Do Espaço...

...a Terra continuava azul. Ainda que em companhia do gigante joviano multicolorido e seu vistoso anel cristalino, e mesmo com continentes muito diferentes, passava, a despeito de tamanha distância, a idéia de um mundo repleto de vida, em contraste com os demais astros estéreis.

O Dr. Algleison continuava deslumbrado com a visão que tinha à frente de si. No interior da nave, flutuando pela falta de gravidade, melhor dizendo ‘microgravidade’, pensava que podia ter esperado muitas coisas de sua viagem para futuro, mas jurava que jamais havia considerado uma aventura astronáutica.

A linda mulher loira ao seu lado, com os cabelos esvoaçantes, e trajando algo mais parecido com uma roupa de ginástica, parecia um anjo, e ao seu lado o Dr. Ítalo Marino trajava roupas tão típicas de seu tempo que ficou imaginando que essas pessoas só poderiam jamais ter experimentado a formidável Veste. A mulher deslizou para ele e tomou sua mão. – Meu nome é Glória. É um prazer te conhecer. – E o olhar era nitidamente sedutor, o que vindo da mulher mais bonita que ele já tivera frente a frente, lhe deixou um tanto perturbado.

Muitas vezes pensou nisso. Sabia que encontraria mulheres no futuro. Como seria um novo relacionamento? Fez a veste desnudar-lhe os braços e olhou para a tatuagem de sua esposa, e lembrou consigo. “Nunca! Eu nunca vou trair você, meu amor. Sou seu marido para sempre.” Então olhou para a tatuagem da filha. “Sempre vou ser seu papai, sempre vou amar sua mamãe.” E de repente, não sentiu mais nada ao olhar para Glória. Como se esta fosse uma velha irmã de criação. O que não o impediu de considerar porque ficara, de certa forma, tão à vontade com Dir-Zá, pois poderia ter uma profunda amizade por uma criatura feminina sem jamais ter um envolvimento romântico, tranquilizando sua consciência.

Então Ítalo se aproximou pelo outro lado, e o convidou a se dirigirem a outro compartimento, cuja visão do espaço era reduzida a meras janelas, ainda que grandes. Uma vez lá dentro, sentiu então a nave começar a acelerar, por sorte fazendo com que fossem empurrados para o próprio chão.

- Simulação de gravidade por aceleração. – Disse Ítalo. – É melhor assim, acredite, ou daqui a pouco você vai ficar nauseado. – Riu, tentando criar um clima mais descontraído, mas Algleison não estava muito à vontade.

- Me desculpe mas... Ainda estou querendo saber o que aconteceu.

- Claro! Certamente. Vamos direto ao assunto. Bem. Não tivemos escolha. Estávamos tentando chegar a você há meses, nunca conseguíamos. Tivemos que tomar uma medida drástica. Mas acredite. Não faríamos isso se não fosse muito importante. E as, como você disse, tetrahumanas que o capturaram estão em perfeito estado. “Tetrahumanas”! Por que ninguém pensou nesse nome antes?

- E vocês? São os Pentahumanos?

- Na verdade Dr. Algleison, a Quinta Formação é um... Movimento social. Um grupo com novas idéias. Mas pretendemos implementar sim a próxima Formação da Humanidade. Isso precisa ser feito. E por isso precisamos de sua ajuda.

- Eu? Como posso ajudar?

- Primeiro deixe-me contar o quanto nós já o ajudamos. Fomos nós que descobrimos o local onde você estava congelado, há 5 mil anos!!! Acredite, ninguém ficou congelado tanto tempo! Eu mesmo fui descongelado já há uns 300 anos... Nossa! Nem parece que passou tudo isso. Vá se acostumando com essas idades assombrosas.

- Há quanto tempo me procuravam?

- Mais do que eu me lembro. Na verdade há séculos tentamos trazer de volta toda a humanidade que ainda esteja congelada. Quanto mais, melhor para conseguirmos implementar a Quinta Formação. Mas... Voltando, por mais que procurássemos, sempre havia dificuldades, principalmente devido às... Tetrahumanas, que não nos deixam sequer nos aproximar do planeta.

- Por quê? O SISTEMA de certo os protegeria se fosse preciso!

- Há... O SISTEMA! Esse é o verdadeiro problema. Elas são só as executoras. O SISTEMA é o mandante.

- Mandante de quê?

- O SISTEMA foi criado para defender um modo de vida. Um modelo específico de civilização! E acredite, cedo ou tarde você perceberá que é o modelo mais engenhoso e sutil de manipulação. Não merecemos ser escravos de uma engenharia social que já dura mil anos e não tem compromisso algum com a natureza humana. O SISTEMA sabe que temos um plano e que podemos pô-lo em prática, e um dos modos de nos sabotar é não nos deixar chegar ao planeta.

- Mas... Pelo que já entendi, não há uma restrição contra a simples presença de vocês.

- Realmente não! Mas aí é que está a sutileza da manipulação. Uma coisa é o SISTEMA, um código de leis racionais, justificadas, muito convincentes que tem como premissa a proteção da civilização e preservação da espécie humana. Lindo! Outra coisa bem diferente é a situação onde uma massa de... “Pessoas” é mantida sem nenhuma disposição para questionar, totalmente alienadas, e alimentadas por superstições e crenças irracionais que, apesar de tudo, obedecem sim a uma racionalidade subjacente. Elas são uma força ativa e muito presente que faz o trabalho sujo. Aquilo que o SISTEMA jamais poderia fazer sem entrar em contradição.

- Mas o SISTEMA pode controlar isso?

- Diretamente não. Mas veja bem. O SISTEMA é muito mais que uma compilação de conceitos e algoritmos. É algo que foi arquitetado com uma visão de longo prazo, um projeto. Esse projeto não foi feito por si próprio, O SISTEMA não é um ser inteligente! É só uma coisa operante, mas foi projetado por seres inteligentes que sabiam muito bem o que estavam fazendo. Ou pelo menos sabiam na época. Eles foram os verdadeiros mandantes! Mas nem eles, nem ninguém, poderia prever o futuro, e o fato é que O SISTEMA hoje está obsoleto! Não serve mais à humanidade. Sem querer, se tornou opressor, por mais sutil que seja. Nada arruína mais o ser humano do que retirar-lhe toda a vontade e necessidade. A Terra está estagnada há um milênio. Não há mais progresso! Não há mais avanço! Nada mais muda! Isso é contra a nossa natureza, e é por isso que o único erro do termo “tetrahumanas” é a segunda parte. Porque aquelas criaturas não são humanas! São apenas simulacros, restos de humanidade, incapazes de agir, sentir ou pensar como nós, ou os seres que criaram tudo o que elas usam.

Glei não podia concordar com a parte que tocava Dir-Zá, mas de resto, o discurso estava interessante, convincente, o que não o impedia de ir acumulando más intuições. Tentando ganhar mais dados pra pensar, preferiu mudar de assunto, mesmo desconfiando que não ia gostar do rumo da conversa.

- Humm... Ok. Pra que precisam de mim?

- Você é o autor da Equação Gravitônica!

Era exatamente o que ele temia ouvir. Sentiu quase um soco no estômago de tão traumático que o assunto ainda lhe era, mas ao menos talvez tivesse enfim a chance de entender tudo aquilo.

- Mas... Como isso é possível!? Aquilo era uma piada! Não faz o menor sentido!

- ...Ahh... Bem que disseram que você não ia acreditar, mas o fato é que essa... “Piada”, em pouco tempo foi ficando cada vez mais séria. Você que se deixou vencer pela ignorância da maioria! Olha, depois que você foi congelado, as coisas na Física de Partículas não melhoraram. Nada de gráviton, nadinha mesmo, e iniciativas que unificavam a força eletromagnética com a gravitacional, Teorias Quânticas da Gravidade e até teorias de inércia por ondas de arrasto fotônico foram se tornando cada vez mais comuns. Mas ninguém se entendia. O sonho de uma Teoria Total da Natureza era cada vez mais distante, e com a compartimentalização crescente das ciências, foi ficando mais e mais difícil alguém ser capaz de entender o todo. Foram os filósofos que começaram a insistir numa visão mais holística e interdisciplinar, e não foi surpresa, como você mesmo já ilustrava, quando a Filosofia da Ciência, depois de tanto tempo enrolada com uma epistemologia cada vez mais fajuta, foi mais e mais ousando ser uma Filosofia da Natureza. Surgiram novas propostas, que propunham novas unificações ou novas subdivisões de forças, e surgiram até maluquices como teoria dos 9 elementos, mas, curiosamente, foi daí que, seguida a Teoria Neoatômica do Elemento Único, surgiram as teorias das Forças Únicas, ou melhor, de uma Força Fundamental que a tudo governava. E essa força, evidentemente, é a gravidade!

- A Força Gravitacional como uma única e fundamental força? Sem oposição?

- Com oposição! Claro! O universo passou a ser entendido como regido por uma força única, e a reação a essa força. A força fundamental: a Gravidade, a reação: Espaço-Tempo! Aí que está a grande sacada. Você vislumbrou essa idéia mas a interpretou invertida! A Equação Gravitônica não se tornou uma equação da força gravitacional, mas sim da força inversa à gravidade.

- A Força Lambda?

- Sim! Prevista há muito por vários físicos, mas nunca encontrada, porque sempre estava bem diante de nossos olhos! O Espaço-Tempo é essa força em si! E somente compreendendo ela pudemos enfim entender que o caminho para desvendar a Força Gravitacional residia nessa mera direção, embora em sentido oposto. As coisas começaram a melhorar quando os matemáticos resolveram ajudar. Os físicos estavam por completo perdidos, mas a aliança Filosofia e Matemática, mais uma vez na história, viria a levantar uma nova Física! Pouco depois de você, alguém deduziu o primeiro termo faltante da Equação Gravitônica, e bem depois uma matemática famosa desvendou o segundo. Mas aí veio a crise, a explosão populacional, as guerras religiosas, e...

- Deixe eu adivinhar: a mesma hipocrisia e estupidez de sempre, insultar a ciência mas cooptar todas as suas conquistas colocando o crédito em Deus, e... Houve guerra? Guerra global? Nuclear? Quando?

- Quase foi o fim. Mas, olha, não quero entrar nesses detalhes porque fui congelado... Um pouco antes, e é difícil recuperar informações sobre a época. O SISTEMA não deixa! Mas o que sei é que ao final da Segunda Formação alguém finalmente desvendou o terceiro termo da Equação Gravitônica e a humanidade dominou por completo o conhecimento da Força Lambda e por conseguinte, o controle total da Gravidade. As pesquisas só encalharam porque houve a tentativa de revolução, a contra revolução e a Terceira Formação, e o fim de todas as hostilidades, das guerras, e de quase toda a criminalidade, jogou a humanidade num longo período de acomodação e paz. Aí vieram as tecnologias de longevidade, e os cérebros móveis, e a humanidade finalmente começou a lutar de igual pra igual com a Morte. E... Bem, tudo encalhou.

- Você fala como se isso fosse ruim.

- E num longo prazo é!

- E por quê? O que há de errado num mundo pacífico, sem violência, sem mortes...

- Você sabe o que realmente deu o golpe fatal nas religiões? O aumento artificial da longevidade, e depois a imortalidade virtual dos cérebros móveis! Na Terceira Formação, com o mundo totalmente governado por mulheres, floresceu uma religiosidade mais pacífica e flexível. Em geral reencarnacionista. Mas quando viram que podiam viver muito mais do que o normal, a fé foi posta em cheque, pois todos diziam que acreditavam em reencarnação, que a morte não era o fim, e etc, mas qualquer aumentozinho na longevidade era agarrado com unhas e dentes. Essa nova religiosidade dominante era sofisticada demais para fazer vista grossa dessa contradição como as velhas religiões mesopotâmicas conseguiam fazer com tanta desfaçatez, e o resultado é que todo mundo foi ficando laico, secular, agnóstico... Pra não dizer ateu. Religião sem diabo não funciona! Não dura muito tempo!

- Sim, mas o que isso tem a ver com o assunto? Insisto! Qual o problema de um mundo pacífico!

- Perda de sentido! Sem um caminho a seguir, mesmo que seja pra lugar nenhum, a humanidade fica parada, ou pior, começa a andar a esmo.

- Qual é o caso da Quarta Formação?

- Os dois. Aquelas no planeta não vão a lugar algum, o que estão no espaço andam à esmo, sem objetivo, sem motivos, até que começam a se destruir, ou literalmente, morrer. Por que você acha que há pouco mais de 4 milhões de habitantes no Sistema Solar inteiro há quase mil anos? Porque não tem pra onde ir!

- Talvez porque já tenham chegado onde queriam!

- E então o quê? Se extinguir?

- Não existe essa possibilidade. Sempre haverá alguém! Não é a toa que existem 4 milhões há mil anos.

- E a pesquisa científica? E as novas descobertas? Novas conquistas?

Finalmente Algleison ficou tocado. Nesse ponto ele concordava. Como cientista, não poderia ficar à vontade com a estagnação do conhecimento, e se era esse mesmo o caso, não seria seu dever profissional contribuir para uma situação mais favorável ao progresso da ciência? Não fôra esse, por sinal, um dos motivos pelo qual foi enviado para o futuro?

Por outro lado, o que significaria esse dever de cientista? Não deveria vir antes um dever como ser humano? Não deveria a ciência antes servir ao bem estar? E se esse bem estar havia sido alcançado, isto é, a falta de guerras reais, de crimes e doenças, o fim da miséria e a quase imortalidade... Faria sentido em ainda querer uma situação que viabilizasse o progresso em detrimento do bem estar? Pois, aparentemente, o progresso científico e a necessidade pareceram, em grande parte da história, ter andado de mãos dadas, ainda que a falta de progresso jamais tivesse significado falta de necessidade.

Se a necessidade fazia o gato pular, na falta dela, que ao menos a curiosidade o fizesse, de preferência sem matá-lo.

O Tempo...

...parecia não passar naquela nave que se afastava cada vez mais, rumo ao vazio. Algleison, com sua Veste colada ao corpo, olhou para seu interlocutor de um modo desafiador. Se falava tanto em progresso, por que usava aquelas roupas velhas? Ele não respondeu, apenas olhou para as roupas, e o que antes parecia uma calça jeans, uma camisa de malha e um jaleco, se transformou numa Veste, ainda mais sofisticada que a dele, o que o levou a pensar porque tanto esforço em tentar ambientá-lo com coisas de seu tempo.

- Pense bem Dr. Algleison...

- Glei, por favor.

- Sim. Glei. Aquela incrível cidade flutuante! Não tem vontade de conhecê-la melhor? De entendê-la?

- Claro!

- Nós sabíamos que você estava lá! Quando localizamos sua estação de criogenia tentamos buscá-lo, mas ela foi destruída antes, com isso foi feito um alvoroço que impediu que vasculhássemos o local em paz, sem as naves dos clãs nos importunando a todo instante. Aí, quando as coisas começavam a acalmar, você entrou naquele vale, e aí não podíamos fazer nada.

- Por quê?

- Por causa da cidade voadora! Ela é uma das maravilhas construídas com a tecnologia de manipulação gravitacional, tecnologia que se deve à Equação Gravitônica. Mas nossas naves não podem ir lá por que os campos eletromagnéticos são tão fortes que as bloqueiam. Não podemos nem chegar perto! No máximo traçar uma rota de sobrevôo e planar sobre a área. E tudo isso porque não temos mais as tecnologias gravitacionais! Porque foram banidas! E o SISTEMA nos proíbe de usá-las!

- Então era mesmo isso! O fenômeno anti gravitacional gera um campo eletromagnético poderoso. Então tais tecnologias realmente existiram!?

- Sim! Mas antes da Quarta Formação! Antes da Guerra Espacial!

- E era isso mesmo que eu queria saber! O que aconteceu?! Como destruíram Marte e como a Terra foi parar em Júpiter?

- Há! Antes temos que voltar um pouco, no final da Terceira Formação, sobre a qual temos menos informações ainda, devido a um bloqueio terrível do SISTEMA. Não existe nada mais restrito e confuso do que essa época da história. Até o tempo parece ter sumido!

- Claro. Se descobriram como manipular a Gravidade, pela sua explicação, teriam conseguido manipular também o Tempo.

- Provavelmente. Fato é que só o que sabemos é que naquela época a humanidade estava dividida entre se interiorizar cada vez mais, ou se exteriorizar. Havia quem quisesse expandir os domínios da humanidade, enviar emigrantes para outros sistemas estelares, espalhar a humanidade por toda a parte! Outros pensavam que devíamos nos voltar para o universo interior, isto é, nossas mentes. Investigando nossa potencialidade intrínseca, meditando, nos concentrando em nossos mundos interiores. Não sabemos bem o que pode ter acontecido, mas é fato que a Terra e Marte entraram num sério desentendimento. A Terra sofreu um bombardeio nuclear cataclísmico que quase extinguiu a vida, mas a retaliação foi ainda pior. Com os conhecimentos obtidos por meio do domínio total da Força Gravitacional, conseguiu-se desenvolver a mais terrível e devastadora arma jamais sonhada. O Inversor de Gravidade!

- Inversor?

- Sim! Olha! Ainda no meu tempo, acho que ainda no seu, já estavam fazendo experiências com levitação, e assim, neutralizar a força gravitacional ao menos um pouquinho. Ao final da Segunda Formação já se conseguia a neutralização total da gravidade, mas depois com o domínio dos dois termos da Equação Gravitônica, conseguiu-se a Deflexão Gravitacional, onde o sentido da atração gravitacional é desviado, fazendo com que o planeta literalmente te arraste para o lado, ou até...

- ...em sentido oposto! Eu sei. Já havia esse conceito no meu tempo.

- Então! Depois conseguiriam a amplificação gravitacional, por meio de um processo que faz a massa gerar uma atração maior do que deveria, e com isso puderam fazer aeronaves capazes de, primeiro levitar, depois defletir a gravidade e deixá-la fluir, fazendo a nave “cair” na direção que quisessem, e então amplificá-la, de modo a aumentar a aceleração. O sistema perfeito. Mas as melhores teorias ainda pensavam que era impossível inverter a gravidade, e foi isso que a solução final da Equação Gravitônica permitiu.

- A Inversão Gravitacional?

- Sim. E isso que levou a construção da mais formidável e devastadora arma. O Inversor é um dispositivo relativamente pequeno e versátil. Bastou um ser lançado sobre a superfície de Marte para destruí-lo. Ele gera um campo limitado onde a lei da gravitação é simplesmente invertida!

- Quer dizer que os corpos passam a se repelir na razão direta de sua massa?

- E o pior! Também na razão direta de sua distância! E aí que está a pior inversão!

- Na razão direta da distância! Quanto mais longe...

- ...mais fortemente os corpos se repelem! A superfície do planeta começou a ser expulsa de imediato, sendo lançada no espaço, e o planeta foi simplesmente se desmanchando e revelando camadas e mais camadas. Mesmo as partículas que estavam no núcleo, próximas uma das outras, foram se afastando, lentamente, mas cada vez mais rápido, e é claro, Fobos e Deimos foram chutados! Mas o campo da inversão é limitado, no caso, um pouco maior que o diâmetro das órbitas dos satélites naturais do planeta.

Glei sentiu que Ítalo parecia ter um prazer mórbido naquela destruição, e como se sentisse que a limitação do campo fosse uma infelicidade. Não houvesse limitação, o sistema estelar inteiro poderia ter sido desintegrado, e mesmo sem ter sido assim, os pedaços de marte deviam estar espalhado por todo o Sistema Solar. Ficou ainda mais incomodado quando sentiu que ele próprio também parecia excitado com a idéia de tamanha devastação, pelo que isso significava em termos de conhecimento e domínio sobre a natureza.

- E a Terra?

- A tecnologia do inversor se tornou acessível para todos, num contra ataque, os sobreviventes e simpatizantes de Marte tentaram fazer o mesmo com a Terra. Não sabemos muitos detalhes, mas parece que só conseguiram ativar o inversor num ponto entre a Terra e a Lua, que então se repeliram. A Terra então foi jogada para longe do Sol, o que foi uma sorte pois assim escapou de diversos asteróides que foram lançados ao longo de sua órbita, em rota de colisão. Mas a guerra não arrefeceu, foi ficando cada vez mais hostil, até que, finalmente, conseguiram elevar a tecnologia gravitacional ao máximo, e com um investimento de recursos absolutamente fabulosos, foi criado algo que até hoje não tem paralelo na história humana. Algo capaz de manipular total e completamente a Força Gravitacional, e por conseguinte a Força Lambda, uma ciência quase divina, que permitia dobrar o tempo, o espaço e a gravidade em qualquer aplicação imaginável.

- O quê era afinal?

- O Sistema GRADIVIND!

GRADIVIND.

Um nome estranhamente arcáico, até familiar, embora de certo não tivesse ouvido falar dele. E o nome era esse mesmo! Não se tratava de uma tradução. Num universo milhares de anos no futuro, com idiomas foneticamente tão distintos, aquela palavra soava como uma relíquia do passado.

- Sistema GRADIVIND! Esse nome parece coisa...

- Do nosso tempo! Eu sei. Grande ironia, usar um termo tão antiquado para designar o apogeu de todo o desenvolvimento tecnológico. O supra sumo da conquista científica! O Sistema GRADIVIND foi de dificílima implementação, exigiu recursos colossais, geração de energia proibitiva mesmo para quem dominava a fusão a frio, mas valeu a pena, pois com ele foi possível acabar com a guerra e eliminar de vez a ameaça. O controle do GRADIVIND foi misturado com a Infosfera estelar, de modo que um comando descentralizado, autônomo e com diretrizes muito bem definidas, conseguiu se alastrar por todo o Sistema Solar neutralizando qualquer tecnologia gravitacional. Levitação, Deflexão, Amplificação e Inversão foram inviabilizados em toda parte, passando a ser exclusivamente controlados pelo sistema, que, acredito, seja precursor do SISTEMA.

- O SISTEMA ainda possui o GRAVIDIND?

- SIM! Só que não o utiliza mais, porque não há necessidade. Não há mais perigo. Toda tecnologia gravitacional foi banida, com a exceção de nichos isolados como a cidade flutuante, e o Sistema GRADIVIND só será reativado se novas tecnologias gravitacionais surgirem e colocarem o Sistema Solar em risco novamente. Entenda que o GRADIVIND é absurdamente dispendioso. Consome recursos inimagináveis. Essa incrível fartura que você vê hoje no planeta resulta mais do fato de que, quando o GRADIVIND foi desativado e seu ônus cessou, tudo ficou tão barato que qualquer preocupação com a economia deixou de fazer sentido.

- E por quanto tempo ele funcionou?

- Esse é o problema! Não sabemos! Porque entre outras coisas, ele distorcia o tempo. Foi o GRADIVIND que permitiu mover a Terra e colocá-la orbitando Júpiter, onde ficaria relativamente protegida dos destroços que ficaram errando em todo o sistema estelar, num verdadeiro bate e bate de asteróides jogados em todas as direções pelas forças em conflito, pois todos esses asteróides acabam atraídos por Júpiter. Ao menos pensamos que este foi o principal motivo da mudança, além de deixar o planeta numa órbita mais estável. O GRADIVIND permitiu reduzir para um tempo viável uma viagem que a Terra demoraria um milhão de anos para fazer sozinha. Não sei se criou um wormhole, uma Dobra Espacial, Hiperespaço, sei lá! Mas o fato é que colocou a Terra onde ela está agora, e um dos efeitos colaterais disso é que não sabemos quanto tempo, do nosso tempo normal, decorreu.

- O SISTEMA esconde tais informações, ou nem ele sabe?

- Grande pergunta! Com tanta restrição, é difícil concluir. Mas achamos que um dos motivos das restrições do SISTEMA serem tão grandes é esconder a própria ignorância, a própria fragilidade. Achamos sinceramente que podemos derrubar o SISTEMA se pudermos ter acesso à sua rede estrutural.

- Que rede?

- Rede Gravitacional! O SISTEMA, apesar de proibir tecnologias gravitacionais, opera justamente na infra estrutura fundamental do universo, nos campos gravitacionais e na própria estrutura do espaço tempo. Lá está toda a sua programação, todas as suas funções e algoritmos! Se tivermos acesso, podemos pô-lo abaixo e reconquistar as rédeas de nossa civilização! E é exatamente por isso que precisamos de você!

- ...Oh não... Essa não... Não vão me dizer que vocês precisam de mim para redescobrir os termos da Equação Gravitônica. Por que eu não faço a menor idéia...

- Não se preocupe. Não precisamos disso. Já temos todos os termos. Apesar dos mil bloqueios do SISTEMA, sempre há um jeito de ludibriá-los, e depois de muito tempo conseguimos enfim redescobrir a equação, que poderíamos usar a qualquer momento.

- Mas então... Por que não usam!?

- Por que o SISTEMA nos derrubaria num instante! Descobriria que cometemos uma infração gravíssima! E antes que pudéssemos nos organizar, simplesmente desligaria o controle de nossos cérebros! É uma das raras condições em que ele pode fazer isso. Nossos cérebros sairiam dos corpos e seguiriam, indefesos, para uma prisão cerebral onde ficariam conectados a alguma fantasia coletiva, por sabe-se lá quanto tempo. Além do mais, mesmo que não fizesse isso, ele provavelmente ativaria o GRADIVIND, e poderia neutralizar todos os nossos esforços de fazer as coisas voltarem a ser como antes. Grandiosas como eram no nosso tempo!

- No nosso tempo?! Grandiosas como?

- Eh... Quero dizer. Em primeiro lugar, levar a Terra de volta à sua órbita original. Não queremos um planeta tão frio. Precisaremos do calor do Sol para revitalizar a biosfera. Depois, restaurar a capacidade reprodutiva da humanidade e implementar a Quinta Formação, que seria um retorno à primeira, mais aperfeiçoada, onde a humanidade seria então novamente livre para decidir o próprio destino.

Glei achou ainda mais estranho. O que havia para ser revitalizado? Havia tantas e belíssimas florestas e uma excelente biosfera! Qual a vantagem de levar a Terra de volta? Qual a verdadeira vantagem e reativar a fertilidade humana, naquela situação?

Ainda inseguro de como se opor a seu dialogante, mesmo porque ameaçava ser seduzido por alguns aspectos de seu modo de pensar, decidiu começar a resistir do modo como pudesse.

- Mas então voltamos à estaca zero! Não precisam de mim! Já tem a fórmula! Mas não podem usá-la, então...

- Com você, podemos usá-la! Porque isso caracterizaria que a Equação Gravitônica foi novamente descoberta, deduzida por seu criador original. E isso não é proibido pelo SISTEMA. Se nós o convencermos que você redescobriu por conta própria a equação, ele não poderá nos impedir de usá-la, porque uma das diretrizes do SISTEMA é permitir a pesquisa científica livre, caso ela não se baseie em conhecimento previamente restrito.

- Quer dizer que redescobrir por meio dos registros proibidos não pode! Mas redescobrir por conta própria pode!? Mesmo que o resultado prático final seja o mesmo!?

- Exatamente! O SISTEMA não poderia nos punir por violação. Nossos cérebros não seriam desligados. Ele ainda ativaria o GRADIVIND, mas se atacarmos primeiro, podemos assumir o controle do próprio GRADIVIND e ter poder absoluto sobre tudo!

- O SISTEMA parece incrivelmente rígido e autoritário por um lado, e estranhamente ingênuo e benevolente por outro.

- Como eu disse, não é uma coisa inteligente! Ele não seria capaz de saber que você apenas está endossando nossa empreitada, ademais, sejamos sinceros, com o tempo e os recursos você de fato conseguiria deduzir a equação.

- Mas espere aí! O SISTEMA não possui backups cerebrais de todos nós? Como pode não saber o que sabemos então?

- Porque uma coisa é ter um registro bruto do mapa de uma estrutura neural, outra, bem diferente, é saber o conteúdo! O SISTEMA pode mapear nossos cérebros e reproduzir nossas estruturas cognitivas, mas não tem acesso à real substância da mente, à Quintessência que nos faz verdadeiramente seres humanos, inteligentes.

- Ou seja, ele pode ter o registro neural que contém as memórias de alguém que sabe que violou uma restrição e redescobriu a solução da equação gravitônica, mas não tem como saber do que se trata.

- Seria só uma estrutura neural como qualquer outra! Você também poderia copiar um código digital qualquer de um meio para o outro, restaurar do Backup, sem ter idéia do conteúdo, não?

- Claro. Superveniência do significado sobre o conteúdo.

- Então, o que você me diz?

- Só precisam então de meu endosso? Só precisam que eu minta?

- Sim.

- E depois... Me levam de volta?

- Você quer voltar?

- ...Eu... Não concordo com a maneira como você descreve as tetrahumanas. Eu gosto de pelo menos uma delas.

- Ora, isso aconteceu devido a solidão. Uma coisa que partiu de sua subjetividade. Nada tem a ver com ela. Você precisa voltar ao convívio de sua própria raça. Glória, por exemplo, tem uma enorme admiração por você. Ela está bem interessada!

- ...E o que vai acontecer às tetrahumanas?

- ...Bem. Não vou enganá-lo. Se elas se opuserem a nós, vai ser difícil sobreviverem. Teremos poder para varrer a superfície do planeta! Basta uma pequena dose de inversão gravitacional e podemos fazer toda a crosta terrestre ir pro espaço! Claro que seus cérebros podem escapar, mas poderemos controlar também o SISTEMA.

- ...Então elas estarão em suas mãos. O que pretendem fazer?

- Isso eu realmente não posso dizer. Há muitas pessoas com idéias diferentes. Mas eu pessoalmente confesso um certo rancor pelo fato de elas dificultarem tanto nossas visitas ao planeta. Eu já perdi centenas de sondas de espionagem.

- Sondas de espionagem?! Mas porque não envia naves diplomáticas? Porque não vai pessoalmente? Elas não o atacariam! Eu sei disso agora porque é evidente que os dois únicos ataques à naves tripuladas que tomei conhecimento foram cometidos por vocês!

- Não tivemos escolha. Tem muita coisa em jogo. E nós não podemos enviar missões de reconhecimento oficiais porque teríamos que explicar nosso objetivo. Seria muito complicado, elas acabariam descobrindo, ou pior, O SISTEMA poderia descobrir. Não sabe que O SISTEMA proibiu totalmente que você fosse descongelado?

- É... Eu sei. Quero dizer... Não sei. Preciso pensar.

- Claro.

A Destruição...

… de todas as tetrahumanas sobre o planeta não era algo que agradava Glei. Apesar dos vários pontos colocados pelo Dr Ítalo, não estava convencido de que depositar tanto poder nas mãos daquele grupo revolucionário, ou talvez retro revolucionário, fosse uma boa idéia. Bem ou mal, a humanidade estava pacificada, sem sofrimento, há mil anos, gozando de estupenda qualidade de vida. O que há de errado em não querer sair do paraíso?

Trazer o poder de volta às mãos humanas era de fato desejável? Talvez fosse para quem, há séculos, nunca tivesse visto ou ao menos vivido num mundo em guerra, mas ele sabia o que isso significava. A tecnologia podia ter avançado muito, mas um conflito real ainda seria uma desgraça. Fazer uma nova guerra espacial, uma guerra de verdade, não parecia justificável. As revoluções de seu tempo sempre tiveram bons motivos para se justificar, por pior que fossem os resultados. Sempre havia miséria, criminalidade, exclusão social e toda sorte de desgraça que servia de estopim para uma crise e uma reviravolta violenta. Mas e agora? Qual seria a desculpa?

Além do mais, com armas tão devastadoras envolvidas, a própria existência do Sistema Solar estava em risco. Se o GRADIVIND era assim tão poderoso, se a sub estrutura fundamental do universo, a Gravidade, pudesse ser manipulada a tal nível, então um mau uso trazia o risco da aniquilação absoluta. E isso o incomodava ainda mais não apenas pela idéia ser terrível, mas pelo fato de ele mesmo, no fundo, já ter nutrido simpatia por isso. Ele próprio já havia desejado que tudo deixasse de existir. Mas isso fora numa outra vida, que fizera questão de esquecer.

Com isso em mente, teve a idéia de conversar com os outros tripulantes da nave. Além de Glória, que realmente capturava sua atenção, havia mais 3 rapazes e 4 moças com os quais passou a confabular, um tanto surpreso que dominassem tão bem a língua portuguesa de seu tempo. Mesmo assim, após muito tempo de diálogos, ficou com uma má impressão. Ítalo parecia apenas um pouco excêntrico e anacrônico, e Glória, que a cada instante parecia ir ficando mais e mais linda, pelo jeito estava ali com o único objetivo de seduzi-lo. Mesmo sem praticamente conseguir prestar atenção nos demais, crescia-lhe a impressão de serem garotos sem a menor idéia do que estavam fazendo, como se fosse apenas outro tipo de alienação baseada numa estranha promessa de futuro do pretérito grandioso que, dessa vez, ainda tinha o agravante de ser difícil de justificar. Como se fossem “revolucionários” de fachada, aderindo a uma última moda.

Qual seria o benefício real de ter de volta a reprodução sexual normal? Por que esse modelo, esculpido por bilhões de anos de seleção natural despropositada e cega, seria de fato melhor que o modelo resultante de uma vasta engenharia técnica e social? Isso só era cabível na mentalidade de quem divinizava a natureza como se toda a aventura humana não passasse de um trauma de paraíso perdido, paraíso este que sempre existiu apenas na imaginação dos menos inteligentes. Quem quisesse se reproduzir sexuadamente podia fazê-lo! Já havia visto essa possibilidade no SISTEMA. Só que ninguém queria, o que era fácil de entender num mundo onde a maioria sequer fazia questão dos prazeres sexuais.

Com tudo isso em mente, Glei pediu para falar em particular com o Dr. Ítalo e comunicou sua decisão de que, ao menos do modo como as coisas pareciam estar, não concordava com suas idéias. Simpatizava com as questões relativas ao desenvolvimento científico, mas não via motivo para derrubar toda uma civilização por conta disso. O SISTEMA, apesar de tudo, garantia conforto e segurança para todos, e se não podia sequer impedir que ele redescobrisse a equação gravitônica, então não poderia se opor a forma alguma de progresso científico. Pensava que a humanidade havia atingido um patamar altamente satisfatório, e que isso por si só permitia o progresso.

- Você tem certeza?

- Sim. Tenho. Não consigo ver um único bom motivo para isso tudo.

- ...

- ...

- ...

- Sinto muito.

- ...

- Há alguma outra coisa em que eu possa ajudar?

- ...

- ...Humm... Dr. Ítalo?

- ...Aaaa... Bem. E quanto a sua esposa e filha?

- ...O... O-o quê? O que tem elas?

- Não gostaria de tê-las de volta?

- O que você quer dizer com isso? Nem vocês, nem o SISTEMA, nem nada pode fazer algo a respeito!

- Tem certeza?

- Descongelar pessoas que foram congeladas vivas é uma coisa! Você está falando de ressuscitar mortos! Elas não tinham cérebros móveis! Não tinham backup no SISTEMA!

- Você não consegue pensar em nada?

- Pensar em quê?! Vai dizer que o GRADIVIND pode viajar no tempo também?!

- É sério que você nem faz idéia? Pense bem! Os DNAs delas estão registrados. Até hoje! Fazem parte do banco de informações sobre você.

- E daí? Pretendem cloná-las?! Acham que sou tão estúpido a ponto de não saber a diferença entre ressuscitar uma pessoa e fazer-lhe um clone?!

-Dr Algleison!!! .

- ...

- Não consegue pensar em nada, que ainda no seu tempo, fosse só a ponta de um iceberg que, hoje, pode permitir coisas que você acreditaria ser impossível.

Aquilo estava indo longe demais. Não toleraria que usassem sua desgraça pessoal para manipulá-lo. Estava sentindo que havia algo de muito estranho em tudo. Havia algo errado ali, naquelas pessoas, tudo começava a soar falso. Mas não podia simplesmente se colocar contra seus captores. Não enquanto estivesse no espaço, sem a menor idéia do que fazer para escapar. Tinha que, ao menos, ter certeza de que não estava sendo paranóico.

Haveria mesmo tal possibilidade? E se ele estivesse, no fundo, temendo o simples fato de que tal milagre fosse realmente possível? Já havia se acostumado com o fato delas estarem irreversivelmente mortas, vivendo apenas nas tatuagens que ele agora observava, e em sua memória! Se isso fosse possível, ele mereceria? Estaria preparado para olhar nos olhos de sua esposa e pedir perdão por ter causado sua morte? Sua recusa em acreditar se devia a quê? Bom senso, ou medo?

De repente. Algo lhe ocorreu.

- Espere aí... Você não está querendo me dizer...

- Sim. Prossiga. Não consegue imaginar?

- Você quer me dizer que aquela tese infame do Dr. Gregory House de, recuperar a memória genética... Tem fundamento?

- Ah… Parece que você está tendo uma idéia. Lembra-se do que ele dizia?

- Na grande conferência de Londres sobre Metempsicose Neurológica, promovida pela Universidade de Hogwarts, ele disse que era possível detectar no DNA residual um registro preciso das memórias de uma pessoa, que eram passadas de geração a geração!

- Ah. Finalmente está chegando perto!

- Então… Com o DNA da minha filha, eu poderia resgatar a memória genética de minha esposa e inseri-la no clone?!

- Sim... É isso. Mas… Não é óbvio! Pode até não ser a memória completa, mas seria...

- Ela se lembraria de mim, teríamos um novo romance. E...

- É claro!

- E poderíamos começar tudo de novo.

Por um momento, o próprio Glei se deixou seduzir pela imaginação. Seria isso possível? Haveria algum fundamento na idéia de memória genética? Naquele novo e fabuloso mundo, com tecnologias tão estupendas, até aquela loucura poderia soar plausível, e o modo como as idéias saíram da sua boca chocaram ele próprio, pela naturalidade com que tal possibilidade podia ser levantada. Haveria alguma esperança?

Mas ainda que houvesse, ao menos uma coisa ele sabia, e estava na hora de virar a mesa contra aquele estranhamente risonho Dr. Ítalo, que alguns minutos atrás, havia lhe lançado um olhar da pior espécie.

Percebera que durante grande parte do diálogo, seu interlocutor usara uma abordagem ardilosa, conduzindo sua linha de pensamento e deixando-o muitas vezes completar suas idéias, de modo que sua ingenuidade o animou a tentar envolvê-lo numa teia de conceitos e propostas potencialmente sedutoras. Havia algum tipo de habilidade psicológica em seu dialogante que lhe fazia soar incrivelmente familiar, como se fossem velhos conhecidos, e era isso que de fato permitira aquela farsa ir tão longe.

- Só tem um problema Dr. Ítalo... Se é que esse nome é real.

- Que problema?!

- Dr. Gregory House era um médico, personagem de uma antiga e muito famosa série de TV da minha infância! Não havia nenhum cientista com esse nome em minha geração! Nem nenhuma universidade de Londres faria uma conferência de Metempsicose, e nem havia nenhum ramo disso que sequer passasse perto da Neurologia. E... Por favor… Universidade de HOGWARTS…

- Oouhh… Entendi.

- É impossível você ter vivido no meu século sem saber disso. Sinto muito Dr. Ítalo. Mas pode parar de mentir. Quem você é realmente?

Resgate...

…não era algo com o qual pudesse contar. Suas amigas tinham pavor do espaço, ele já sabia. Sozinho na sala, o homem do passado pensava, curiosamente aliviado, notou, pelo fato de saber que O SISTEMA, embora backupeasse suas redes neurais, não tinha acesso à essência de seu pensamento. A quintessência, como dissera estranhamente o Dr. Ítalo, dando apenas uma das inúmeras pistas de que não sabia do que estava falando. Aquele homem jamais conhecera os séculos XXI ou XX, isso era óbvio, e provavelmente mentira em muitas outras coisas também. Glei só continuava a acreditar na incapacidade do SISTEMA em violar seus pensamentos porque isso fazia todo o sentido, e estava de acordo com tudo o que aprendera até agora.

Sabia por exemplo que não poderia ser torturado, caso decidissem usar algum outro método para fazê-lo cooperar. O SISTEMA detectaria o estresse excessivo e facilitaria o desligamento do cérebro. Quaisquer que fosse a abordagem à qual seria exposto agora, teria que ser tão sutil quanto fora antes. Pensava também que desta vez parecia ser, de fato, prisioneiro, e também sabia que havia meios de apelar ao SISTEMA para evitar isso. Mas perfurar o casco da nave para fugir seria inútil enquanto estivesse no espaço, sem chance de chegar ao planeta, sem chance de ser alcançado por suas companheiras por um motivo que quase o fazia concordar com o porta voz da Quinta Formação sobre as limitações das tetrahumanas.

Companheiras! Achou estranho pensar naquilo. Gostava de Dir-Zá. Ei-Kis não lhe fazia muita falta, ainda que nos últimos dias ela estivesse bem mais tratável, e de qualquer modo, parecia parte integrante da situação de um modo que tinha que ser tolerada, como um filho incômodo que acompanha uma nova esposa. Também simpatizava com a dupla do clã Ar-Ji, mas até aí, a única que lhe importava mesmo era Dir-Zá, e seu tão meigo olhar. Talvez, fazendo o papel de uma mãe que ele jamais tivera e sempre sonhara. Talvez a atitude, e o tamanho avantajado, lhe enviassem de volta à infância, onde no colo de um das babás do orfanato, ele gostava de imaginar algumas delas como se fossem sua mãe. As vezes até chamava uma delas assim, e houve uma que durante muito tempo permitiu, até que fosse aprovada num concurso público e fosse buscar algo melhor pra fazer.

Talvez nesse ponto Ítalo tivesse razão. Talvez seu motivo de apego à Dir-Zá fosse resultante de uma condição bem mais subjetiva e pessoal. Não só a solidão, mas também a carência de infância. Carência que outrora fora suprida por sua esposa.

Então, repentinamente, percebeu Glória se aproximando por trás dele, com passos suaves, longos e lentos, favorecidos pela baixa pseudo gravidade simulada. E então começou a perceber que alguma coisa estava sobrenaturalmente errada. Ela não só estava irrealmente bela, como, ainda por cima, começava a lhe lembrar sua esposa, não só nas feições do rosto, mas também no olhar.

Ela começou a conversar com ele, evidentemente tentando convencê-lo, mas ele sequer conseguia prestar atenção no que ela dizia. Parecia uma fada, uma ninfa, flutuante, brilhante e deslumbrante, lhe envolvendo numa teia de sedução. Não conseguia tirar seu olhar dos olhos dela, e depois de seus lábios, e ela começou a se aproximar. Ele não ouvia o que ela dizia mas seja lá o que fosse, estava prestes a concordar, até que, subitamente, sua visão falhou. Sentiu uma vertigem e tudo a sua volta pareceu brilhar, e girar.

Embora não mais a enxergasse, e sim apenas um mar de distorções luminosas cromáticas, e nem sequer a ouvisse, perdido num imenso zumbido indefinido, ainda tinha na memória o rosto dela se aproximando, prestes a beijá-lo, quando então, a sensação que antes era de baixa gravidade, agora era de gravidade plena. Estava deitado, sentia seu corpo novamente, e começou a distinguir um cenário totalmente diferente à sua volta.

E a pessoa que ele via agora não era a mais a divinal e belíssima Glória, seu semblante glorioso fora substituído pelo rosto que ele aprendera a detestar, ainda que não fosse em si feio, embora alienígena.

- Ei-Kis!? O quê... O quê você faz aqui?! - Perguntou enquanto ela puxava a cama onde ele estava para fora de uma pequena cúpula esférica. Ela pareceu indignada. - O que eu faço? Vim resgatar você?! Não é óbvio? Fique quieto! - Ela libertava seus membros, que não estavam realmente amarrados, e sim apenas contidos para evitar movimentos involuntários. Ele tentou se levantar mas sentiu enorme tontura. - Não se mexa! Você vai demorar um pouco para se recuperar! Deixe que eu te carrego!

Ela o pegou como se fosse um bebê, visivelmente apressada enquanto ele tentava entender o que acontecia, um tanto ainda desorientado. - Você veio até o espaço para me resgatar? - Embora tenha se arrependido da pergunta logo em seguida, visto que começava a ficar óbvio o que acontecera pelo simples fato de ela correr com ele por um corredor, aos saltos. - Não estamos nos espaço! Você estava numa simulação! O que quer que tenha pensado que viu, era falso!

Só então se deu conta de tudo. Estivera deitado, o tempo todo, num dispositivo que introduzia um mundo ilusório direto no seu cérebro, sem sequer precisar desconectá-lo. Bastava neutralizar a conexão com o corpo e substituí-la pelo sinal gerado pelo simulador. Não estivera no espaço, fora tudo mentira!

- Está bem. Estou Bem! Me ponha no chão! - Ei-Kis concordou, com gosto, quando chegaram ao final do corredor, fechado por uma porta que ela não esperava encontrar. - Não foi idéia minha vir te buscar! Mas Dir-Zá ficou desesperada! Queria vir ela mesma. E isso eu não podia permitir! Isso é trabalho pra pessoas como eu! Não para uma pessoa maravilhosa como ela... - E por um instante, ficou sentimental. - Ela é muito importante para mim.. Como uma...

- Ela está bem? - Ele preferiu interromper. Não queria ouvir o resto, e Ei-Kis pareceu aliviada. - Ótima! Comparando comigo que estou tendo que aguentar você!

- Parem! - Um grito feminino, humano, os interrompeu. - Glei! Por favor! Não vá! - Ele olhou para a mulher que se aproximava, franziu os olhos como que incrédulo com o que via. - Glória? - Sim. Parecia ela, ainda bonita, mas numa versão incrivelmente menos impressionante que a versão virtual, numa diferença comparável a ver uma atriz hollywoodiana completamente sem produção e muitos anos mais velha que em seu último e exuberante papel.

Ela avançava cautelosa. Com as mãos vazias e estendidas. - Por favor me escute! Desculpe termos enganado você! Mas não tínhamos outra escolha! É muito importante!

- Não posso ajudar vocês, e nem quero! - Gritou enquanto via Ei-Kis ocupada manuseando algo no vazio, aborrecida com algum dispositivo que não queria funcionar. - Sinto muito! Mas se tivessem sido sinceros desde o início, teriam tido muito mais chance! - Ela não se deteve. - Você representa uma oportunidade única de por fim a tudo! De acabar com todo o sofrimento! - Disse com tanta sinceridade que chegou a impressionar, como se estivesse falando de algo completamente óbvio, como a fome na África, as guerras no Oriente Médio ou os crimes nas Américas.

- Mas... Que sofrimento!? - Por um instante encarou Glória, indignado como só alguém do século XXI poderia estar com tamanha desrazão. - De que diabos você está falando?! - Mas ela não se intimidou, lançando até um olhar piedoso. - Eu sei que você não entende, porque vem de um tempo que parece muito pior. Mas... - O olhar dela chegava a ser comovente. - Se nos deixasse explicar...

Olhando que Ei-Kis, furiosa, não conseguia resolver o problema da porta, ele exclamou. - Vocês tiveram muito tempo que podiam ter usado para me explicar ao invés de tentar me enganar! E pelo que estou vendo, parece que ainda temos algum. - Ficou contente em irritar Ei-Kis mesmo sabendo que, naquela situação, isso não tinha cabimento. Glória hesitou muito, mas enfim deixou escapar. - A agonia da existência... Quando há sofrimentos objetivos, como no seu tempo, podemos nos iludir que a felicidade é possível, mas... A pior coisa que pode acontecer é quando tudo é satisfeito e... Você descobre o vazio que é viver... Que é existir... Tudo é falso! Tudo é uma mentira! Você não devia...

Ele sentiu um arrepio ao ouvir aquelas palavras. Que coisa tenebrosa, terrível! E subitamente, sentiu um certo apelo, e um quadro estranho se formou em sua mente, tentando conectar dados antes dispersos num todo coerente mas tão desagradável que era rejeitado com toda força por suas emoções mais sinceras.

Mas então, a porta se abriu, e a mulher apelou, mudando de discurso. - Olhe pra ela! Essa coisa te odeia! Por que vai embora com esse monstro ao invés de ficar com a sua própria espécie!? - E eles já haviam passado pela porta quando ele não resistiu, parou, e para a fúria de Ei-Kis, se virou e disse. - Eu adoraria explicar pra você porque isso não faz o menor sentido. Mas só vou dizer que começar uma frase com uma verdade óbvia não valida falsidades subsequentes! Adeus!

Mas antes que conseguisse se virar, viu os olhos de Glória perderem a vida, como se tivesse tido uma morte súbita, e então, sua cabeça se abriu, e o cérebro móvel saiu voando e passou sobre eles, subiu ao alto da estrutura e se esgueirou por uma pequena fresta, saindo ao ar livre rumo a uma nave estacionada na plataforma externa. - VAMOS!!! - Gritou Ei-Kis.

Correram por uma passarela paralela a centenas de outras, a perder de vista. À frente, pelas vidraças cristalinas que desciam dezenas de metros abaixo, podia ver a imensa floresta, sob o céu azul escuro do anoitecer. O cérebro voador entrara numa nave que estava avariada, com quase metade da fuselagem derretida, mas entrou num compartimento grande traseiro que estava intacto. Enquanto isso, se depararam com outra porta fechada, e Ei-Kis mais uma vez teve que batalhar para abri-la. Disse alto algo incompreensível mas que certamente era uma praga. - Como mudaram esses códigos tão rápido?!

Desistiu e se afastou, e então do meio de sua testa, surgiu um ponto luminoso, e um raio vermelho de calor intenso foi cortando a porta, deixando uma trilha de metal derretido. Terminado o círculo incandescente, ela sacou um pequeno bastão que se transformou numa barra de metal, e numa pancada única lançou o pedaço cortado da porta fora. Saíram então para a plataforma, onde, do outro lado, sua nave os esperava.

Então um som de uma comporta se abrindo lhes chamou atenção, e Ei-Kis já sabia o que era mesmo antes de se virar para olhar. Da nave onde o cérebro de Glória entrara, saía agora uma tetrahumana, que correndo como um raio saltou sobre eles e se colocou em frente à rampa que dava acesso à nave. Era do tipo de Ei-Kis, um pouco mais alta e magra, mas com tonalidade de pele muito similar, e também com uma cauda. A grande diferença era o rosto, cujas feições, mesmo conforme às linhas típicas daquelas tetrahumanas, ainda assim conseguia lembrar claramente o rosto de Glória. Até a voz soou incrivelmente similar.

- Glei. Não posso deix...

- O nome dele é IELG!!! - Gritou Ei-Kis no momento em que saltou sobre sua adversária. Elas se atracaram, e sua companheira gritou-lhe para que fosse para a nave. Ele nem teve tempo de obedecer, se é que obedeceria. Glória conseguiu se desvencilhar de Ei-Kis e agarrou Ielg com um dos pés, jogando-o da plataforma e fazendo-o cair numa escadaria onde rolou até chegar num compartimento de carga.

Pôde ver as duas se enfrentando. O SISTEMA não permitia o uso de armas de fogo, ou coisa que o valha, e nem mesmo que o LASER do cérebro móvel fosse usado contra outra pessoa, portanto a luta era essencialmente corporal, Ei-Kis fez uso de sua barra de metal, mas Glória se esquivava com notável maestria. Certamente era bem treinada, conhecia bem as técnicas para o uso aprimorado daquela anatomia que há pouco acusara de monstruosa. Num ataque de Ei-Kis, ela conseguiu agarrar e arrancar a barra de metal jogando-a quase na cabeça de Ielg, que se esquivara no instante exato para não ser atingido em cheio, e mal o fez, teve então que saltar porta adentro, pois as duas lutadoras vieram abaixo, caindo cada qual para um lado.

Glória entrou atrás de Ielg, e Ei-Kis veio logo atrás, agarrando-a pelas costas. Cada um dos cinco membros encontrou os outros, num completo jogo de forças, até que num movimento brusco Glória arremessou Ei-Kis violentamente, na direção de Ielg, que teve que se desviar deixando sua colega passar e se chocar contra a parede de metal. Então os seios de Glória ficaram a mostra, se inflaram e dispararam dois jatos de líquido incolor. Ei-Kis se desviou mas não evitou por completo um dos esguichos, que a atingiu num dos braços e que para surpresa de Ielg não era da substância paralisante, mas sim um poderoso ácido que começou a dissolver a parede imediatamente.

Curiosamente a pele de Ei-Kis era mais resistente à corrosão que o metal, mesmo assim, queimou, ficando de imediato vermelha, com bolhas, e aparentemente, com dor insuportável. Glória aproveitou a desorientação da oponente e lhe atingiu em cheio com um chute no rosto, derrubando violentamente. Ficou ainda na expectativa, observando a adversária para ver se ainda reagiria, e não percebeu Ielg se aproximando até ser tarde demais. Com um golpe fortíssimo, ele a atingiu com a barra de metal diretamente na cabeça.

Meio tonta, ela reagiu, tentando lhe acertar vários golpes, mas ele se esquivou com uma agilidade que não sabia que tinha. Saltou sobre as pernas que tentaram lhe derrubar, e se desviou dos braços que tentaram lhe agarrar, mas foi surpreendido pela cauda, que se enrolou em seu tornozelo derrubando-o ao chão. Por sorte, a Veste foi suficientemente rápida para proteger-lhe a cabeça, evitando uma provável concussão que o levaria ao desmaio, mas reabrindo logo em seguida. Glória saltou sobre ele e lhe puxou pelos cabelos, mas ele virou o rosto e fez aquilo que Ei-Kis tanto temia, cravou-lhe os dentes no braço, provocando soltura imediata.

Por ser bem maior e delgada, o corpo dela não impediu que as pernas dele se encolhessem e a empurrassem para trás, e então a cauda revelou sua vulnerabilidade. Embora tenha se apoiado para evitar a queda do corpo, o pé direito acabou pisando nela, causando desequilíbrio, no que ela se realinhou não conseguiu evitar que Ielg, após se levantar agilmente, a atingisse em cheio com a barra de metal no tórax, preocupado em principalmente forçá-la a virar de lado, saindo da linha de fogo dos seios temíveis.

Ele golpeou de novo, ela defendeu, mas a defesa lhe custou a integridade de um braço, no segundo golpe ocorreu a mesma coisa com o outro, e enfim, sem se preocupar com o porquê a veste dela não lhe protegeu automaticamente a cabeça, acertou-lhe outro golpe em cheio no rosto, pondo-a a nocaute.

A grande ironia é que aquele era o tipo de surra que ele adoraria ter dado em Ei-Kis, mas que afinal terminara servindo para defendê-la. Não soube o que fazer quando a cabeça de Glória se abriu, e o cérebro, na verdade bem menor que o crânio, saiu voando novamente. Ele não pensou em atingi-lo com a barra, já absorvera o princípio de que até se podia destruir o corpo, mas nunca atacar o cérebro, que estava prestes a escapar quando os jatos de cola de Ei-Kis o atingiram, lançando-o contra a parede. Mais dois jatos certeiros e a espuma já havia se expandido. O cérebro ainda tentou se soltar, talvez pretendendo ir atrás de outro corpo, mas ficou preso num ângulo que demoraria alguns minutos para se desvencilhar.

Embora ainda com muita dor, Ei-Kis se levantou e juntos subiram de volta à plataforma, rumo à nave.

A Fuga...

…foi frustrada no momento em que um raio atingiu a nave em cheio, pulverizando-a, antes que eles pudessem se aproximar. Não havia mais escapatória, pequeninas naves automáticas começaram a se acumular no céu. Ei-Kis o arrastou para a beira da plataforma e então pularam, rolando desfiladeiro abaixo, floresta adentro, até cair num rio.

Mas a água era rasa, e as pequenas naves vieram atrás dele. Só havia uma coisa a fazer. Ei-Kis olhou seriamente para ele. - Consegue desacoplar? Soltar seu cérebro?! - Ele nem fazia idéia de por onde começar, e balançou a cabeça negativamente. - Sem a nave, é nossa melhor chance agora. Desative a Veste. Isso! Agora tente! Se concentre em pense em sair do corpo! Sair pelo topo! - Ele tentou, sem sucesso, e surpreendentemente ela fez uma expressão compreensiva. - Tudo bem. Vou ter que te machucar. Me desculpe. - E usando a barra de mental, atingiu-lhe em cheio no peito, com a ponta, causando perfuração no coração.

A dor foi imensa, mas breve. Como já estava pensando em sair do corpo, subitamente sentiu o desligamento sensorial, como uma anestesia total, e não chegou a sentir a cabeça abrindo, apenas se sentiu flutuando, relaxado, e enxergando tudo com uma amplitude muito maior que a visão normal. As câmeras do cérebro móvel lhe davam uma percepção não apenas mais ampla, abrangendo bem mais que 180 graus, mas também luminosa, visto que a floresta que já estava bem escura, de repente lhe pareceu mais clara.

Percebeu ao seu lado o cérebro de Ei-Kis, tão livre quanto o dele, e acima as naves inimigas se aproximando, e então, sem querer saber se elas poderiam atirar contra eles ou não, dispararam floresta adentro, voando baixo, protegidos pelas árvores.

Embora pudessem voar livremente no ar, sob a água ou até no espaço, enquanto durasse sua reserva de oxigênio, a velocidade dos cérebros era limitada. Não chegava sequer a uns 60 m/s. Com isso demorariam muito mais que o previsto para chegar ao destino, mas não tiveram escolha. As naves continuavam a persegui-los embora não se atrevessem a disparar. Também não era prudente atacar as nave com seus LASERs frontais. Eles até poderiam destruir algumas, mas gastariam muita energia e se arriscariam contra um número imprevisto de inimigos.

Preferiram continuar na floresta em vôo rasante, e num dado momento, decidiram submergir num rio para tentar despistar as naves. Navegar por baixo d’água era uma sensação bem diferente da de voar livremente, mas também agradável, embora mais misteriosa e por vezes mais assustadora. Tal como a Veste, o cérebro móvel podia destilar oxigênio da água, bem como de composições atmosféricas inóspitas, acumulando-o em pequenos reservatórios, e em situações onde isso não pudesse ser feito, como num vácuo prolongado, era equipado com um sistema de congelamento capaz de preservá-lo por anos se fosse preciso. Não era o caso, mas num dado momento um peixe enorme simplesmente engoliu Ielg, que se assustou, mas a voz de Ei-Kis, soando um tanto etérea em sua mente, logo tratou de acalmá-lo e lhe dar as instruções.

Com um simples comando mental ele gerou uma descarga elétrica que paralisou o peixe, e então começou a se mover dentro de seu estômago procurando a saída. Não conseguia encontrar, as condições de visualização estavam péssimas, então Ei-Kis lhe sugeriu que abrisse caminho à força, e com alguma dificuldade ele conseguiu ativar o LASER, e cortou a saída pelo corpo a fora do animal.

- ”Ela vai sobreviver.” - Disse-lhe Ei-Kis, falando-lhe como se fosse por telepatia. Ielg duvidou que o animal se recuperasse de tamanho corte no estômago, mas tinha mais com o que se preocupar.

- ”Para onde estamos indo afinal?”

- ”Para uma reunião de emergência com os extraterrestres. Pensamos que haviam sido eles que nos atacaram, mas não foram.”

- ”Eles se apresentaram como uma tal de Quinta Formação.”

- ”Aahh... Mas não pode ser. A Quinta Formação era um comando revolucionário, mas com o tempo, seu nome foi sendo usado por diversos impostores. Acho que hoje o movimento original não existe mais. Qualquer comando radical pode usar esse título. Quantas pessoas você viu?”

- ”Na verdade... Só a Glória, aquela. Mas na simulação havia também o Dr Ítalo Marino e 7 outras pessoas, mas sinceramente... Elas sequer pareciam reais.”

- ”Talvez não fossem. Só sei que o Dr. Ítalo é real. E ele também nunca saiu do planeta.”

- ”E quem eram eles afinal?”

- ”Não sei. Podem ser os Inexistencialistas.”

- ”Inexistencialistas??? Uau…”

- ”Mas é melhor não pensarmos muito nisso agora. Quando estamos fora do corpo, nossos pensamentos tentem a aumentar e assumir proporções fantasiosas. Acalme-se. Tente descansar. Se relaxar poderá dormir, nosso destino já está traçado. Podemos ir no automático.”

- ”Tudo bem.”

- ”Qualquer coisa, eu acordo você.”

- ”Ok. E… Ei-Kis?”

- ”Sim?”

- ”Obrigado.”

- ”Obrigada você também.”

- “Hora de Acordar...”

Nosso transporte chegou.” - Sussurou Ei-Kis, tão suavemente que Ielg se surpreendeu que tenha despertado tão prontamente. Não precisou pensar muito para descobrir que adormecer e despertar apenas com o cérebro, sem o corpo para atrapalhar, era muito mais rápido e fácil. Tivera sonhos intensos, embora sem significado, e quando olhou para cima, já percebendo que na verdade podia ter uma visão de 360 graus em todos os sentidos, o que dava um tom surreal à realidade, percebeu uma grande aeronave se aproximando.

Já era noite escura e estrelada, e os dois cérebros voadores subiram e entraram na nave, que logo em seguida disparou para as alturas não demorando a atingir uma velocidade ao menos 30 vezes superior à que vinham desenvolvendo. Então, se deixaram levar por uma atração quase irresistível e entraram em novos corpos, já prévia e devidamente preparados.

Ielg demorou um pouco para se readaptar. Notara que esse corpo era menor, mais parecido com o seu original, como ele antes pedira. Quase se arrependeu. Já havia se acostumado àquele novo corpo, mas esse tinha a vantagem de ter tatuagens ligeiramente mais nítidas e maiores, embora sua filha parecesse mais velha. Pensou se não era de fato o seu corpo antigo, completamente restaurado. Talvez não fosse necessário construir um completamente novo, bastando consertar o antigo. Pensar nisso lhe deu um instante de satisfação e familiaridade, mas não teve coragem de perguntar. Tinha coisas mais importantes com que se preocupar.

- Preciso fazer uma declaração ao SISTEMA! Disse a Ei-Kis, que parecia totalmente familiarizada com o novo corpo, e era a única outra passageira, visto ser a nave automática. - Não é tão simples. - Esperemos chegar à reunião primeiro, falta pouco. - Onde é? Vai ser por telepresença? - Não. Vai ser totalmente presencial, como são todas as reuniões de alta importância.

Ielg então se lembrou que a telepresença era regra para conferências normais, mas que qualquer evento de maior importância, pelas regras sociais, exigia presença real. Tentava lembrar onde havia lido isso quando então a nave entrou na descendente, e ele se dirigiu a frente, próximo a proa, e viu para onde rumavam.

Era uma cidade. Fabulosa! Com prédios altíssimos, tanto que parecia flutuar nas nuvens. O dia já amanhecia, mas não porque houvesse passado muito tempo, e sim porque a nave cruzara em minutos uma distância espetacular. Apesar do tênue Sol no horizonte, as nuvens pareciam irradiar luminosidade de um modo deslumbrante, emprestando colorações amareladas a prédios prateados.

Diminuindo a velocidade e pairando sobre os edifícios, ele pode notar que a cidade não parecia muito movimentada. Havia poucas pessoas, indistinguíveis, sobre alguns terraços e plataformas, e ainda menos aeronaves, embora bem impressionantes. Se lembrou que a quase totalidade das pessoas do planeta vivia isolada em suas propriedades particulares, verdadeiros feudos, embora cada qual com pouquíssimos habitantes. Na verdade, em geral dois, 3 ou 4. A cidade tinha uma população que não deveria ter muito mais que alguns milhares de habitantes, no entanto, costumava receber visitas, especialmente em reuniões importantes.

A nave pousou numa plataforma, que se recolheu para um hangar, e assim que a porta se abriu Ielg foi imediatamente agarrado com tanta força por Dir-Zá, que quase gritou de susto. Ela o levantou nos braços e o apertou de um modo que, mesmo acostumado com suas carícias, o surpreendeu. Na verdade, não se lembrava de já ter sido abraçado assim na vida. Sem soltá-lo de um dos braços, ela estendeu o outro e puxou Ei-Kis, e ficaram um tempo naquele estranho carinho, roçando as testas uma na outra, enquanto ainda acariciava a cabeça da companheira com os dedos, num autêntico descarrego emocional.

Depois se acalmou, parecendo constrangida, e então puxou cada um por uma mão, subindo uma rampa que subitamente, se moveu. Continuavam caminhando como se nem se dessem conta de sua elevação cada vez mais rápida, até que adentraram uma ampla sala circular, repleta de pessoas, e a rampa foi parando suavemente, até compor parte do chão do ambiente, se integrando de forma perfeitamente harmônica a um piso que parecia ser feito do mais rígido mármore.

Ielg não poderia ficar mais surpreso. A sala tinha não apenas as tetrahumanas grandes e típicas, com seus diversos biótipos, algumas com asas, outras que pareciam ter nadadeiras. Mas havia também daqueles tipos menores que ele havia visto em sua primeira e desagradável saída dos domínios do clã Zá-Kis, bem como outros tipos que ele só havia visto por imagens nos arquivos do SISTEMA, bem como alguns que sequer já tinha visto.

Mas o mais impressionante não era isso, e sim as pessoas como ele, que estavam lá. Algumas eram altas e calvas, mas perfeitamente compatíveis com as pessoas de sua geração, outras tinham cabelos e um até tinha uma espessa barba. Este, de sua mesma estatura, foi o primeiro a se aproximar dele e se curvar como um oriental, se apresentando e dizendo naquele idioma mais comum. – É um prazer conhecer um homem da Primeira Formação.

- Na verdade... - Disse uma mulher que se aproximou pelo outro lado. - ... o mais antigo membro da humanidade. - E polidamente também o cumprimentou, ao mesmo estilo, embora com as mãos juntas, como uma budista. Curiosamente, um rapaz alto de traços tipicamente orientais foi justamente o que dispensou o estilo dos companheiros e lhe deu um vigoroso aperto de mão. - Seja bem vindo Ielg. - E se apresentou como alguém da Terceira Formação.

Diversas outras saudações vieram, quase todas muito amistosas, e não demorou a se sentir uma celebridade, e apesar do clima quase festivo, uma tetrahumana alta, incrivelmente branca e pouco antropomórfica declarou que estavam ali para tentar achar uma solução para uma gravíssima crise, do tipo que há muito não ocorria. Uma série de maus entendidos quase levaram a uma desavença séria entre os Terráqueos e os Extraterrenos, que na verdade eram também descendentes de terrestres, e que em geral haviam conservado a aparência mais antiga. Os Terráqueos, o que significava na maior parte dos casos, as Tetrahumanas, pensaram que estavam sendo vítimas de comportamentos injustificáveis por parte dos extraterrenos, mas estes acabaram demonstrando não terem sido os responsáveis. Ficara evidente que os graves ataques a naves do clã Zá-Kis foram promovidos por um grupo terráqueo, se fazendo passar por outros clãs que por sua vez aparentavam ser sido manipulados pelos extraterrenos.

Em resumo, artifícios telecomunicativos ardilosos, comparáveis aos antigos vírus digitais, haviam se infiltrado em redes extraterrenas para, por meio delas, manipular redes terrenas, criando um singular despiste para uma operação que, afinal, tivera origem no próprio planeta. Os responsáveis, o que incluía o Dr. Ítalo Marino, que realmente fora um cientista, embora da virada da Segunda para a Terceira formação, e realmente havia sido descongelado há cerca de 300 anos, estavam sendo considerados como antigos membros de grupos ideológicos que de fato pregavam o advento de uma Quinta Formação aos moldes típicos da primeira, mas que no entanto haviam enveredado por uma outra trilha ideológica muitíssimo mais preocupante, denominada INEXISTENCIALISMO. Uma doutrina que propunha o abandono da existência como solução final para toda e qualquer forma de sofrimento, desprezando qualquer tipo de prazer ou felicidade como meras ilusões nocivas que apenas aprisionavam ainda mais as pessoas nas armadilhas de uma agonia existencial infindável.

Ao que tudo indicava, estavam há muito tempo operando de forma discreta, promovendo no máximo debates e palestras, mas também procurando obter meios para produção de armas de destruição maciça, capazes de eliminar de uma só vez aquilo que chamavam de Agonia da Existência, que se aplicava não só aos humanos, mas a todos os seres vivos e até a toda forma de matéria. Em suma, os inexistencialistas pregavam a aniquilação de toda a realidade, o retorno ao Não-Ser original, de onde jamais deveríamos ter saído.

Foi ao ouvir isso que, apesar de estar muito curioso para saber mais, Ielg se manifestou para explicar a situação, e diferente de que acontecera antes, dessa fez foi atentamente ouvido, com um respeito que logo lhe fez esquecer o quanto estava temeroso em falar e ser ignorado.

- Sendo assim, então agora entendo o que pretendiam. Em primeiro lugar o Inversor Gravitacional, com o qual podem aniquilar todo o planeta, e para isso precisavam convencer o SISTEMA de que eu havia redescoberto a solução da Equação Gravitônica. Por isso eu preciso declarar ao SISTEMA, o mais rápido possível, que não fiz isso, e que qualquer um que tenha obtido a solução o fez por meio de acesso indevido a conteúdos restritos, e não por capacidade própria.

- Infelizmente é tarde demais para isso. - Anunciou uma mulher extraterrestre que, embora não tetrahumana, era tão exótica que dificilmente passaria desapercebida no século XXI. - Os Inexistencialistas produziram um clone seu há poucas horas atrás, e com algumas outras estratégias, já conseguiram convencer o SISTEMA da validade de sua redescoberta da equação gravitônica. É provável que a fraude seja detectada, mas não podemos prever quanto tempo eles ganharão até que isso aconteça.

- Enquanto isso. - Interveio um extraterrestre, que no entanto tinha uma aparência mais próxima das tetrahumanas. - Eles já parecem ter utilizado algumas técnicas anti gravitacionais, visto que deslocaram vários equipamentos pelo planeta com gastos mínimos de energia, sugerindo sistemas de levitação. Tememos que já tenham instalado protótipos de Inversores Gravitacionais e agora estejam tentando ativá-los. Já os estamos procurando, mas eles possuem a vantagem de ter sistemas de despistamento muito sofisticados, que operando no campo gravitacional, estão enganando nossos sensores. Não temos previsão de localizá-los.

- Nesse caso então só há uma coisa a fazer. - Disse Ielg e deixou pairar um breve suspense. -Ativar o quanto antes o Sistema GRADIVIND!

Quando todos subitamente olharam para ele, a maioria com expressão de espanto, ele pensou apenas que não havia sido entendido. E repetiu.

- GRADIVIND!

Mas a reação foi a ainda mais assombrada e reprobatória, deixando-o por um instante completamente desnorteado, como se tivesse xingado todo mundo em voz alta. Então Dir-Zá, visivelmente constrangida, se abaixou a falou-lhe em tom de severa preocupação.

- Não diga essa palavra.

O Inexistencialismo...

…podia ter gerado uma série de condutas problemáticas e questionáveis, ainda que ele, com toda sinceridade, fosse capaz de entender que o sofrimento podia levar alguém a pensar daquela forma, e até, por piedade, simpatizar. Mas os seus membros, ao menos o que conheceu, tinham razão num ponto. As Tetrahumanas, extraterrestres inclusos, tinham mesmo problemas culturais sérios. E ali estava um deles.

- Nunca deve pronunciar esse nome. - Disse Ei-Kis num tom de severidade quase hostil, do qual Ielg já estava quase sentido falta, mas que logo em seguida se tornou mais ameno. - É considerado um desrespeito.

- Mas... - Completamente embasbacado, Ielg tentava se recompor. - O Sistema GRA... É a única coisa que pode nos salvar!

- O SISTEMA nada poderá fazer agora! - Pronunciou uma tetrahumana que Ielg já conhecia de tele conferências anteriores. - Nossa única chance é localizar os Inexistencialistas e destruir seus recursos!

- Não é O SISTEMA! É o Sistema GR… É o ... Droga!!! Como posso me expressar então?!

- Do que você está falando? - Várias pessoas perguntaram quase em uníssono.

- Do Sistema capaz de controlar a forças gravitacionais, e todas as forças fundamentais. O sistema que trouxe esse planeta até aqui! Que impediu a destruição total no final de Terceira Formação! - Por mais que falasse Ielg parecia não ser entendido, e começou a se sentir como um idiota, como se nada que dissesse fizesse sentido. Seria outra mentira do Dr. Ítalo?

- Não existe tal sistema. - Disse uma graciosa tetrahumana, num tom quase maternal. E completou. - Essas maravilhas a que você se refere são obra da única divindade que poderia nos salvar nesse momento, e você não deveria desrespeitá-la.

- O quê?! - Olhou para Dir-Zá, indignado, e implorando explicações. - Que divindade?! Quem poderia nos salvar?!

- A Deusa da Gravidade. - Respondeu Dir-Zá. E ante o insistente espanto de Ielg, fez um gracioso gesto que fez surgir uma imagem tridimensional, e Ielg reconheceu de imediato. Era aquela estranha criatura feminina, aquela “mulher”, ao mesmo tempo perturbadora e fascinante, que ele já vira algumas vezes, desde se primeiro dia naquele mundo.

- A Deusa... Da Gravidade? - Pronunciou em voz baixa, quase num sussurro, hipnotizado pela imagem daquela entidade que de certa forma, quase não parecia sequer uma tetrahumana, era algo diferente, indefinível. Tal como a mais refinada beleza, ou o mais temível semblante. Algo impossível de descrever.

- Devemos começar as orações imediatamente! - Disse uma tetrahumana.

- Mas não sabemos a oração! Está perdida! - Interrompeu um homem, como Ielg, mas que não era um extraterrestre, fazendo parte dos poucos humanos ao feitio das formações antigas que residia permanentemente no planeta.

- Temos que tentar! - Respondeu a tetrahumana graciosamente maternal. - Tentemos todas as combinações de mantrans e sutras que conhecemos! As possibilidades são grandes, mas temos que tentar! Talvez tenhamos sorte e Ela se apiede de nós.

- Já há milhares de pessoas tentando. - Disse o homem oriental que cumprimentara ielg. - Mas nossas chances são poucas. Sem a oração correta, Ela não vai nos ouvir. Seremos punidos pela negligência de ter perdido as sutras sagradas.

- Estamos por conta própria. Oremos para que a Deusa da Gravidade nos perdoe. - Disse outra tetrahumana. - Espero que a ofensa aqui proferida não tenha piorado às coisas.

Embora estivesse numa espécie de transe, observando atentamente a imagem perturbadora da Deusa da Gravidade, Ielg prestara atenção no que estava sendo dito, e quanto Dir-Zá desativou a imagem, deixando-o por um momento desorientado, ele levou as mãos à cabeça e começou a praguejar, baixinho, em termos que ninguém entenderia. Estariam corretos os Inexistencialistas? A Quarta Formação teria degenerado para tal forma de idolatria? Ele gostaria de ter mais tempo para repensar suas idéias. - Mas o que será que está acontecendo aqui. Que estória é essa de Deusa!? Eu pensei que não havia mais misticismo, superstição, religião ou seja lá o que for!

- Não Ielg. - Disse Dir-Zá. - Você que parece confuso. A Deusa da Gravidade é totalmente real. Pensei que você soubesse, visto que se atreveu a pronunciar o nome dela.

- Eu pronunciei o... - Então Ielg se deteve, e apenas para Dir-Zá fez os movimentos labiais correspondentes a “GRADIVIND”. Mesmo assim, sua protetora ainda arregalou o olhos, mas depois se acalmou, e confirmou. - Sim! É o nome dela! Que nunca deve ser pronunciado em vão!

Ielg parou para refletir e se acalmou. Estava sendo por demais impaciente, não tinha o direito de julgar aqueles seres e sua cultura tão distante do antigo século XXI. Ademais, tinha que ser razoável. Era evidente agora que o Sistema GRADIVIND, com seus poderes quase divinos, e a tal Deusa da Gravidade eram a mesma coisa. Representada por aquela imagem pitoresca da “mulher” misteriosa, cuja genialidade da ilustração parecia mesmo uma obra divina. E então, decidiu partir para outra abordagem.

- A Deusa da Gravidade deve ser uma função do SISTEMA! Ele não tem o código de acesso? Quero dizer, a Oração de Ativação?!

Para sua surpresa, foi olhado de modo bem menos incômodo que antes, e Dir-Zá lhe explicou. - Não. A oração não está disponível no SISTEMA, e nem em nenhum outro sistema de informação. É uma regra inflexível do SISTEMA que a oração de invocação da Divindade Gravitacional só pode ser registrada em dispositivos isolados, não conectáveis por redes. Pode estar gravada em pedra, em papel, ou num holograma cristalino. Mas nunca num dispositivo eletromagnético!

- Podemos registrar tudo sobre ela. - Disse o homem de barba, próximo de Ielg, fazendo surgir então outra imagem da Deusa da Gravidade, e sob os pés dela, uma série de inscrições. - Tudo menos o seu nome, e a oração de invocação. - E então, sob os pés da divindade de manto negro, foram subindo miríades de informações, algumas das quais ele já conseguia ler, até que ao final, num vermelho radiante, vinha o que deveria ser um verso, que o homem de barba apontou como sendo a tal oração, no entanto, ela estava borrada, variando, impossível de ler.

E finalmente ele reconheceu aquela imagem, e aquele registro. - Mas eu já vi isso antes!

- É compreensível. - Disse a tetrahumana que Ielg já conhecia. - É uma imagem comum. Eu mesma tenho várias em minha casa.

- Não! Estou falando dessa mesmíssima imagem e desses mesmíssimos textos, só que com uma diferença. O verso em vermelho era perfeitamente legível! Embora na época eu não soubesse ler.

A reação foi imediata. Todos ficaram atentos, esperançosos. Na expectativa. Até que enfim, alguém perguntou. - Onde?! Onde você viu a oração?!

Ele fez um breve suspense. - Em Laputa. - E sabendo que não havia sido entendido...

- Na Cidade Flutuante do Vale.

Fim da Parte - 4



Marcus Valerio XR
Janeiro de 2011
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