teve pelo menos uma grande vantagem filosófica.
Os solipsanos também acreditavam em Deus, e se viam diante de paradoxos teológicos semelhantes. Um deles porém, que jamais foi solucionado por nós, foi resolvido pelos solipsanos de modo no mínimo genial. Trata-se do problema da existência do Mal.
Ora, os solipsanos pressupunham que todo e qualquer agente racional sofreria o mesmo dilema solipsista, incluindo Deus, dessa forma, o Mal se explicava pela suposição de que Deus também adotava o dualismo prático, e nos períodos solipsistas onde se anulava Seu compromisso moral com suas próprias criaturas, ocorriam os eventos que resultariam no Mal no mundo.
Voltando ao argumento fatal, este é realmente notável. Trata-se de estabelecer uma complexa progressão de acúmulo de possibilidades que se iniciam em divisões de 50% de chance para o mundo ser real, se acumulando sobre outras possibilidades de que somente algo, como as árvores, fossem ilusórias, 25%, e depois de algumas árvores não o fossem e assim sucessivamente. Quanto se confronta as linhagens de probabilidades entre si, tende-se a chegar a certas conexões que resultam em probabilidades numericamente paradoxais. Dessa forma, por meio de uma redução ao absurdo, a maioria dos solipsanos concluiu que a pressuposição da realidade do mundo no mínimo estaria sempre sujeita a contradições invencíveis, uma vez que, por outro lado, não existia a possibilidade inversa, de que o mundo sendo irreal, algumas coisas fossem reais.
Os detalhes são demais para serem explicados aqui. O conto “Em Solipse” tem mais de 70 mil caracteres, sendo maior que toda esta monografia, e apesar do que possa ter parecido, não revelei aqui nem um décimo de toda a sua riqueza não apenas filosófica, mas também de suas brilhantes elaborações científicas.
Pode aparentar absurdo que uma civilização inteligente se deixe levar por tamanhas dificuldades, o que porém o autor frisa é a estrutura biológica e as características peculiares da biosfera solipsana que realmente explicam convicentemente porque os solipsanos não podiam desprezar as possibilidades de ilusão, uma vez que possuíam uma estrutura sensorial completamente diferente da nossa, e que de fato, entre outras coisas, capazes de criar ilusões voluntárias, e também sofrê-las de outras espécies, inclusive predadoras. A capacidade de gerar ilusões desempenha papel chave nas relações ambientais e biológicas.
Essas e muitas outras peculiaridades brilhantes fazem o texto digno de ser não só lido, mas relido e estudado, o que me leva a insistir para que o leitor o faça o quanto antes. Como venho pregando há muito tempo, Ficção Científica é um excelente meio para se ensinar Filosofia.

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O argumento probabilístico final dos solipsanos pode parecer um tanto obscuro, mas não é difícil extrair algumas idéias interessantes dele. Primeiro, que é fato mesmo em nosso mundo, que existem coisas ilusórias. Mesmo aceitando a realidade externa do mundo material, ainda estamos sujeitos a várias formas de ilusão não apenas por falhas sensoriais, alucinações ou configurações físicas específicas enganadoras, mas também, e talvez o mais importante, por auto-ilusão, tanto de nível individual como coletivo. Povos inteiros podem ser persuadidos a estarem presenciando um milagre, uma manifestação de seu deus ou uma assombração. Além disso, estamos constantemente, mediante comportamentos projetivos, lançando ao mundo externo conteúdos de nosso mundo interno.
Sendo assim, vivemos, como diria Carl Sagan, num “Mundo Assombrado pelos Demônios”, e a irrealidade convive com a realidade. O resultado é um mundo difícil de se conhecer, potencialmente enganador, e o pior, cujo potencial para o erro parece ser inerradicável.
Se vivemos num mundo real, ao que tudo indica, jamais seremos capazes de ter certeza disso, estaremos sempre sujeitos a uma perpétua dúvida, e a possibilidade do Solipsismo sempre um fantasma a nos assombrar.
Por outro lado, se adotarmos a hipótese solipsista o mundo se torna muito mais harmônico. Não haveria uma mistura incerta de realidade e ilusão, mas apenas a mais pura ilusão, ou a realidade seria coerente. O mais interessante, é que um mundo Solipsista pode ser provado como tal, basta que para isso chegássemos a um estágio onde nos fosse possível submeter o mundo à nossa vontade, mesmo que por um instante. Ou seja, se o Solipsismo for verdadeiro, é possível provar isso, e erradicar para sempre a possibilidade contrária.
Portanto, e fatalisticamente, o Solipsismo é Epistemologicamente mais promissor.
Raciocínio muito semelhante pode ser utilizado para escolher aquela que, como já declarei no aforisma Beta, se tornou minha Hermenêutica favorita, o Pluripismo, “intersubjetivismo”, ou como eu gosto mais de dizer, o Holoteísmo.
Ao invés de seguir pela via materialista e fatalmente arcar com o temível problema da gênese da intencionalidade, bem como sempre se deparar com o aparentemente insuperável “problema das outras mentes”, decidi assumir este último como verdadeiro e resultar num Mentalismo coletivo.
O Universo seria então nada mais que a projeção compartilhada de inúmeras mentes conscientes, que uma vez estando separadas por algum motivo, criam o mundo para se comunicarem. Em linha similar a de Berkeley, isso não implicaria em meramente negar a realidade do mundo, mas sim em lhe dar um outro enfoque. Ele poderia continuar a ser estudado do modo como está, ou com pouquíssimas diferenças. Os pressupostos de nosso método científico poderiam permanecer praticamente intocados.
Porém, teríamos que necessariamente adotar uma postura Instrumentalista, aliás, isso eu defendo em qualquer situação. O Solipsismo não é o único argumento capaz de por em chegue nossa predisposição realista sobre uma hermenêutica fisicalista do mundo. Não vejo um só bom motivo para considerarmos que temos um acesso certo, e epistemicamente infalível para conhecer a realidade. Essa doutrina, relíquia da Grécia antiga, poderia ter sido respeitosamente aposentada ao final do século XIX.
É muito estranho que o pressuposto fisicalista na Filosofia da Mente tenha há tanto tempo insistido num paradigma notadamente absurdo, o de tentar explicar a Mente sem querer reduzí-la ao físico, mas ao mesmo tempo pretendendo resguardar o “fechamento causal do mundo físico”. A Intencionalidade jamais poderá ser elucidada por esse caminho.
O “problema de outras mentes”... Talvez. Considero a possibilidade de, algum dia, mediante espetaculares avanços na neurobiologia, surgirem dispositivos capazes de ler e codificar as ondas cerebrais num feixe de sinais que possibilite sua leitura direta por outros cérebros. Seria um modo de sintonizarmos cérebros, e mentes, diferentes, em uma ligação aparentemente direta.
Mas até lá, continua intrigante como certas possibilidades, por mais fantásticas que sejam, parecem ser capazes de rivalizar com o tão bem sucedido conhecimento científico, no que se refere a sua plausibilidade epistemológica.
Pressupondo a existência de outras mentes, num caminho intersubjetivo e um tanto similar ao fenomenológico, embora, devo insistir, sem cair na tentação de considerar o fenômeno mais importante que o Eu, abre-se um caminho de concepção de realidade que se apoia na certeza fundamental por âncora segura. A Existência da Mente.
Na pior das hipóteses, no máximo extrapola-se o verdadeiramente certo, o Eu, numa miríade de altamente prováveis cópias do mesmo. Bem diferente de apostar na existência de uma Matéria separada, totalmente incerta, e que tem como implicação a bizarríssima consequência de tender a negar exatamente o Eu, a única coisa que estaria além de qualquer dúvida, a ponto de surgirem posturas como Behaviorismos Ontológicos.
E por fim, darei agora o passo mais ousado. Suponhamos que não apenas adotamos esse Sistema “Multi Solipsístico”, no sentido de só existirem mentes. Inclusive, no momento, pouco importa se existam vários níveis de mentes diferentes, inclusive, como gostaria Berkeley, uma Mente Divina, importa apenas um Mentalismo, ou como gosto de me referir em meus contos de FC, um Universo Mentônico.
Agora adicionemos essa interessante hipótese mais acima, de que de algum modo consigamos por meio de tal ou qual artifício romper o isolamento entre as mentes.
Pense, por um momento, na revolução que isso iria causar.

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Abriríamos à humanidade um universo de vastidão muitíssimo maior do que se conseguíssemos nos transportar para qualquer outro ponto da galáxia instantaneamente. Cada Mente, um Universo aberto à outras Mentes, para um acesso direto e irrestrito. Imagino o quanto ganharíamos em qualidade de interação entre pessoas, com criatividade e troca de informações.
Alguns filmes de FC já adiantaram isso, como “A Cela”, onde uma mecanismo permitiria uma pessoa adentrar na mente de outra, durante estágios de sonho.
Isso sem dúvida implementaria uma revolução na história. O conhecimento se compartilharia muitíssimo mais rápido, a ciência avançaria ainda mais, o sentimento de familiaridade entre as pessoas, e por fim, a ética, a estética, a lógica e linguística sofreriam acréscimos inenarráveis.
Na verdade, caso essa histórica derrubada dos muros inter mentais fosse possível ainda em nosso paradigma tradicional, veja que dilema interessante seria colocado.
Num contato direto com uma outra mente, ao que me parece, uma Mente não teria dificuldades em identificar estar partilhando de uma existência similar à sua, a existência das Mentes, coletivas, ou muito me engano, ou estaria provada, não pelo dispositivo usado em si, mas porque de alguma forma, houve um contato direto entre mentes, que sinceramente, não me parece simulável por qualquer outra estrutura por mais complexa que fosse.
Mas mesmo assim, que prova ainda teríamos da existência independente da matéria?
A mesmíssima Barreira de Ilusão do aforisma Eta se encarregaria de filtrar os fenômenos dentro da possibilidade solipsíquica, ainda que desta vez, estaria em adendo uma inédita comprovação da existência de outras mentes.
Como, me parece, a experiência de estabelecer contato com uma outra mente seria algo sem paralelo, e provavelmente não daria margem à dúvida, ocorreria o salto histórico de elevarmos a certeza do cogito cartesiano para a coletividade, e chegar à uma inevitável conclusão favorável à existência das mentes.
Com isso, abriria-se maior probabilidade para existência de Mentes de outros níveis, inclusive Deus, mas em nada favoreceria a hipótese materialista.
É por esses e outros motivos que gostaria de frisar não uma postura de reprovação do materialismo. Como Hermenêutica do mundo, ainda o vejo como muitíssimo mais apropriado. O que insisto é na invalidade do Realismo Naturalista como visão epistemológica.
A Epistemologia não pode sequer superar o problema fundamental do Solipsismo, não construiu ainda um sistema capaz de superar o Solipsistema fundamental. Portanto, enquanto assim o for, creio ter bons motivos para suspeitar dela.

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Concluindo e Bibliografia

Este escrito foi apenas um tipo de experiência. Meus projetos com relação ao Solipsismo são um tanto mais ambiciosos que isso. Talvez os desenvolva numa Dissertação ou mesmo num Mestrado.
O que quis aqui foi apenas sistematizar alguns pensamentos e ensaiar alguns desenvolvimentos, e em virtude do tempo terei que adiar uma série de pretensões.
Portanto, espero que os leitores deste breve texto ao menos entendam o porquê de eu considerar que a Epistemologia tem essa “pedra no sapato”, porque os brilhantes filósofos modernos subestimaram o problema, e porque mesmo assim, podemos levar a Filosofia adiante sem grandes traumas.
O Solipsismo pode esperar, quieto, em seu obscuro reduto egocêntrico, o tempo que for necessário. Mas sempre que atentarmos para ele, estará lá, para nos desafiar.
E nos assombrar com a possibilidade de estarmos sós.

Marcus Valerio XR
30 de Junho de 2004



BIBLIOGRAFIA

DESCARTES, RENÉ. O Discurso do Método. (1637)
------------------------------As Meditações. (1641)

BERKELEY, GEORGE. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. (1710)

HUISMAN, DENIS. Dicionário dos Filósofos. (2001)

FREUD, SIGMUND. Histeria. (1888)
--------------------------O Ego e o Id (1923)

ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL ( ENCYCLOPAEDIA BRITTANICA DO BRASIL)

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