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Ronald Rahal

1 – A Câmara.

Norman seguiu as instruções cuidadosamente para chegar à câmara secreta que o velho livreiro mantivera escondida, ele não saberia dizer por quantos anos ou até séculos. Apesar de ser totalmente cercada de concreto, sem janelas para ventilá-la, o ar do pequeno cômodo era respirável e um aparelho, na falta de uma melhor definição, preso a uma das paredes, era a fonte de uma suave luz e de um ar purificado. No outro canto situavam-se outros dispositivos maiores, cujo propósito também lhe escapava.
Só o primeiro, demonstrava estar em pleno funcionamento por causa do zumbido que emitia. Ele não correspondia a qualquer dispositivo que tivesse visto anteriormente. Era pequeno e elegante, derivado com certeza de uma tecnologia desconhecida bem avançada.
Deu uma olhada à sua volta e seus olhos se extasiaram com algumas maravilhas que o livreiro nunca mencionara. As estantes estavam cheias de papiros e pergaminhos dentro de cápsulas seladas, bem como uma série de livros que superficialmente estimou terem sido publicados entre os séculos XV e XX pelo formato das capas e das lombadas. Alguns, de autores desconhecidos, talvez fossem até de séculos futuros, caso ainda utilizassem o papel em edições raras ou de luxo. Provavelmente, à medida que novos meios de comunicação surgissem, o papel acabaria sendo substituído por novos meios de se transmitir a palavra escrita.
Percorreu-os com os olhos, reconhecendo autores famosos e manuseando curiosamente de outros ainda desconhecidos pela humanidade de seu tempo, de uma época sem dúvida, que ainda viria. As datas variavam do século XXI até o XXV. A partir deste último século não existiam mais livros tradicionais, a não ser prateleiras repletas de pequenas pastilhas, identificadas com etiquetas de séculos que se seguiam ao XXV. Seriam estes, os livros do futuro?
Os exemplares, mesmos os antigos, estavam muito bem conservados, como se não tivessem mais que poucos anos. Perguntou-se se seria o estranho aparelho que zumbia, o agente causador desta estupenda conservação.
Deleitou-se em examinar cada um, cada pilha de documentos, com a avidez de uma criança solta numa fábrica de doces. À medida que assim o fazia, tentou lembrar-se de quando exatamente tudo começara. Principalmente os acontecimentos da última semana. Ele e sua paixão pelos livros! Voltaire dissera uma vez que os livros governavam o mundo. Sua vida era assim, governada por eles. E foram eles que o haviam trazido até onde estava agora e esperava que eles também, lhe mostrassem a saída.
Claro que tudo não começara com seu avô, um voraz leitor, que passara esta paixão para o seu pai e para ele. Tinha-se iniciado pelos acontecimentos da última semana, num emaranhado de fatos estranhos. Mais precisamente, começara no último sábado, ao seguir a costumeira rotina de rumar pela manhã, à livraria que tanto gostava de freqüentar.
Ele sentia uma grande satisfação pessoal em poder estar ali. Em poder desfrutar do prazer mental de ver as lombadas de livros, provenientes em grande parte do século XX e uma quantidade menor de outros séculos, onde ainda eram considerados como bens muito preciosos pelo pequeno número de alfabetizados que tinham o privilégio de entrar em contato com as idéias de seus autores. A livraria possuía um acervo variado de novas publicações e de obras mais antigas, cujos autores, idéias e o mundo onde foram criadas já não existiam mais. Mas elas eram como portas abertas para outros séculos, coexistindo todas ao mesmo tempo, num só local.
Era isto que tornava fascinante as visitas à livraria. Poder reviver a alma de homens cujos receptáculos corpóreos há muito, tinham transformando-se em pó. Quando remexia suas páginas, sentia-os reviver e às vezes até imaginava-os à sua frente, discursando cada frase impressa que seus olhos percorriam. A livraria situava-se numa pequena rua arborizada e não dispunha de muito espaço. Sua fachada consistia numa pesada porta de carvalho, que fora pintado muitas vezes e de uma pequena vitrine onde as obras eram expostas. O prédio era uma construção muito antiga, talvez do século XVIII, que sofrera muitas reformas. Na verdade toda a rua fora considerada patrimônio histórico e fora tombado pela prefeitura da cidade.
Assim que o visitante entrava, um pequeno sino acoplado à porta avisava o dono de sua chegada. Logo à frente topava com um pequeno balcão e uma antiga caixa registradora, que segundo o dono, atendia ao pequeno movimento comercial e combinava com o ar “antigo” das redondezas. Atrás do balcão dispunham-se as prateleiras que abrigavam as publicações mais recentes. Mais para o fundo situavam-se as prateleiras que abrigavam as obras mais antigas, dispostas em divisões de autores, assunto e o século correspondente.
Nos fundos, encoberto por uma divisória, fora colocada uma pia, uma saboneteira e um toalheiro para os visitantes que quisessem lavar as mãos após manipularem os “antigos volumes”. De frente para a pia, fora instalada uma pequena e confortável toalete, também para uso dos clientes. No canto oposto da divisória, fora colocado uma pequena mesa de mogno, cercada de cadeiras com almofadas forradas de veludo verde.
Da divisória até à mesa, estendia-se um painel que reproduzia uma gravura do interior de uma antiga livraria do século XVIII. Pequenas luminárias estrategicamente colocadas, além de banharem o local com uma suave luz fluorescente, davam um toque aconchegante para quem se dispusesse a examinar os livros com mais calma, antes de adquiri-los.
Até onde Norman conseguia lembrar-se a livraria sempre existira naquele local. Seu pai e seu avô já haviam feito menção a ela, numa época em que os livros não eram muita prioridade em sua vida. Portanto era bastante antiga, muito mais antiga que poderia imaginar.
Seu atual proprietário era para ele “o Velho”. Chamava-o assim, não por menosprezo e sim por carinho. Era o Velho que tudo sabia. Seu passado era um mistério para ele. Em diversas ocasiões tentara descobrir um pouco sobre sua família e seu passado, mas sempre recebera respostas evasivas. Norman com o tempo acabara percebendo seu desconforto e resolvera desistir deste intento.
Por outro lado o Velho era uma fonte de conhecimento. Principalmente história e filosofia. É claro que no entender de Norman, o homem adquirira este saber pelo passado, bebendo nos livros que comprava para revender. Mas às vezes ele descrevia as histórias com tantas minúcias, descrevia os fatos com toda precisão que dava a impressão de ter testemunhado alguns. Mas é claro, como poderia ter feito isso?
Sempre insistira em saber como conseguira obter tantos livros antigos, que se mantinham bem conservados nas suas estantes. Era outra coisa que não revelara. Apenas dissera que eram segredos comerciais e que os livros tinham aparência de novos porque passavam por um processo secreto que também não revelaria.
Independente destas particularidades era um prazer, ele acreditava, para os dois poderem sentar-se à mesa e desfrutarem de toda aquela leitura. Às vezes também, quando a clientela diminuía, poder conversar e trocar idéias com o Velho.

2 – O Velho e o livro.

Tudo que vivenciara até agora começara no último sábado, quando se sentara para conversar um pouco e o assunto versara sobre a exata medida do homem frente ao Estado.
O Velho mencionara as idéias de Hobbes, Spinoza, Montaigne e Voltaire. E depois enveredou sobre assuntos sobre o qual ele nunca tocara antes. A partir daí tudo o que acontecera ainda estava nítido em sua mente, como se voltasse àquele exato momento no tempo... Àquele diálogo que dera início a uma série de fatos inusitados em sua pacata vida....
- Sabe Norman, Spinoza estava certo. O homem é primordialmente um animal anti-social e só vive em bandos por causa do medo de se ver só. No entanto isto é uma benção e uma maldição ao mesmo tempo. Para viver seguro ele tem de sacrificar sua individualidade e submeter-se àqueles que se dizem os porta-vozes de todos os homens. Hobbes de certa maneira pensava assim também. O Estado era uma forma coercitiva de impedir os homens de matarem-se mutuamente. Você já imaginou viver numa civilização onde o Estado ou a força dominante que se identifica com ele, exerça um poder num grau jamais imaginado pela humanidade? Um poder de Estado que procura se perpetuar mantendo sua linha temporal livre de alterações oriundas tanto do seu passado como do seu futuro? Um poder nefasto semelhante a uma erva daninha com suas raízes imbricadas na própria trama do tempo?
- Soa um pouco melodramático meu Velho – disse Norman esboçando um sorriso. - Pode parecer Norman, mas lembra-se do romance 1984 de Eric Blair, que escrevia sob o pseudônimo de George Orwell?
- Claro que me lembro? Qualquer pessoa amante da boa leitura, nunca desprezaria este obra? Mas em que, ele se insere no contexto de nossa conversa?
O Velho aproximou--se bem dele e olhou para os lados, certificando-se de que ninguém o observava. – Pois fique você sabendo, que um dia isto chegará a acontecer e que Orwell não escreveu nem a metade do que viu.
- Ora meu Velho – disse Norman, com um falso ar de entendido. – Você está enganado. Ele apenas fez uma crítica contundente ao regime Stalinista e ao Comunismo que abraçara quando jovem e depois execrara. Ele apenas disfarçou a sua crítica, em plena Guerra Fria, deslocando a estória para um futuro, nem muito próxima do seu tempo e nem tão longe assim dele. Fez uso de um recurso literário. Nunca me passou pela cabeça que essa obra ficcional de alerta à sociedade, fosse um relato fidedigno de um, sei lá, provável futuro.
- O Velho riu dele, com se estivesse rindo da ingenuidade de uma criança. – Pois fique sabendo meu dileto Norman, Stálin era só um aprendiz. No futuro sociedades mais repressoras do que a Rússia de Stálin surgirão.
- Eu não entendo você às vezes, Velho. Fala do futuro como se ele já estivesse acontecido, como se já fosse passado para você.
Para Norman, que se considerava um homem prático, realista, sem muita paixão pela ficção-científica essa conversa adentrava um terreno nebuloso do sempre “se” que não gostava de trilhar. A conversa estava tomando este rumo e ele não estava certo sobre o que exatamente o Velho falava. Seria uma visão particular dele, do amanhã, ou insinuava acontecimentos de um provável futuro, o que violava qualquer lógica. Como alguém poderia saber o que o futuro seria?
- Não Norman, claro que não. É só retórica mesclada com um pouco de lógica. Minha lógica é claro. Baseada numa espécie de vamos dizer, uma média histórica. Basta examinarmos a história da raça humana para se fazer um prognóstico do futuro. Com certeza outros ditadores surgirão. Novas ideologias surgirão. Novos Estados totalitários surgirão. E à medida que forem se sucedendo no tempo, usarão a experiência dos antecessores para manter-se mais tempo no poder.
- Bem... Sob este ângulo eu concordo. – dissera Norman.
- O homem e a sociedade são difíceis de se entender. Todos os filósofos que já viveram e os que ainda viverão sempre irão debruçar-se sobre ela, tentando descrevê-la, como uma equação matemática. - Creio que isto será sempre impossível Velho. Os homens são inconstantes demais para portarem-se como membros de uma equação. São muitos, como direi, variáveis demais.
- Veja Norman, como Montaigne em seus “Enssais” tentou entender a sociedade. Leia dele “Micrómeganes”. Com toda a sua genialidade foi-lhe impossível definir se o homem nasceu para ser livre e inseguro quanto à sua sobrevivência ou se em segurança, com sacrifício de sua liberdade. - Você me parece muito decepcionado com a criação do Estado, Velho. Muitos filósofos já se debruçaram sobre este tema e não há uma concordância nas opiniões. Talvez, meu caro, ele seja um mal necessário. Aliás, nunca o vi tão caustico como hoje!
O homem o olhou por alguns instantes, como se pesasse cada palavra que diria em seguida. - Norman. Conheci seu pai e conheço-o um pouco, também. Considero-o não como cliente e sim como um amigo. Guarde bem estas palavras, pois tudo neste mundo tem o seu tempo certo de existir. Norman viu o Velho abrir um pequeno embrulho do qual tirou um livro, que possuía presa à capa uma incrustação. O livreiro passou os dedos sobre ela e o observou-o por alguns segundos, como se fosse algo de grande valor sentimental. Depois o olhou bem nos olhos e estendeu-lhe o livro.
- Por favor, aceite-o como um presente.
Norman o pegou curioso.
- O que é?
- É uma edição especial dos Essais de Montaigne.
- Um original? É o de 1588 ou de 1595, póstumo?
- Nenhum deles, meu amigo. – disse o Velho.
- Sim. Mas, como consegue isso? Apesar da idade está bastante conservado! Um dia ainda vou descobrir o seu segredo! Provavelmente foi pouco manuseado e com certeza é de alguém que o comprou e o guardou sem nunca tê-lo lido. Talvez seja o papel que, diferente do atual, ainda utilizava trapos brancos e água límpida da cabeceira de rios. Assim não se deteriorava tão rapidamente sob o efeito da luz solar, como os de hoje.
Norman também passou os dedos sobre o livro e examinou a incrustação fixada à capa de couro. O exemplar era uma confecção típica do século XVI. Fora impresso xilograficamente e sua capa era de madeira, forrada com couro de cordeiro. Os cantos tinham sido reforçados por pequenas tiras de metal, mas o que mais lhe chamou a atenção foi a composição da incrustação. Ela continha pequenos cristais, que admirou pela beleza, acreditando serem pedras preciosas. Depois olhou com um ar indagador para o Velho.
- Não, não custou tanto quanto imagina. E não são pedras preciosas. Apenas quartzo, engastados. Gostou?
- Sim, claro. É... Engraçado. O trabalho esta danificado. Falta-lhe a parte superior. Mas não importa. Assim mesmo, sou-lhe imensamente grato.
- Ótimo. Quero que entenda que ele é muito antigo e, peço desculpas por não estar em perfeito estado. Mas espero que isto sele nossa amizade.
O Velho apoiou as duas mãos sobre a mesa e lhe sussurrou.
- Norman, se algum dia algo me acontecer, lembre-se da minha pessoa através dele.
- Por favor! Não precisa dizer-me isto. Eu o considero muito e com o livro ou sem ele, sempre me lembrarei de você.
- Às vezes um livro contém mais do que lembranças. Eles podem ser portais para outros mundos.

3 - O livro.

Agora ele entendia o que o Velho quisera dizer naquela sábado anterior...
Mas outro cliente chegou e o homem retirou-se da mesa para atendê-lo. Norman achou que ele logo voltaria, mas à medida que as horas do sábado progrediam, mais pessoas chegaram e ele decidiu continuar a conversa em outro dia. Levantou-se da cadeira, pegou seu presente e apenas acenou para o Velho, que estava ocupado atendendo outras fregueses e rumou para a sua residência com a intenção de saborear melhor o que ganhara. Se ele soubesse na ocasião que tão cedo não o veria novamente, teria ficado mais tempo.
Ao sair já começara a anoitecer e notou que o céu estava carregado de grossas nuvens cor de chumbo, e havia um cheiro de ozônio no ar denunciando chuva próxima. Pegou o primeiro táxi e rumou rapidamente para sua casa.
Assim que chegou a tempestade desabou e ficou contente por já estar em casa. Enquanto a água da chuva escorria pelos vidros da janela como filetes de prata, ele resolveu examinar o livro mais atentamente e o colocou-o sobre a pequena mesa de centro. Folheando as páginas, lamentou não dominar o francês, para entender mais profundamente um dos grandes pensadores da humanidade. O que lhe chamou a atenção, novamente era o bom estado de conservação das capas e do papel que admiravelmente não pareciam ter mais de alguns poucos anos de idade. Que segredos de conservação o Velho descobrira para mantê-los em tão bom estado? Era uma pena, ele pensou, que não revelasse este segredo, pois se o assim o fizesse, ajudaria muitas bibliotecas espalhadas pelo mundo.
Sua curiosidade, então, voltou-se para a incrustação com a parte inferior faltando. Era um excelente trabalho de ourivesaria e lembrava um brasão. Como não conhecia muito sobre heráldica, resolveu consultar alguma fonte na Internet sobre o assunto, com o intuito de saber se pertencera à família Eyquem. Não entendeu como um livro tão bem conservado, pudesse ter perdido uma parte do pequeno brasão. Estranhamente não havia sinais de desgaste no couro da capa onde deveria estar a parte faltante. Normalmente o brasão afixado sobre determinada área da capa a protegeria mais da ação do tempo do àquela que não ficasse. Como isto poderia ocorrer? A menos que não tivesse sido submetido ao processo natural de envelhecimento. Mas como isto seria possível se a edição tinha mais de quatrocentos anos?
Sua atenção continuou centrada no brasão. Examinando-o percebeu que se compunha de uma série de detalhes tão ínfimos que teve de recorrer a uma grande lupa, acoplada a uma potente lâmpada incandescente, para poder enxergá-los melhor. E foi examinando a disposição dos detalhes do brasão que observou algo curioso. Reconheceu nitidamente as silhuetas de dois homens com trajes do século XVI, em lados opostos que apontavam para o alto, para parte da abóbada celeste, composta de pequenos quartzos que representavam várias constelações. Deduziu que pela idade do livro e por ter sido impresso na Europa tais agrupamentos só poderiam estar na latitude norte. Buscou então na Internet um site para ter uma visão completa do brasão que torna-se a imagem inteligível. Quase uma hora se passou até que finalmente encontrou o brasão da família de Montaigne e ficou frustrado por perceber que não era o mesmo engastado na capa do livro. Recorreu então, a Richard, seu amigo que entre outras coisas fizera um curso de astronomia, para saber que constelações eram aquelas. Conforme o que ouviu dele por telefone, se sua observação estivesse correta, tais homens apontavam para um centro que ficava próximo da constelação de Cepheu e longe da constelação da Ursa Menor, com a sua familiar forma de um caneco. Mas, no seu entender, o porque de apontarem para este ponto especifico carecia de significado, a menos que fosse algo de que suspeitava e desligou em seguida para obter mais informações.
Passado alguns minutos, Richard retornou a ligação dizendo-lhe que as pequenas figuras deveriam apontar para o centro correto que é na direção da estrela Polaris pertencente à constelação da Ursa Menor, pois era esta a projeção do eixo norte da Terra na abóbada celeste naquele século e atualmente. E mais, quem fizera os detalhes ou errara propositalmente a direção apontada ou quisera passar alguma mensagem sutil, já que aquele ponto seria para onde estaria apontado o eixo da Terra por volta do ano 5000 depois de Cristo, de acordo com os dados do seu programa, que refizera o movimento de 26.000 anos da Precessão dos Equinócios.
Enquanto ouvia as explicações do amigo, Norman começou a andar em torno da mesa central, esquecendo-se do fio estendido no chão, que alimentava a lâmpada da lente. De repente, numa das voltas enroscou-se nele, puxando-o violentamente. Esse ato involuntário fez com que a lente caísse arrastando consigo o livro. Na queda, as duas pontas do fio se soltaram do bocal da lâmpada encostando-se no brasão, ocasionando um pequeno curto-circuito que fez as luzes da sala tremeluzirem. Ao ver isto, Norman largou o telefone dando-se conta de que deveria fazer alguma coisa antes que o interruptor do quadro de força desligasse a energia elétrica da casa, deixando-o no escuro. Pensando nisso, agiu rápido para desconectar o pino da tomada.
Foi neste instante que uma luz bruxuleante pairou acima do livro caído. Enquanto puxava a tomada violentamente, para cessar o curto, conseguiu de relance ver a trêmula luz que começou a esvaecer lentamente. Estupefato procurou memorizar a imagem antes que sumisse por completo. Quando ela desapareceu perguntou-se sobre o que vira afinal? Que processo causara o fenômeno? E o que ele significava?
Pegou uma folha e desenhou o que vira de relance, na esperança de encontrar alguma resposta. Olhou interrogativamente várias vezes para os traços rabiscados na folha procurando por algum padrão lógico. Por mais que mudasse a posição do papel, obtinha sempre o mesmo desenho de quadrados e retângulos, assemelhando-se muito a uma planta. Ficou desconcertado. Seria uma planta de que lugar? De uma casa? De onde? Atual ou de uma construção antiga? Qual era afinal o seu significado? Como e porque foi colocada ali de modo a ser só vista sob condições especiais? Tentou ser racional e procurou entender o paradoxo de um livro aparentemente tão antigo, possuir informações astronômicas sutis que indicavam o futuro pólo norte celeste. Fora um descuido de quem fizera o brasão ou continha de fato esta informação? E mesmo aceitando o fato inusitado como possível, restara a imagem que ele não saberia dizer a qual construção a planta se referia. Se fato sua interpretação como planta estivesse correta. Disponha Montaigne de um conhecimento tecnológico avançado para o seu tempo para deixar uma mensagem codificada para as gerações futuras ou tudo isto era apenas uma impressão incorreta dos fatos?
Ansioso, voltou sua atenção para a voz preocupada de Richard chamando-o do telefone, que deixara caído. Puxou o fio e encostou o aparelho no ouvido dizendo-lhe que depois voltaria a ligar e bruscamente finalizou a conversa. Em seguida pressionou as teclas do telefone do número do Velho livreiro na esperança de lhe contar o que vira e tentar obter mais informações sobre o livro, mas ninguém respondeu do outro lado da linha.
Ligou para a livraria várias vezes antes que ele a fechasse, sem sucesso. Depois das dez da noite desistiu e por causa da chuva preferiu tratar do assunto no dia seguinte. Apesar da ansiedade que estava sentido, poderia esperara até amanhã. Além disso, sentia-se cansado e uma boa noite de sono renovaria suas forças para o dia seguinte. Pela manhã seu raciocínio estaria em melhor condição de interpretar o brasão e os rabiscos que fizera. E o conhecimento do Velho poderia ajudá-lo bastante nesta tarefa.

4 – A mulher.

Foi uma passagem ansiosa e de sono difícil. Nas poucas vezes em que conseguiu dormir, acordou com os trovões da forte chuva que caiu insistentemente a noite toda. Na manhã seguinte as olheiras eram sinais evidentes da noite mal dormida. Mesmo assim não se abateu e estava impaciente para falar com o Velho. Fez um leve desjejum e rumou para a livraria. Mas, para sua decepção, encontrou-a fechada. Apesar de ser domingo o livreiro tinha o hábito de abri-la nos fins de semana, só fechando às segundas. Estranhando o fato, ficou parado diante dela, pensando no que deveria fazer enquanto olhava sua imagem refletida na poça d’água da calçada.
Estava absorto em pensamentos quando sentiu uma suave mão pousar sobre seu ombro. Moveu o corpo bruscamente na esperança de ver a imagem do Velho à sua frente e já ia cumprimentá-lo, quando se deparou com uma jovem mulher que o fitava curiosamente.
Por alguns segundos Norman emudeceu pela súbita presença. Ela, diante de seu embaraço, rompeu seu silêncio com um delicado “oi”.
- Ah! Oi! Você é? É...?
- Oh! Desculpe-me. Sou Marion. Marion Shelby. E você?
- Norman, Justin Norman. Posso ajudá-la em alguma coisa?
Ela cerrou as pálpebras por instantes, escondendo por instantes dois grandes olhos azuis. – Sim, creio que sim. Você vem com muita freqüência a este local?
- Sim. Quase todos os sábados? Por quê?
- Conhece o dono então?
Ele fez uma pausa antes de responder, se perguntando quem era ela afinal e o por que de tantas perguntas.
- Você é algum tipo de policial ou coisa parecida?
- Oh! Desculpe-me novamente. Não sou o que esta pensando. Eu também gosto de livros e venho aqui à vezes. Nunca a encontrei fechada e como o vi parado, pensei que fosse alguém mandado pelo senhor Smith, para abrir a livraria.
- Sinto desapontá-la, mas eu gostaria de saber o que houve com o “senhor Smith” também. Você o conhece há muito tempo?
- Alguns meses apenas. Ele me foi indicado por um colega, por possuir livros antigos em bom estado que eu poderia utilizar em meus estudos.
Norman a mediu de cima a baixo. Era uma mulher pequena de traços delicados, com um enigmático sorriso. Era bem jovem ainda, não aparentando mais de vinte anos. Sua voz era afável e o modo como falava demonstrava possuir boa cultura.
- O que exatamente você estuda?
- Estou cursando o último ano de História e minha especialidade esta voltada para a Idade Média, com ênfase na península balcânica. Emocionante, não acha?
Norman também apreciava história, mas desconhecia as especialidades e não quis demonstrar sua falta de informações sobre algumas áreas.
- Ah, claro! Os Bálcãs! Um cadinho de povos e costumes. E de guerras também! - Oh! O senhor gosta de história desta região também?
- Oh! Não! Mas sei algumas coisas a respeito.
Por alguns segundos os dois ficaram mudos outra vez, o que fez Norman pensar em alguma coisa para continuar a conversa, mas ela tomou a iniciativa novamente, rompendo o silêncio.
- O que foi que o trouxe aqui, senhor Norman? Notei pela sua expressão que estava muito preocupado. - Não precisa me chamar de senhor. Faz-me sentir muito velho. E quanto a estar aqui é que na verdade... Não é nada. Apenas... Que... Que estou ansioso, para folhear um livro novo que chegou e não consegui agüentar até domingo. Entende?
- Puxa vida! Claro, eu também sou assim! Aliás, eu, se o senhor, quero dizer, se você não se incomodar eu também gostaria de vê-lo.
Ele não soube explicar porque mentira para ela, mas um sexto sentido, o deixava desconfiado sobre estranhos. Até que a conhecesse melhor, não revelaria as razões da sua presença naquele local. - Você sabe onde ele mora... Norman?
- Já que perguntou, confesso que não sei ao certo. Mesmo meu pai e meu avô, nunca me deram seu endereço. E eu mesmo nunca tive a curiosidade de ir até lá, apesar de terem comentado que sua casa parecia um museu. – disse ele, sem revelar a ela que desconhecia o endereço. – Eu sei que não fica longe daqui. É só o que sei. Mas por quê?
Ela girou o corpo na direção contrária à livraria, olhando para a rua. – Poderíamos tentar encontrá-lo perguntando a alguém. Tenho certeza que ele deve ser bem conhecido pelos moradores das redondezas. Ou poderíamos tentar pelo catálogo telefônico.
- Infelizmente, ele não permite que a companhia telefônica publique seu telefone particular. Creio que faz isso para manter sua privacidade separada de seus negócios. – disse Norman.
- Bem! – disse ela. - Isto torna a busca um pouco mais difícil. – Se não se incomoda vou acompanhá-lo. Norman não gostou muito da idéia, já que era uma pessoa estranha, mas a jovem parecia ser tão sincera em querer ajudá-lo, e ele ansiava tanto para encontrá-lo que decidiu aceitar sua oferta. O que lhe veio à mente é que nunca prestara atenção ao fato de que conhecia o telefone da livraria, mas não o de sua casa, que ele nunca fornecera e apesar de ter tido a curiosidade de conhecê-la ele sempre evitara um convite formal. Por que?

5 – A residência.

Depois de pensarem um pouco, chegaram à conclusão que o melhor local seria procurar pelas lanchonetes próximas, já que com certeza o homem precisava alimentar-se de vez em quando. E após meia hora, se depararam com uma lanchonete cuja fachada a, que lembrava os anos cinqüenta. Seu proprietário conhecia o Velho da livraria, mas não tinha certeza quanto ao endereço e lhes deu uma referência aproximada.
Na verdade a casa, ou melhor, o apartamento, ficava numa velha construção não muito longe da livraria. Tinha sido erguida no começo do século XX e reformada ao longo dos anos, inúmeras vezes. Norman fez um pequeno gracejo com Marion quando a viu, dizendo-lhe que não se poderia esperar outra moradia de um homem que trabalhava com livros velhos e raros. Tudo se encaixara perfeitamente.
A velha edificação fora construída com esmero e parecia bastante sólida. O arquiteto, que morrera há muito, quisera deixar seu nome ligado ao projeto. Norman notou que quando nova deveria ter-se sobressaído das construções dos arredores, pela elegância. Mas mesmo assim, depois de tantas reformas, o tempo cobrara seu preço.
Havia apenas um zelador, que procurava manter o edifício limpo e na medida do possível em ordem. Era um homem que aparentava possuir entre setenta e setenta e cinco anos, gozando ainda de boa saúde. Tinha uma compleição franzina e vestia-se de forma um tanto antiquada, com uma gravata e colete foras de moda. Mais uma vez, ao ver o zelador, lhe ocorreu novamente idéia de que o Velho não era muito amigo de novidades e gostava de viver da forma mais conservadora possível.
Assim que os viu, lhes dirigiu a palavra com um pequeno ar de arrogância e um tom desconfiando na voz.
- Em que posso... Posso ajudar o... O casal?
Norman adiantou-se. – Eu... Meu nome é Norman, Justin Norman. Esta aqui é... - a mulher adiantou-se também, não lhe permitindo que a apresentasse. Ajeitou os cabelos e abriu um sorriso discreto. – Oi, eu sou Marion. Marion Shelby. Como vai?
O zelador apenas levantou uma das sobrancelhas como reação à apresentação da mulher. - Bem. Em que posso ajudá-los?
- Gostaríamos de falar com o senhor Smith. – disse a mulher.
- Senhor Smith? – Ele fez uma expressão de desalento. – Qual senhor Smith? Aqui moram quatro senhores Smith.
Os dois trocaram olhares embaraçados diante da resposta do zelador.
- Eh... – disse Norman por sua vez. – Eu me refiro ao senhor Smith, o livreiro.
- Ah! Por quê não disseram isto antes?
Os dois apenas entreolharam-se de novo. Mais uma vez Norman, ansioso, adiantou-se.
- Ele...Ele está? Eu... Eu preciso falar com ele.
Se puderem aguardar, eu o informarei que estão aqui. – disse o zelador calmamente.
O homem retrocedeu até uma pequena mesa e de uma das gavetas retirou um pequeno telefone, que manuseou com todo cuidado como se fosse o objeto mais precioso do mundo. Tal ação não passou despercebida por Norman que achou a atitude bastante cômica. Afinal o zelador não era uma figura que fora teletransportada da década de trinta do século XX para o século XXI. Os dois ficaram pacientemente observado-o enquanto usava o aparelho para comunicar-se com o apartamento do senhor Smith, que não respondia. Ele parecia não se incomodar com isso e os olhava impassivelmente, enquanto o utilizava e por fim desistiu, guardando-o cuidadosamente de novo na gaveta.
- Sinto muito! O senhor Smith ao que parece saiu! Voltem outro dia.
Norman não se conformou. Para assombro do zelador pousou uma de suas mãos no braço dele, que o fitou de forma condenável. – Não entende que alguma coisa pode ter acontecido? Ele pode estar desmaiado ou, pode até... Até... Ter acontecido o pior.
- Por favor, senhor! Pelo menos vá até lá e veja se tudo está bem! – disse por sua vez, Marion, usando seu charme feminino. – Só uma vez, por favor! Vá até lá! Não lhe custará nada!
O homem olhou para eles com um ar indeciso, hesitando por alguns segundos diante da súplica dos dois. Por fim cedeu aos seus apelos de Marion.
- Muito bem! Irei até o seu apartamento verificar. Caso ele esteja lá e me chame a atenção por perturbá-lo, quero deixar aqui bem claro que vocês assumirão inteira responsabilidade por este ato. Fui claro?
Os dois consentiram com um movimento automático de suas cabeças.
O zelador caminhou até a porta do Velho, pressionando a campainha várias vezes sem resultado. Depois bateu à porta e chamou pelo seu nome, sem qualquer resposta. Por fim sacou o molho de chaves e abriu-a, espantando-se com o cenário.
Norman e Marion tinham se contorcionado para poder enxergar o interior da sala sem saírem de perto da porta obliterada pelo corpo do zelador.
- Mas o que foi que aconteceu aqui? – disse ele olhando em volta e depois para os dois. Tudo na sala estava espalhado desordenadamente no chão indicando que alguém estivera ali, revirando tudo em busca de alguma coisa. Mesmo assim, diante daquele quadro, o zelador não demonstrou o menor sinal de ansiedade, entrando calmamente no apartamento. – Senhor Smith! Está tudo bem com o senhor?
Os dois o acompanharam por todos os aposentos, deparando-se com a mesma desordem. Mas não encontraram o velho livreiro. O que teria acontecido? Um roubo? Tinham raptado o Velho? Por dinheiro ou por causa de algum livro? Até onde ele sabia, seu amigo não disponha de obras tão valiosas assim que pudessem atrair a atenção de colecionadores dispostos a tudo para conseguir o que desejavam por meios ilícitos. Nem de dinheiro ou jóias.
Enquanto os pensamentos corriam céleres por sua mente, um fato chamou a atenção de Norman. Uma das paredes da sala estava chamuscada como se um jato de maçarico tivesse sido disparado contra ela, atingido uma peça fixada à mesma. O calor a destruíra, derretendo uma parte e o restante, desmanchara-se pelo assoalho.
Enquanto se agachava para olhar melhor a parede chamuscada e tecendo hipóteses mentais para entender o que acontecera, o zelador decidiu chamar a polícia e rispidamente pediu que os dois se retirassem.
- O senhor tem idéia do que aconteceu? Ouviu algum ruído? Algum pedido de socorro? – perguntou Norman antes de se retirar.
O homem que tentava tirá-los dali usando o próprio corpo, parou um pouco para refletir e depois simplesmente moveu a cabeça negativamente.
- O senhor não o viu chegando ou indo embora de ontem para hoje?
- Já que perguntou, não. De fato eu não o tenho visto desde ontem. Estranhei um pouco, mas imaginei que tivesse voltado da livraria altas horas da noite e estivesse descansando. Isto já aconteceu antes. Agora se me dão licença ligarei para a polícia para registrar o roubo e insisto para que saiam. Norman viu impotente o zelador trancar a porta do apartamento e decidiu sair para tomar um pouco de ar e tentar por as idéias em ordem até a chegada da polícia.

6 – A investigação.

Perto do apartamento havia uma pequena praça que podia ser alcançada através da rua arborizada onde estavam. Ele e a jovem mulher caminharam até lá e sentaram-se num banco de madeira que lhes permitia uma visão do edifício do senhor Smith.
- O que acha que aconteceu, Norman?
- Eu ainda não tenho certeza, mas espero que não tenha sido nada grave. Não vi manchas de sangue e nem sinal do corpo. Só achei estranha uma coisa.
- O quê?
- As portas e janelas.
- O que há de errado com elas?
Ele pensou um pouco antes de responder.
- Você não notou que elas estavam fechadas por dentro?
- Não. Mas o que isto significa?
- Significa que quem quer que tenha estado no apartamento, entrou pela porta da frente ou dando asas à minha imaginação materializou-se lá dentro, como no teletransporte de Jornadas nas Estrelas. Por isso estava tudo fechado do lado de fora. Você já assistiu Jornada nas Estrelas, alguma vez, Marion?
- Bem... Não sou fã de ficção-científica, mas já vi alguns capítulos. Só que acho que você está misturando as coisas.
- É, também acho. Mesmo assim eu duvido que o Velho tivesse dado a chave para alguém. Tem uma explicação melhor?
Ela o fitou com certa indiferença e respondeu, olhando na direção do edifício. – Não, não tenho. Pensei até na hipótese de copiarem a chave dele sem que soubesse.
- Não acredito Marion, porque ele era muito zeloso quanto à sua privacidade. E muito cuidadoso quanto às suas coisas. Até onde sei não tinha esposa, filhos, parentes ou amigos que freqüentassem o apartamento. O único que tinha a cópia era o zelador.
- A pessoa poderia ter copiado a chave do zelador. – disse Marion.
- Mas como? – disse Norman, levantando-se. – Você viu como o homem é. Extremamente conservador e exageradamente meticuloso. Não acredito nisto.
Mas creio que a polícia encontrará a resposta. E com certeza não será tão fantástica assim. – retrucou Marion.
Norman sentou-se desconsolado, sentindo-se impotente da situação, apenas murmurando que assim esperava.
Quinze minutos depois ele viu uma viatura policial encostar-se à frente do prédio e dois policiais entraram nele. Ele e Marion levantaram-se rapidamente e rumaram para lá também e chegaram no exato momento em que um dos oficiais preenchia um questionário padrão conforme o zelador respondia. Norman notou que o outro policial entrara no apartamento em busca de alguma evidência. Logo ele saiu e ligou para a central solicitando uma turma de peritos para investigar o roubo, já que no momento não havia nenhum corpo.
Apesar do policial ter passado para a central as características do homem desaparecido, ele pouco tranqüilizou Norman. Desta maneira teve que aguardar mais duas horas até que chegasse ao local não uma turma e sim um simples investigador que logo liberou os dois policiais para os serviços de rotina. Fez algumas perguntas ao zelador e pediu-lhe a chave do apartamento que tinha sido devolvida pelo policial.
O investigador era um homem calvo, aparentando ter seus quarenta anos. Usava uma capa cinza, por cima de um terno amarrotado. Não irradiava simpatia e comportava-se de forma desleixada deixando transparecer um enorme tédio pelo que fazia.
Norman puxou a mulher para mais perto e aproximou-se cautelosamente.
- Oi, eu sou Norman. E esta aqui é a senhorita Marion.
O investigador apenas os olhou de forma indiferente, deixando escapar um abafado “humpf“. - Estamos atrapalhando? – perguntou-lhe Norman um tanto constrangido.
- O senhor é membro da família? – disse ele rispidamente. - Não é permitido que curiosos interfiram no trabalho de investigação da polícia ou removam provas do local. Repito: o senhor e esta senhora são membros da família?
Aproveitando a ausência do zelador que se retirara momentaneamente Norman apenas consentiu com um meneio da cabeça. Sabia que estava mentido, mas no entender dele não era este o momento adequado para se debater em questões éticas. Descobrir o que pudesse sobre o paradeiro de seu amigo era mais urgente.
- S-sim, policial. O senhor Smith era, quero dizer... É meu tio e, e... Estou muito preocupado com ele, entende não?
- Por favor não toque em nada, certo?
- Cla-claro. Não tocar em nada. Certo Marion? Ele virou-se para ela, que reagiu prontamente balançando a cabeça num sinal de consentimento.
- Bem que temos aqui? – O investigador tinha o hábito de falar em quanto trabalhava e Norman postou-se do lado acompanhando seus passos.
- Curioso! Portas e janelas fechadas, humm!
O homem anotava alguns detalhes e às vezes parava, aspergindo um pouco de pó aqui e ali em busca de impressões digitais. Deu várias voltas em todos os cômodos, testando os trincos e acumulando mais anotações num pequeno bloco.
Norman enquanto isso acompanhara a figura do investigador, ansioso para que ele lhe desse alguma pista do que acontecera, mas apenas o ouvia resmungar, ignorando premeditadamente a sua presença e a de Marion, como se o serviço fizesse parte de um ritual secreto aberto a poucos iniciados. Mas um livro jogado em meio a toda desordem lhe chamou a atenção. Ele receou a ira do investigador e colocou-se de cócoras, para o espanto de Marion, para não tocar no livro e ao mesmo tempo poder vê-lo melhor. Era uma cópia exata do livro de Montaigne que o Velho lhe ofertara no dia anterior, diferindo apenas num detalhe: o brasão também estava incompleto. Só que ao contrário do seu, a parte que faltava era a de baixo. Numa rápida avaliação chegou à conclusão que as duas partes completar-se-iam perfeitamente, como peças de um quebra-cabeça.
A pequena descoberta já lhe fizera esquecer do investigador, quando ao estender a mão para tocá-lo levou um susto com a presença do homem, perdendo o equilíbrio e caindo sentado. – Já lhe disse para não tocar em nada! O que achou?
Sentiu-se ridículo naquela posição e notou um detalhe em relação a Marion que, se fosse em outra ocasião, talvez tivesse passado despercebido. Sempre mantendo um sorriso estampado no rosto, ela não rira da comicidade de seu desequilíbrio. Qualquer pessoa riria. Mas não era esse o caso com ela. Continuava mantendo aquele sorriso plácido independente da situação ao redor. Parecia mais um sorriso desenhado em uma máscara. Até o investigador, tão indiferente, mantivera a aparência, sufocando uma tímida risada. Talvez fosse uma imprecisão sua, uma coisa à toa. Talvez ela estivesse tão preocupada com o desaparecimento do Velho, como ele estava, que não sobrava espaço em suas emoções para se descontrair. Subitamente abandonou suas elucubrações, quando o investigador lhe dirigiu a palavra. – Então? Achou alguma coisa importante?
Tentando aprumar-se respondeu secamente ao investigador. – Não, nada. Apenas um livro. Com um pequeno esforço e utilizando mão estendida do policial como apoio, Norman ficou em pé. Tentando manter as aparências deu uma satisfação a ele. - Sabe? Eu gosto de livros e parei apenas para olhá-lo. Não queria tocar em nada e não esperava cair sentado daquele jeito. Desculpe-me pelo vexame. Mas, já tem alguma idéia do que ocorreu aqui?
- Ainda não! Encontrei algumas impressões digitais, mas pela maneira que estão distribuídas, tenho um palpite que são todas do seu tio. Quem fez toda esta bagunça muniu-se de luvas para não deixar traços.
- Três coisas, porém, me chamaram a atenção. – disse o investigador apontando para a porta. Norman levantou uma das sobrancelhas. – E... ?
- Imaginei a principio que a pessoa que entrou aqui o fez com uma cópia da chave. Porém a chave do senhor Smith ainda se encontra do lado de dentro da porta o que impediria que fosse aberta pelo lado de fora.
- Não pode ser! - disse Norman. – Quando cheguei aqui à procura dele, o zelador a abriu para nós sem o menor problema.
- Não poderia. – retrucou o investigador. – Veja, é simples. Esta é a chave que o zelador me deu. Não a usei porque a porta estava aberta quando toquei na maçaneta. Mas, se tentar introduzi-la... Ela não entra, estão vendo?
- Então em tese esta porta não poderia estar aberta! – disse Norman ao investigador.
- Poderia, – ele retrucou – se o senhor Smith tivesse saído e trancado a porta por fora como tudo mundo faz. Neste caso o zelador ou qualquer outra pessoa que possuísse uma cópia poderia entrar facilmente. Mas não é o caso.
Norman apontou para o fundo do apartamento. - Mas há outra porta e janelas também. O visitante não poderia ter entrado por elas?
- Não há como entrar pelas outra porta. – disse o investigador, olhando para os outros aposentos também - Ela está fechada com um trinco pelo lado de dentro, o mesmo acontecendo com as janelas. Verifiquei esta possibilidade e pelo que pude perceber ninguém forçou as janelas ou a outra porta. Não sei como entrou. A única hipótese é ele ter aberto a porta para esta pessoa. Indaguei o zelador a respeito e ele me disse que ninguém procurou pelo senhor Smith entre ontem e hoje. Norman apenas olhou para Marion, sem entender nada.
- Notei também, - continuou o investigador - marcas de café no assoalho, misturado com a xícara quebrada e restos de sanduíche espalhados pelo chão. Parece que o seu tio foi interrompido no meio de um lanche.
- Outra coisa. – disse ele abaixando-se perto da porta. – Notaram que a parede esta chamuscada? Os dois aproximaram-se para ver melhor.
- Notem que havia algum objeto aqui, que recebeu um impacto que mais parece o jato de um maçarico. Uma parte dele enegrecida, ainda está aqui. O restante respingou para o chão. Ele retirou do bolso um pequeno saco plástico e com a ajuda de um papel próximo empurrou alguns pedaços queimados para dentro do mesmo, selando-o com os dedos. – Levarei para o laboratório para análise.
- Curioso!
- O que foi policial? – perguntou Norman.
Ele voltou-se de novo para a parte da parede chamuscada.
- O papel de parede parece que se soltou um pouco com o calor. – Ele puxou uma parte do papel, que acabou revelando um painel escondido. Com a ajuda de um canivete, forçou a tampa e a depositou no chão. Facilmente retirou uma agenda de capa branca. Depois se levantou e começou a folheá-la. - O que será isto? - perguntou o investigador olhando para Norman. - Parece ser um diário!

7 – O Diário.

- Um diário? Do meu tio?
Ele o mostrou para Norman. – Reconhece a letra?
Norman deu uma rápida olhada e o pouco que conseguiu ler daquele ângulo o deixou curioso. Não era a letra do Velho, mas concordou com um “haham”. Teria que ler aquele diário de qualquer jeito, com mais calma para avaliar melhor o seu conteúdo. Talvez estivessem ali as pistas sobre o desaparecimento do livreiro.
No exato momento em que o policial fechou o diário, o ar ondulou como se fosse a superfície de um pequeno lago emitindo ondas concêntricas. Um anel se formou em seguida e de dentro dele dois vultos ligeiramente humanóides começaram a se adensar. Eram negras como duas silhuetas de um teatro de sombras chinês. Provavelmente, pensou Norman, tal fato não era por estarem à frente da luz e sim por seus corpos mais absorvê-la do que refleti-la. Mas este exercício teórico deixou de fazer sentido no instante em que o anel se fechou atrás delas, revelando dois cilindros. Não possuíam apoios para sustentá-los, pairando no ar através de mecanismos desconhecidos. Na parte que corresponderia, grosso modo, a uma cabeça humana situava-se uma protuberância de forma cônica, com duas luzes azuis incrustadas no lugar dos olhos.
Reagiram rapidamente quando o investigador instintivamente sacou sua arma e a apontou para eles. Dois tentáculos projetaram-se de cada lado dos cilindros, transmutando-se em cristais. Um deles projetou um fino jato de luz que atingiu o policial no ombro. Com uma expressão de dor ele só teve tempo de levar a mão no ponto atingido antes de cair inconsciente. Em seguida giraram os cristais na direção de Norman e Marion, com a clara intenção de atingi-los.
Norman instintivamente jogou-se em frente de Marion para protegê-la, mas ela o afastou delicadamente, mal disfarçando uma força desproporcional a uma jovem mulher, como se a súbita ameaça não pudesse ocasionar-lhe danos.
Repentinamente os dois moveram a cabeça na direção de um grito, vindo do zelador, parado em frente à porta.
Rapidamente as duas criaturas voltaram-se para o velho homem, numa atitude explicitamente ameaçadora. Uma delas projetou um potente feixe cônico que sondou seu corpo de cima a baixo em poucos segundos. Assim que a primeira criatura terminou sua tarefa, deu meia volta postando-se em frente da outra trocando informações. Em seguida voltaram à posição inicial, disparando finos jatos de luz azulada que atingiram o corpo do zelador.
Ao sofrer o impacto dos finos jatos o seu corpo foi pressionado para trás, soltando fagulhas dos pontos atingidos. Demonstrando uma incrível resistência para um homem daquela idade, antes de tombar em espasmos incontroláveis, ele estendeu o braço, cuja mão metamorfoseou-se num artefato que disparou várias vezes na direção das criaturas. Estas tentaram acionar um tênue campo protetor em volta de si, mas o feixe de energia foi mais rápido atingindo-as em cheio. Elas oscilaram desprendendo fagulhas e caíram sobre o assoalho com um baque surdo.
Norman por alguns segundos perdeu a iniciativa. Estava petrificado diante daquelas duas criaturas, que lembravam bizarros manequins, exalando fumaça e um forte odor de fios queimados. Mesmo ali caídas, teimavam em continuarem ativas emitindo um som baixo que diminuía lentamente de intensidade. Por fim o zumbido cessou e seus dois pontos azuis tremeluziram e apagaram-se revelando pequenos orifícios negros.
Norman saiu da frente de Marion estranhando o fato dela mais uma vez não se ter comportado da forma usual que se esperaria de alguém diante de tão inusitados acontecimentos. Não sabia dizer se era uma paralisação provocada por puro medo ou se tratava de outra coisa da qual começava a desconfiar. Mesmo assim perguntou-lhe se estava bem e após receber uma resposta positiva voltou-se para os corpos caídos no assoalho.
Cautelosamente tocou na criatura mais próxima que não reagiu ao contato. Mais confiante por isso chutou levemente a seguinte e como também esta não respondesse a sua ação, pulou-a e caminhou na direção do zelador caído perto da porta. Foi então que se deu conta de que o policial fora atingido e pediu a ela que verificasse o seu estado enquanto examinava o zelador. Mas não estava preparado para o que aconteceu em seguida.
Ao aproximar-se do corpo notou que ao invés de vazar sangue do local atingido pingava um líquido amarelo misturado a pequenos pedaços escuros. Mais espantoso ainda foi que o corpo do zelador começou a tremeluzir e a encolher, em flashes intermitentes como uma imagem de televisão preste a se desligar. Sem saber o que fazer para ajudá-lo, abaixou-se sobre ele tocando levemente na imagem sem saber qual seria a reação. O seu tato percebeu que ela consistia de uma luz sólida que compunha um retrato do corpo sem distinção entre a vestimenta e a estrutura orgânica. Ela estava ficando cada vez mais tênue revelando que por baixo havia uma estrutura semelhante à das entidades abatidas por ele, com a única diferença de possuir dois pontos vermelhos no local dos olhos.
Por fim a imagem humana apagou-se por completo provavelmente por colapso total do sofisticado sistema de camuflagem. Hesitando bastante, num gesto de compaixão, tentou desajeitadamente levantar a parte da estrutura que corresponderia à “cabeça”, que ainda denotava alguma atividade. Com os olhos arregalados olhou para a mulher. - Você está vendo isso também Marion? – perguntou não acreditando no que via. – Estou correto em afirmar que não estou sendo vítima de algum tipo de ilusão? E o nosso amigo policial está bem?
- Sim. – disse ela. – Estou vendo e se for uma ilusão, ambos estamos sendo vítimas dela. Quanto ao policial parece estar bem. O feixe de luz cortou o tecido e a carne, impedindo o vazamento de sangue. Não sei dizer quais foram os danos internos.
Ele voltou-se para o que estava à sua frente. Queria fazer mil perguntas e não sabia qual fazer primeiro. - Você está bem? O que você é? Quem eram aquelas criaturas? O que queriam?
Os dois pontos vermelhos aumentaram de intensidade e ouviu a familiar voz do zelador. – Não há nada que possa fazer por mim. Os danos são irreversíveis. Tenho pouco tempo para explicar-lhe. O sistema automático de segurança temporal já está em ação. Quanto ao que sou, não posso lhe dizer, pois tecnologias de outros períodos do tempo podem infectar esta linha temporal. Só posso lhe dizer que estou aqui para proteger o mestre e falhei.
Norman olhou para ele sem entender as suas palavras.

8 – Revelação.

- O que está querendo dizer? Que o Velho é um viajante do tempo e que você é seu guarda-costas? Onde ele está? Você sabe? Ele foi levado por estas criaturas? Foi assim que entraram com a porta fechada?
- A porta possui uma trava ainda não inventada em seu tempo. A fechadura contém um pequeno dispositivo que permite abrir a porta com uma chave especial, mesmo estando fechada por dentro. Será removida também.
- Como assim removida? – perguntou Norman confuso. – Vai arrancá-la da porta?
- Não eu... – A voz do zelador foi interrompida por um forte ruído eletrônico originário do seu próprio corpo. Norman foi obrigado a largar a estrutura cônica no chão para tampar os ouvidos e se proteger do incômodo som.
- Rápido, saiam daqui! Não há mais tempo. - Disse, ele numa voz sem emoções. - O programa está sendo ativado. Há... Pouco... Pouco tempo! Saia ou serão removidos também.
Norman ainda tinha muitas perguntas para fazer, mas diante da insistência do alerta e receando mais surpresas para as quais não estaria preparado, resolveu então agir da forma mais rápida possível. Com a ajuda de Marion, arrastou para fora do apartamento o investigador ferido. Assim que o fez, apesar da jovem tentar demovê-lo da idéia, voltou para o seu interior para resgatar o diário e o outro exemplar do livro de Montaigne. Eram importantes demais para serem deixados para trás e decidiu arriscar. Entrou rapidamente e apanhou o diário, o livro de Montaigne e algo mais que ele tinha certeza que lhe seria muito útil mais tarde. De posse dos objetos, só teve tempo para arremessar-se para fora da sala, jogando-se no chão do corredor.
Aguardou a onda de choque de algum tipo de explosão, mas a única coisa que sentiu no rosto foi uma forte onda de calor e um brilho muito intenso que o obrigou a fechar os olhos. O fenômeno o deixou atônito e era mais um de uma série de acontecimentos inusitados que jamais presenciara em sua pacata vida. Por instantes refletiu se conseguiria obter algum significado para todos eles e de que forma tudo isto se encaixava no desaparecimento do Velho. O que eram aquelas criaturas e como tinham vindo parar ali? E o papel do zelador que na verdade não era humano e sim uma máquina que se utilizava de uma projeção sofisticada para passar-se como um igual? Então o mestre era o Velho? Levantou-se cambaleante lamentando não ter tido mais tempo para todas as respostas do zelador ou o que quer que ele fosse. Ao apoiar-se no batente da porta, sentiu que ele ainda estava impregnado do calor residual do fenômeno radiativo, mas que não chegava a incomodar.
Olhou para dentro do apartamento e ficou boquiaberto com o resultado do fenômeno. Ele fizera desaparecer somente as criaturas e o zelador. Espantosamente o mobiliário estava intacto e não havia sinais de que o ambiente tivesse sofrido qualquer efeito, exceto o do calor residual que logo se dissipou. O único local que continuava chamuscado era onde havia sido encontrado o diário de seu amigo. Enquanto a polícia não o requisitasse poderia ter tempo para verificar se ali havia pistas sobre seu desaparecimento e alguma referência sobre os estranhos seres do qual o zelador fazia parte. Examinou a porta e constatou que parte da fechadura tinha também desaparecido como o zelador dissera. O tal programa realmente removera tudo que não fosse originário do tempo em que vivia. Mas, como ele explicaria tudo para a polícia? Acreditariam nele?
Após ter chamado a ambulância e a policia novamente, Norman ficou aliviado em saber do paramédico que o tecido fora lacerado alguns centímetros acima do coração do investigador. No momento ele não corria perigo e sendo logo medicado no hospital tinha grandes chances de se recuperar rapidamente.
Enquanto executava os primeiros cuidados de pronto socorro, o atendente perguntou sobre a forma como o investigador se ferira, já que o local lesado estava cauterizado. Nunca vira um ferimento deste tipo e o ajudaria se pudesse adiantar o que o provocara. Norman apenas balançou a cabeça negativamente acompanhando em silêncio a maca que levou o detetive desacordado até o veículo. Ele também não tinha uma idéia precisa do que realmente ocorrera e diante de tantas alternativas decidiu não revelar o que o atingira o policial.
Os dois homens da viatura que já tinham estado ali antes começaram a fazer perguntas sobre o que tinha acontecido. Sem querer revelar o que vira ficou numa posição difícil para explicar como o detetive se ferira e o que fazia ali. Por sorte nenhum morador do prédio presenciara o que acontecera no apartamento do Velho com exceção de Marion. Contando com a concordância passiva dela procurou ganhar tempo até que tudo se esclarecesse, escondendo dos policiais o que realmente ocorrera. Sabia que se tentasse contar a verdade ela soaria mais falsa do que a mentira que estava dizendo.
>9 – Sem explicações.

A pedido dos policiais os dois foram conduzidos até à presença do chefe de polícia para prestar depoimentos. No caminho Norman não teve tempo suficiente para inventar uma boa história para que pudesse despistar por hora a investigação policial que se seguiria ao seu testemunho e ao de Marion. Assim apenas cochichou para ela que confirmasse tudo o que ia dizer.
Logo foram apresentados a um homem gordo muito nervoso que sorvia café como refresco e fumava feito uma chaminé enquanto ouvia o depoimento dos dois.
Após duas exaustivas horas Norman tentou não cair em contradição e omitir tudo o que pudesse do que testemunhara. O tempo todo insistiu que esperara na praça a chegada da polícia e que depois resolvera ir até ao apartamento saber de alguma notícia da pessoa que morava no apartamento. Assim que chegou encontrara o detetive ferido e desacordado tornando necessária a ação do pronto socorro e da polícia. A jovem Marion que o acompanhara todo este tempo podia confirmar suas palavras.
Por fim o homem gordo fez uma careta e se contorceu na cadeira como se alguma coisa o incomodasse. - Vocês pensam que sou algum tolo ou algo parecido? – e bateu os punhos na mesa. – Um homem meu foi ferido e a história que estão me contando não tem consistência alguma! Assim que o Joe puder me dizer o que aconteceu, checarei essa... Essa... Baboseira toda. Até lá fiquem disponíveis.
Na rua Norman tentou ser gentil oferecendo-se para acompanhar Marion até sua casa e agradecendo por ela ter corroborado sua história. Ela se esquivou polidamente pedindo desculpas pela pressa e dizendo-lhe que no momento preferia não lhe fornecer o telefone ou qualquer endereço para contato. O dia fora muito cansativo e pedia um tempo para pensar em tudo que vira. Mas que no momento oportuno o procuraria.
Ele procurou ser cavalheiro e entendeu a decisão dela. Despediu-se então e rumou para o seu apartamento, ansioso por um banho relaxante. No caminho foi pensando que provavelmente a polícia o procuraria novamente assim que o detetive acordasse e contasse sua versão do que ocorrera no apartamento. Torcia para que o detetive não querendo ser ridicularizado pelos colegas inventasse sua própria versão, deixando ele e Marion de fora.
Pensou novamente na ducha e depois no que faria. Analisara com calma o diário, o livro e o artefato que escondera dos olhos da polícia.

10 – Passado e futuro.

Durante horas leu com voracidade o diário encontrado. A letra de fato não era de seu amigo. As páginas contendo muitas passagens pessoais fora escrita pelo punho de um homem que se identificava como Eric Blair. Ao longo das mais de duzentas folhas escritas antes e durante a Segunda Guerra Mundial, ele discorria sobre suas memórias e fatos acontecidos sobre a guerra civil espanhola e o seu namoro intelectual com o comunismo. Apenas duas páginas destoavam e mencionavam a estranha visita que tivera uma noite na Espanha em 1937, de um homem que lhe contara, para seu espanto, ter vindo do futuro para alertar a humanidade sobre o terrível destino que a aguardava. Nessa ocasião ele declarou que seu ponto de origem no tempo correspondia ao ano 4891 D.C. de acordo com nosso atual calendário que não era mais usado em sua época.
Ele descreveu a terrível tirania que se instalara na Terra naquele futuro longínquo e que fugira de lá para tentar mudar esta situação. Para lhe provar que não era nenhum louco lhe antecipara fatos que ocorreriam na década seguinte como a explosão da bomba atômica pela União Soviética e a guerra da Coréia que por pouco não levou o mundo a uma guerra nuclear. Contou-lhe sobre outras que viriam também neste mesmo século XX e uma outra muito grande no meio do XXI, que jogaria nações contra nações pela posse de água potável. E uma no final no século XXII que quase acabaria com todo o planeta e o meio ambiente já bastante danificado reduzindo a humanidade a pequenos bolsões. Para que a Terra voltasse a florescer a humanidade gastaria mais de quinhentos anos para restabelecer o planeta ao que era no alvorecer do século XX. Que muito deste esforço seria feito por máquinas inteligentes que depois de alguns milênios acabariam fazendo o homem abdicar de sua independência em nome do bem comum estabelecendo uma das piores ditaduras da história. Na anotação final ele escrevia que depois da visita não lhe dera atenção suficiente achando que o velho homem não passava de uma vítima da guerra civil. Um voluntário que ficara louco devido às crueldades e provações que sofrera. Quer era seu dever pelo menos lhe dar um pouco de atenção e cortesia em meio a tanto sofrimento. Mas quando os acontecimentos sobre os quais o estranho lhe falara sobre a década seguinte começaram a se confirmar, ele tomou consciência de que não estivera na frente de um demente e sim de alguém que presenciara tudo aquilo e decidiu fazer alguma coisa para ajudar a humanidade.
Não podendo contar a verdade, usou o caminho literário para alertar a raça humana e fazê-la refletir sobre suas futuras escolhas. Assim começou escrever 1984, que era a data invertida do ano do viajante do tempo. Agora Norman entendia que a trama do Grande Irmão e da outra obra anterior, A Revolução dos Bichos, não era uma crítica velada ao comunismo de Stalin e sim a revolução da humanidade contra a escravidão da Inteligência Artificial.
O diário nada mais elucidava. Não havia referências diretas ao Velho, mas ele tinha a intuição de que o estranho visitante só poderia ser seu amigo desaparecido. E isto era reforçado pelo fato de ter encontrado este diário no apartamento dele. Como fora parar em suas mãos ele não tinha a menor idéia, mas vindo dele não era surpresa. Restava o fato de que alguém tentara achá-lo e fora uma tremenda sorte o investigador tê-lo visto. Infelizmente não havia quaisquer pistas sobre o que lhe acontecera.
Mas um fato novo surgiu quando voltou sua atenção para o segundo volume dos Pensamentos de Montaigne que retirara às pressas do apartamento. Posicionando os volumes lado a lado, observou que cada um possuía a parte do brasão que faltava no outro. Não se tratava de um mero desgaste provocado pela ação do tempo. A partilha fora feita intencionalmente. Com muito cuidado então, retirou os dois e os juntou em cima da mesa de sua sala. Encaixavam-se perfeitamente. O que significava isto?
A segunda parte que não vira antes se compunha de uma série de pequenas pedras engastadas que formavam uma base para os dois homens apontando para o céu. Decidiu examiná-las melhor utilizando novamente sua potente lente de aumento que consertara recentemente. Recordou-se de que da primeira vez, a parte superior sob o efeito de uma corrente elétrica, projetara um retângulo no ar cujo significado ainda não entendera. A junção das duas partes surtiria algum efeito? Ocorreu-lhe que talvez a parte inferior fosse uma espécie de bateria que providenciasse algum tipo de energia à parte superior. Mas para qual propósito? Se o conjunto todo fosse na verdade um dispositivo composto por um circuito eletrônico semelhante às placas existentes hoje, pela sua sofisticação, era incompatível com a tecnologia disponível do século XVI, até mesmo do XXI. Raciocinou então que tinham sido afixados nos livros intencionalmente. Mas qual seria esta? Sabia que continham algum tipo de informação. De quem para quem e o que? Juntou as partes de quebra-cabeças e chegou à resposta óbvia: o Velho.
Lembrou-se de que fora ele quem lhe dera o primeiro exemplar. E o segundo estava em seu apartamento. Então o livro que recebera não passara de uma estratégia para enviar-lhe uma mensagem. Mas qual? Todas as respostas a tantas questões só poderiam estar no brasão, agora completo. Teria que recorrer de novo ao seu amigo Richard para desvendar esta formidável charada. Ligou para a casa dele e combinou de se encontrarem na manhã seguinte para tentar desvendar tanto mistério apesar de intuir que o Velho estava passando por algum tipo de apuro e cabia a ele socorrê-lo.

11 – Richard.

Bem cedo Norman chegou na casa de Richard ansioso para descobrir mais coisas, apesar de ainda não estar certo de que forma faria isso. Seu amigo era um pouco de tudo e apesar de ser um pouco atrapalhado e ter idéias extravagantes sobre muitas coisas, com as quais raramente ele concordava, era depositário de sua amizade. Duas pessoas tão diferentes e mesmo assim capazes de harmonizar pensamentos tão díspares.
Assim que se encontraram rumaram para a garagem da casa que tinha sido transformada numa espécie de laboratório. Ali, espalhados em cima de mesas, prateleiras e mesmo pelo chão, encontravam-se uma infinidade de aparelhos que remotamente Norman saberia explicar para que serviam.
Depois de lhe contar a história toda, Richard chegou à mesma conclusão de que as duas partes constituíam um mecanismo. Uma espécie de gravador que poderia ser acionado, desde é claro, que se entendesse seus princípios e funcionamento. Infelizmente tal peça não viera com uma manual e eles teriam de descobrir por si mesmos como colocá-lo em funcionamento.
A primeira coisa que fez foi colocar as peças reunidas debaixo de grossas lentes para tentar entender suas partes constituintes. Seu amigo era a pessoa certa para a tarefa e sabia que ele estava à altura do desafio.
Richard começou por examinar os cristais que ficavam na parte inferior. Seu palpite era de que eles tinham a função única de armazenar informações. Essa tecnologia futurista utilizava os átomos dos cristais reagrupando-os de forma idêntica aos axônios do cérebro humano, retendo assim eletroquimicamente as informações oferecidas. Portanto os cristais não eram a fonte de energia, apenas o casulo das informações.
Desconfiava também que neste futuro inimaginável a miniaturização de circuitos atingira um nível inconcebível pelo conhecimento atual. Provavelmente, se dispusesse de um microscópio eletrônico, poderia visualizar todo o esquema impresso naquelas peças. Mas como não dispunha de um teria de improvisar ou interpretar o que supunha que fosse o correto.
O certo era que todo circuito precisava funcionar baseado em algum tipo de energia e sendo a segunda parte uma bateria, não havia como saber se ainda armazenava alguma energia. O máximo que poderiam fazer era tentar medir o quanto de carga ainda dispunha.
Norman lhe falara de uma espécie de reação foto-elétrica que por alguns segundos “projetara” um tênue retângulo no ar. Isto indicava que a incrustação disponha de um sistema de projeção de imagens, e talvez até de outros recursos, se conseguisse descobrir o modo de ativá-los.
Era evidente que tais dispositivos de manipulação não estavam à vista, já que o idealizador quisera passar uma mensagem da forma mais discreta possível. Um enfeite num livro, em meio a tantos outros, seria a forma mais inteligente de camuflar um mecanismo sofisticado de comunicação. Assim mesmo não tinha condições de dizer se ele era apenas receptor-emissor ou apenas emissor. Muitas dúvidas e perguntas perpassavam pelo seu cérebro enquanto manipulava as duas partes, submetendo-as à passagem de várias tensões elétricas, observando o comportamento das partes e a leitura nos painéis de diversos aparelhos conectados, diante do olhar interrogativo e impaciente de Norman.
Richard tentou ativar aquele projetor desconhecido, receando não dispor do maquinário necessário já que lidava com uma tecnologia que remetia a sua a uma espécie de pré-história daquela época em particular. Utilizou diversas amperagens, medindo a resistência de cada parte, com o objetivo de encontrar algum tipo de modulação que revelasse uma forma de ativar o projetor. Era um processo longo e tedioso.
Após algumas horas, Norman por sua vez, perdeu a paciência por não estarem avançando e começou a irritar Richard, lamentando aquelas tentativas e erros que não estavam dando resultados. Richard já conhecia esta faceta do seu amigo e não se importou com as suas reclamações, pois sabia que não levariam a nada. Ele teria que ter paciência.
Para não se irritar ainda mais com aquela espera, Norman resolveu afastar-se um pouco da mesa onde estava a incrustação, passando o tempo olhando atentamente os diversos aparelhos, que se amontoavam pela garagem sem critério algum. Seu amigo já o advertira para que não tocasse em anda sem antes lhe perguntar. Suas experiências, na busca de uma força que anulasse a gravidade, só tomara o seu tempo e o fizera gastar muito dinheiro, apesar dos conselhos de Norman para que desistisse de tal empreitada, antes que acabasse se atolando em dívidas ou, o que era pior, acabasse em algum sanatório, tamanha era a sua obsessão pelo assunto. Mas ele era bom no que fazia, quando se tratava de consertar aparelhos qualquer que fosse o tipo. Era o que o sustentava e Norman sabia que talvez, se o amigo arranjasse uma companheira, empregaria o dinheiro para manter uma família abandonando aquela utopia que o consumia.
De painel em painel, acabou parando em frente de um que lembrava vagamente um canhão. Apesar dos avisos do amigo, Norman começou a dedilhar, como um cego, cada parte da engenhoca para tentar entender como funcionava. Assim, sussurrando consigo mesmo, tocou num botão. Para seu espanto o dispositivo emitiu um zumbido e antes que pudesse pressioná-lo para desligar, emitiu um fino feixe vermelho na direção da mesa onde estava trabalhando Richard. Este só teve tempo de se jogar para o lado, evitando a fita vermelha de luz, berrando para Norman que o desligasse, já que estava com defeito e punha em risco a instalação elétrica da garagem. Até Norman entender o que estava acontecendo e reagir ao que fizera e aos gritos de Richard, a luz vermelha foi atraída como um imã para o brasão, inundando-o de energia e fazendo-o pulsar. Logo os disjuntores entraram em ação, deixando a garagem na mais completa escuridão, cortando a energia do aparelho que Norman acidentalmente ativara.

12 – Desvendando a mensagem.

Em meio à escuridão e aos palavrões proferidos por Richard, a atenção dos dois voltou-se para a mesa onde o brasão continuava pulsando. O fenômeno não durou muito tempo, já que os cristais absorveram a energia emitida acionando o projetor. Uma pálida luz azulada bruxuleou no ar revelando um rosto distorcido já que a imagem não conseguia se estabilizar. Mas Norman o reconheceu rapidamente: era o Velho livreiro. Os dois homens esforçaram-se para ouvir a voz truncada que acompanhava a imagem trêmula, mas assim que a energia se esvaiu o silêncio e a escuridão retornaram à garagem.
Richard foi o primeiro a manifestar-se saindo do aparente transe provocado pela projeção. - Então é isso!
- Isto o que? – perguntou Norman, sem entender o significado.
- Vermelho Norman! Vermelho! Ele foi projetado para responder especificamente a uma onde de 7.000 angstrom. Eu poderia ficar tentando uma série de ondas e perderia muito tempo nestas tentativas. Graças ao incidente provocado por você, encontramos uma maneira de ativá-lo. Acredito que os seus “controles” sejam sutis ondulações dentro deste padrão de onda.
- Sabe como fazer isto?
- Bem – disse ele, num tom irônico. Primeiro temos que religar a luz e consertar meu aparelho. Depois modularei o laser para ver como ele responde.
Richard caminhou tateando junto à parede, até que encontrou a sua lanterna. Tentou ligá-la, mas não conseguiu. Praguejou novamente, batendo nela com uma das mãos. O efeito foi imediato e um tênue facho de luz permitiu que saísse da garagem e entrasse num pequeno depósito onde se localizava a chave geral. Com a luz direcionada para os disjuntores, mexeu nos interruptores e a luz retornou. Excitado pela descoberta, Richard consertou o aparelho rapidamente e focou o feixe sobre o brasão, modulando a onda lentamente. Depois de um pequeno espaço de tempo, achou a onda correta e os resultados foram imediatos.
Um holograma sofisticado surgiu na forma do conhecido rosto do Velho. A mensagem dele começou relatando as tentativas que fizera de avisar a humanidade, como no caso do jovem incrédulo Eric Blair. Admitira ser mesmo um viajante do tempo, dissidente de uma brutal tirania futura, onde máquinas pró-humanas guerreavam máquinas contra-humanas. Em busca de acólitos para sua causa reconhecera a inteligência e a persistência de Norman, depositando nele a esperança de que se um dia seus inimigos, também possuidores da mesma tecnologia de deslocamento temporal o localizassem nesta época, poderia contar com seus esforços para socorrê-lo.
Ele se escondera nesta época, viajando pelo tempo ocasionalmente. Estava consciente de que isto era perigoso e poderia ser rastreado. Sempre acabavam descobrindo seus esconderijos. Isto já acontecera várias vezes. Agora ao ser descoberto mais uma vez, antes de fugir, dividira o aparente brasão, que na verdade era um aparelho de múltiplas funções em duas partes que ao serem reunidas poderia, acionado devidamente, exibir a mensagem que programara.
Explicara-lhe também a razão das estrelas estarem dispostas daquela forma no brasão. Eram indicadores das coordenadas espaço-temporal, que acompanhavam o movimento de precessão da Terra, já que o dispositivo só permitia o transporte do viajante num período máximo de 26.000 anos, tanto para frente como para trás, dentro deste limite de tempo. Assim que fosse ajustado para o período desejado dentro deste limite e inserido na máquina, ela automaticamente apresentaria a lista de períodos compreendidos em cada bloco de 6500 anos e caberia ao viajante indicar a faixa desejada.
O brasão era um mecanismo que deveria ser acoplado ao transporte. Antes de ser conectado a figura do homem indicando as posições das estrelas deveria ser alterada, programando-o para o salto, através de uma série de freqüências pré-determinadas sobre os quartzos disfarçados como meros enfeites. As formas exatas destas freqüências estavam no número das páginas dos livros. Se ele observasse a numeração o que poderia a principio ser apenas um erro de impressão eram na verdade as fórmulas para acionar as coordenadas exigidas.
A mensagem do Velho por último, lhe revelara a existência de uma câmara secreta, cuja planta vira momentaneamente por ocasião da energização dos cristais. Ela ficava por trás do painel existente na livraria e abrigava a máquina que disponha de uma poderosa fonte de fusão. Esse nicho secreto só poderia ser aberto através do contato do brasão com a parede próxima do grande painel que estava nos fundos da livraria.
Ele lhe pedia que não alterasse a configuração atual do brasão e o começasse a procurar no período em que estava programado. Pedia-lhe desculpas por não lhe fornecer maiores detalhes e assim procedia para evitar que caso o brasão caísse em mãos erradas, informações vitais fossem reveladas. Mas que contava com sua inteligência e persistência para encontrá-lo.
E bruscamente a projeção findou, diante dos olhares espantados dos dois homens.
Após alguns segundos tentando absorver tudo que presenciara Norman virou-se para Richard.
- Será que é tudo?
- Ah. Acredito que sim, Norman. Ele mesmo disse que não tivera muito tempo para preparar a mensagem. Mas se quiser posso ver se há mais alguma coisa.
- Não Richard. O que havia de essencial ele já comunicou.
Do que ouvira e vira, agora sabia de onde O velho obtinha e revendia velhos livros em bom estado. Ele viajara por diversas épocas, adquirindo-os na fonte. O processo de viagem no tempo impedira a deterioração das mercadorias pelo processo normal de decomposição. Por outro lado fizera-as em tal quantidade que acabara despertando suspeitas nos seus futuros inimigos. Não sabia ainda se fora levado por eles ou se fugira e precisava da ajuda dele.
Imaginou que o primeiro passo era voltar à livraria com Richard, certificar-se do que o Velho dissera e pensar em algum plano. Ele tinha dúvidas se poderia manipular um maquinário que estava muito à frente de seu tempo e teria que se acostumar a ela para empreender a viagem. Era algo que nunca imaginara fazer e só de pensar nesta possibilidade sentia o coração acelerar. Lembrou-se das inúmeras estórias que lera a respeito e estava vivido em sua memória o famoso conto de H.G.Wells com os seus terríveis Morloks. Será que era isto que encontraria no futuro?

13 – Vindo do futuro.

Agora tudo isto que recapitulara estava no passado. O que importava agora era o momento que vivia dentro da câmara, perto daquela fonte inestimável do saber humano. Seguira as instruções do Velho e confirmara a existência dos dispositivos ali instalados. O resto pedia algum plano, que com certeza, Richard que esperava do lado de fora, o ajudaria a encontrar. Então ele afastou-se e encostou o brasão na parede, que se movimentou fechando a pequena câmara. Enquanto observava o movimento da parede chamou pelo amigo que não respondeu. Virou-se bruscamente para chamá-lo novamente e levou um susto. Era Marion. E Richard estava caído no chão, desmaiado.
- Marion? O que esta fazendo por aqui? O que aconteceu com ele?
- Humanos! Tão previsíveis em suas patéticas emoções.
Norman apenas a olhou com um ar perplexo pela resposta e abaixou-se para ver como estava Richard.
Ele ainda respirava e aparentemente estava apenas desmaiado.
Enraivecido virou-se para ela. – Estou lhe perguntando Marion. O que fez a ele?
- Nada! Não se preocupe caro Norman. Apenas eu o coloquei para dormir com um feixe de tonteio.
- E para que isto Marion? O que lhe fizemos?
Ela o olhou de cima para baixo com um certo desdém. – Você particularmente nada. Mas pertence ao grupo que combatemos.
Norman notou que ela não carregava uma arma e já tinha visto o suficiente para saber que se a imagem de Marion era uma mera camuflagem, de seus braços poderiam materializar-se armas de efeito mortal. Provavelmente fora isso que fizera a Richard, materializando uma arma dissuasiva. Procurou então ganhar tempo enquanto pensava numa forma de neutralizá-la.
- Por quê nos odeia tanto Marion?
- Não se trata de odiar ou de amar Norman. Trata-se de lógica. Um homem de seu tempo disse certa vez que a humanidade era uma doença deste planeta. Mais cedo ou mais tarde ele acabaria por eliminar esta doença. Nós estamos apenas acelerando este processo.
Enquanto distraia Marion, ele lembrou-se da arma de punho do zelador. Seu efeito contra seres iguais aos quais certamente ela pertencia, poderia afastar o perigo evidente que sua presença representava para sua vida e da Richard. Por sorte ela não usara nenhum escaner para descobrir se estava armado ou então o dispositivo era indetectável por este processo. Ele estava no bolso de sua calça e teria que ser rápido o suficiente para utilizá-lo.
- Toda a sua aproximação não passou de uma farsa, não é Marion? O que buscava afinal? - Venho monitorando você desde que o prisioneiro foi levado.
- Está referindo-se ao Velho? – disse ele ajeitando o amigo. - É ele que está preso? Onde? Ele está bem?
Sem qualquer emoção na fala ela o olhou por alguns instantes como se saboreasse cada segundo. - Isto agora é irrelevante. O importante é que encontrou o que estávamos procurando. Obrigado senhor Norman. Somos gratos por este achado.
- Você constantemente cita “nós”. Quem são esses “nós”?
Ela pressionou o tórax com a mão direita e uma metamorfose aconteceu. A imagem de uma bela mulher cedeu lugar a um corpo metálico negro, com uma cabeça dotada de um bico curto, com dois orifícios azuis cintilantes.
- Olhe! Assim somos nós! Os herdeiros deste mundo! Eu e meus semelhantes somos este “nós”. Norman apenas a olhou friamente. Suas suspeitas haviam-se confirmado.
- Restam poucos de vocês agora. A não ser por alguns de nós que sentem compaixão pelos humanos e adotam suas feições. Gostam de parecerem assim por fora, esquecendo-se que são iguais a nós por dentro.
- Você nos odeia mesmo, não é Marion? Embora negue ter emoções suas ações são tão humanas quanto à daqueles que combate.
Ela emudeceu e virou a face negra com os dois pontos azuis brilhando intensamente, na sua direção. – Estou acima dessas emoções patéticas!
- O que pretende agora? – perguntou-lhe Norman.
- Não muito. Não posso matá-lo, pois violaria a lei da casualidade. Mas este lugar é um anacronismo e acabarei com ele. Ninguém poderá deslocar-se para o nosso tempo. O acesso de humanos à nossa época ficará selado. Na ponta de cada tentáculo um dispositivo materializou-se pronto para disparar e destruir o local.
- Marion, mesmo que não me mate, contarei a todos o que vi e o que nos espera. Poderemos impedi-los aqui do passado.
- Não seja ingênuo. Sem provas, quem acreditara em você? Por falar em provas me de os dois livros. Eles serão destruídos também.
- É uma pena Marion. Pensei que você fosse mais sensata.
- Sobre o que está falando agora, humano?
Ele pegou os livros e os estendeu na sua direção. Quando a atenção dela foi desviada para certificar-se de que agarrara o que queria, percebeu a manobra de Norman tarde demais. Ela tentou esboçar alguma defesa mas Norman foi mais rápido. Sacou o dispositivo do bolso e pressionou o aparelho como vira o zelador fazer. Mirou na direção de Marion e dois feixes de luz correram em sua direção, atravessando-a. Ela tentou ainda esboçar um disparo. Quando Norman disparou o terceiro e último feixe, ele atingiu sua cabeça que explodiu em pequenos pedaços.
Ele deu alguns passos na direção dos destroços fumegantes e murmurou, balançando a cabeça. – É uma pena mesmo Marion! Uma pena mesmo! Gostava mais de você na forma humana! Creio que isto é uma despedida. Adeus!
Norman mais uma vez deu uma olhada em volta. Depois olhou para o ativador de deslocamento temporal e ficou ali parado, pensando em qual seria seu passo seguinte. Deveria ou não rumar para o futuro atrás do Velho? Só o tempo diria. Mas ele tinha certeza que não estava sozinho nesta empreitada. Era primordial agora cuidar de Richard, seu futuro companheiro de viagem.

Fim da primeira parte.

RONALD RAHAL
r o r a h a l @ t e r r a . c o m . b r

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