O GRITO

Banshee's Howl*

Marcus Valerio XR

*(Infelizmente não existe em português um termo que capture a idéia que eu gostaria de passar neste título, que é melhor expresso nos termos em inglês. Uma Banshee é uma aterrorizante criatura mitológica celta, de aparência em geral feminina, que emite uivos assustadores que anunciam grandes desgraças. Howl é "uivo", "grito" ou similares, tendo frequentemente uma conotação sombria. Assim, Banshee's Howl seria um grito aterrorizante que anuncia acontecimentos terríveis.)

BRASIL - Região Sudeste

Ninguém se lembrava qual fora a última vez em que aquela nem tão pequena e nem tão pacata cidade aparecera nos noticiários nacionais, mas ninguém se esqueceu de quando ela aparecera pela primeira vez, e em definitivo, nos noticiários mundiais.

Fôra uma noite comum, de clima quente e alguns ventos ocasionais que prenunciavam chuva. Fôra em um bairro na periferia, de classe média baixa, ao lado do grande Parque Florestal onde muitas pessoas costumavam passar a noite ao redor de pequenas fogueiras.

Pouco havia passado das 23:00 e muitos já dormiam, em geral os que trabalhariam cedo no dia seguinte. Outros poucos ainda perambulavam pela rua, em geral conversando com vizinhos, e alguns cães ainda latiam inocentemente contra coisas que não mereciam a menor atenção.

Mal havia pegado no sono, o senhor Pedro praticamente pulou da cama num movimento brusco que teria assustado sua esposa se ela já não estivesse paralisada, caída ao chão, e só não se desfazendo em lágrimas, ainda, porque não havia tido tempo de se recuperar do choque.

Deus do céu! O que poderia ter sido aquilo?! Ele estava completamente arrepiado. Aterrorizado de uma forma que nunca sentira antes, e tudo apenas por ter ouvido um som. Claro que não fôra um som qualquer.

O senhor Pedro ficou famoso por ter sido um dos que melhor descreveu as cenas que presenciou em seguida, conseguindo se lembrar de mais detalhes que a média, mesmo que tais lembranças sejam dolorosas e ainda hoje lhe congelem a alma. Após deixar mãe e filhos abraçados, ainda em estado de pânico, correu para fora de casa na tentativa desesperada de saber o que ocorria, enfrentando o medo esmagador do que poderia encontrar.

Mas tudo que viu rua afora foi o silêncio total. As poucas pessoas na rua ainda estavam paralisadas, tremendo, e uma, mais próxima do parquinho ao fim da rua, jazia desacordada enquanto outra ainda estava de joelhos, prostrada, de mãos nos ouvidos.

Com uma coragem e curiosidade que nem mesmo ele sabia que tinha, avançou rua afora, como se suas pernas, apesar de tão trêmulas e gélidas quanto o resto do corpo, não estivessem em sintonia com todo o seu ser que só tinha vontade de se encolher no colo de sua falecida mãe.

Muitas casas tinham janelas ou portas abertas, e era possível ver os vizinhos, mas quase todos estavam no mesmo estado de sua família. Demorou para perceber que os cães estavam completamente mudos, encolhidos, e os gatos estavam total e completamente arrepiados, em posição defensiva, e assim permaneceram por um tempo anormal, olhando na direção do Parque Florestal, de onde parecia ter vindo o indescritível som.

Não teve coragem de ir adiante. Se juntou com uns poucos vizinhos, tão horrorizados quanto ele, que mal conseguiam perguntar o que fôra aquilo. Olhando em temerosa expectativa na direção de um pequeno foco de luz, uma pequenina fogueira onde alguns jovens estiveram reunidos para namorar, beber e tocar violão.

Por não ter tido coragem de entrar no Parque Florestal, só no raiar do dia, após um sono impossível, e acompanhados da polícia, constataram que todos os 5 fogueiristas estavam mortos.

Quase metade da cidade ouvira o som, ou melhor, o 'Grito', como logo passou a ser chamado. Mas somente o bairro do senhor Pedro estava realmente próximo ao presumido local onde o som ocorrera, bem adentro do Parque Florestal. Os jovens mortos ao redor da fogueira não foram as únicas vítimas fatais. Outras 4 morreram em suas próprias casas, além daquela outra que desmaiara após o evento, no parquinho próximo à entrada do Parque Florestal, e depois tivera uma crise de nervos. Ainda uma outra tivera um ataque cardíaco logo após o Grito, embora estivesse bem mais longe que os demais. Esta última era idosa, assim como as demais que morreram em suas casas, de problemas que poderiam ser associados a reação ao Grito e a problemas de hipertensão ou cardiopatia.

Quanto aos jovens, seus corpos pareciam intactos, apesar da expressão de absoluto horror de suas faces. O legistas não chegaram a conclusão alguma, se limitando a dizer que morreram de um choque nervoso indefinido. Um palpite muito mais baseado nas circunstâncias.

Milhares de pessoas ouviram nitidamente o som, e não se falou em outra coisa nos dias seguintes, o que deixou a outra metade da população da cidade se considerando infortunada por não ter ouvido algo tão intrigante. Enganavam-se, claro. Eram de fato abençoadas por terem sido poupadas daquele curto inferno psicológico.

Poucos descreveram o som tão bem quanto o senhor Pedro, sendo capaz de emular ao menos o tempo e a cadência em que se deu, embora, é claro, não tivesse a mínima possibilidade de reproduzir um milionésimo de seu impacto, e mesmo que tivesse, se recusaria a fazê-lo. As tentativas dos jornais de descrevê-lo em forma de onomatopéia chegavam a ser engraçadas, tendo sido criadas diversas versões que disputavam preferências. Todas completamente impronunciáveis. Um desenho com gráfico em forma de onda acabou se popularizando.

Pesquisadores e especialistas de todo o continente vieram pesquisar o estranhíssimo e inexplicável fenômeno, e a cidade então ficou famosa. Não demorou ao assunto se tornar até mesmo irônico, inclusive entre alguns dos moradores que não haviam tido o azar de ouvir o Grito.

Mas os que ouviram, jamais conseguiram achar a menor graça em tudo que se falava a respeito, e tudo que desejavam era esquecer a experiência.

Menos de duas semanas depois o assunto ainda não havia esfriado, e então esquentaria ainda mais, quando o mesmo fenômeno ocorreu numa base militar a algumas dezenas de kms da cidade. E dessa vez, o que teve de mais preciso e bem conhecido, o evento também teve de mais perturbador.

Ocorrera desta vez na madrugada, causando a morte instantânea de 15 soldados, a maioria que perambulavam no pátio, realizando o pernoite. Mais uma vez uma ordem de intensidade podia ser notada pelo modo como as 5 divisões foram diferentemente atingidas. O prédio mais próximo ao suposto local do 'Grito' fora o local onde 5 fatalidades foram registradas. Os prédios laterais ao pátio central, equidistantes, tiveram uma morte cada, e os demais ficaram restritos ao terror enregelante que enviou muitos soldados à enfermaria e chegou até a provocar a reforma de alguns deles, por absoluta incapacitação nervosa.

Embora o som não tenha sido gravado, dessa vez houve imagens espantosas das câmeras de vigilância, que flagraram o momento exato onde os soldados simplesmente caíram ao chão após levar às mãos aos ouvidos, em desespero. Também foi registrada uma ligeira e estranha luminosidade, porém inconclusiva, que poderia ter resultado das lanternas que foram derrubadas durante o episódio.

As descrições do som, mais uma vez, era impraticáveis e confusas. Mas todos já concordavam que se tratava de um crescendo que ia aumentando de intensidade, frequência e volume, atingindo o pico após cerca de 7 segundos do início, reverberando por mais algum tempo até esvanecer. Já nesta época descobriu-se a duração do som, 13 segundos, embora isso tenha sido mais por motivos supersticiosos.

O país inteiro se mobilizou. Um evento de tal magnitude não poderia ser mais encarado como um fato isolado. Considerou-se seriamente uma ofensiva militar contra a nação, utilizando um novo e estupendo tipo de arma sônica, embora muitos ainda preferissem atribuir o fenômeno à ordem sobrenatural.

Devido a tensão típica de um ano eleitoral e a hostilidade entre ideologias que disputavam o jogo democrático, aventou-se até mesmo a tese de ser um primeiro passo para a tomada de poder no país por parte de algum segmento político radical.

Mas qualquer pessoa que tivesse de fato ouvido o som, o que incluía o Tenente-Coronel Matheus, ficava irrevogavelmente tentado a considerá-lo como algo impossível de ser resultado do engenho humano. Como ele dissera, a sensação de terror demoníaco e completamente sinistro que o Grito provocava deixava qualquer um em estado de rendição ao sobrenatural, pedindo amparo a Deus.

Agora o mundo inteiro se voltava para aquela região, e cientistas tentavam de toda forma teorizar sobre o fenômeno. Um dispositivo sônico, um fenômeno único de compressão atmosférica, algum tipo desconhecido de animal e até passagem de meteoros foram considerados, sem chegar a qualquer explicação minimamente convincente.

O assunto já estava suficientemente quente quando então entrou em ebulição definitiva, assim que ocorreu a terceira manifestação do Grito.

Desta vez, a tese de um ataque terrorista fora enfraquecida, uma vez que já teria sido testada e em seguida efetivamente usada contra um alvo militar, não faria sentido que fosse lançada numa distante e obscura fazenda situada 180km dos locais das duas ocorrências originais, em curiosa equidistância.

Somente uma vítima fatal, que nunca fora identificada possivelmente por ser um eremita local sem qualquer documento, e embora tenham ficado, como sempre, profundamente apavoradas, somente 10 outras pessoas de fato ouviram o som, apesar de uma mulher ter chamado atenção por se recusar agressivamente a assumir que o ouviu, embora entrasse em desespero ao tocar no assunto. Também houve um estouro de boiada que resultou em enorme prejuízo. Mas nada disso é relevante considerando que pela primeira vez ocorrera uma gravação, ainda que precária, do Grito.

A estudante de agronomia Silvana Meira estava num chat on-line, de câmera ligada, na varanda do sobrado da fazenda dos pais. Era fim de semana e, mais uma vez, madrugada. Ela estava no meio de uma fala quando emudeceu, ao vivo, e sua expressão demonstrou um pavor tão impressionante que nem mesmo as típicas inconsequências do meio internético conseguiram ridicularizar o fato. Com isso, foi possível obter uma versão bastante emprobecida do som, numa qualidade de cerca de 48 kbps e ainda baixa e distante, devido à fonte do fenômeno estar, estimava-se, uns 2 kms adentro na mata. Também houve o prejuízo de uma ligeira interferência eletromagnética, que afetou a conexão.

Embora houvesse sons ambientes concorrendo, a maioria de animais, todos silenciaram com menos de 3 segundos do início do som, que de fato correspondia às descrições prévias, ainda mais com a descrição original do senhor Pedro. Embora a gravação não pudesse reproduzir nem de longe o horror que o Grito original causava, não havia quem discordasse que se tratava de um som incrivelmente sinistro, que logo passou a ser estudado e reproduzido por técnicos em todo o mundo.

Foi o músico japonês Yoshima que, utilizando um arranjador digital, conseguiu a reprodução mais famosa do fenômeno. Nem tanto pela fidelidade, mas por ter sido uma versão que utilizava frequências, inclusive inaudíveis, que mais causavam reações adversas nos ouvintes. Todos que o ouviam se impressionavam, e o som fez tanto sucesso que logo estava presente em músicas, jogos e era constantemente usado em pegadinhas.

Mas embora ouvir a versão de Yoshima pudesse ser arrepiante em situações mais contextualizadas, como repentinamente numa noite quieta, os poucos que de fato haviam sido vítimas não fatais do Grito e ouviram a versão sintetizada afirmavam com total ênfase que aquilo nem de longe conseguia passar o terror que fôra ser submetido ao som original.

Cerca de um mês após o último fenômeno, diversas pesquisas estavam em andamento. Convenções internacionais proibiram terminantemente qualquer iniciativa de tentar reproduzir o som para fins militares, colocando as pesquisas sobre o mesmo no nível de segurança relacionada ao desenvolvimento de armas de destruição em massa.

Foi então criado o Projeto Banshee's Howl, que seguia investigando o fenômeno por meio de uma união internacional de cientistas. O principal objetivo era ser capaz de entender, prever e oferecer alternativas de proteção à população.

Embora a origem e natureza do fenômeno continuasse um completo mistério, teorizava-se com muita propriedade sobre o modo com que afetava o sistema nervoso humano. As pesquisas indicavam que o som vibrava num tipo muito específico de frequência que estimulava estruturas nervosas encefálicas, reverberando diretamente na caixa craniana e produzindo uma vibração que induzia uma sobrecarga elétrica em todo o corpo. Não se tratava de um fenômeno psicológico, e sim neurofísico, contra o qual era inútil, inclusive, proteger os ouvidos, pois podia atravessar carne, ossos e outras estruturas mais rígidas, dependendo do volume, transmitindo-se direto para o interior da cabeça.

Embora continuasse impossível reproduzir o som em laboratório, os cientistas já estavam desenvolvendo um tipo de estrutura protetora, que esperava-se ser capaz de isolar o som, podendo ser moldada na forma de capacetes ou mesmo paredes. A pesquisa continuou inabalada, e o fenômeno, cujos 3 exemplares haviam se dado em menos de duas semanas há 3 meses, aos poucos começou a deixar de ser um dos principais assuntos nos noticiários.

Mas o que não havia acometido os noticiários durante esse tempo, foi compensado pelo quarto e ainda mais devastador evento de O Grito.

Uma coincidência macabra fez com que o número de mortos no quarto evento fosse exatamente igual ao total dos eventos anteriores. E desta vez ocorrera a cerca de 170 km do evento primeiro, em direção oposta à da fazenda. Nesta outra cidade, mais desenvolvida, havia um centro de consultórios médicos, advocatícios e de departamentos em geral, formado por 3 prédios de 4 andares dispostos em forma de 'U'. Ao centro, num belo pátio arborizado, funcionários e visitantes começavam a deixar o local em grande número, já passando das 19:00 de uma noite muito nublada.

O segurança Apolinário Leal foi o primeiro a notar um redemoinho que se formava ao alto, entre os prédios, com força suficiente para arrancar folhas das árvores levando-as a uma dança aérea esteticamente atraente. O vento se intensificou e mais pessoas passaram a sentir a súbita elevação do uivo típico de certas ventanias bem como da violência com que o ambiente começava a ser agitado. Tudo se dera num intervalo de tempo muito rápido, mas o suficiente para atrair um grupo considerável ao pátio central.

O dono da mais apreciada cantina local saiu para observar o que acontecia, e era, por sinal, um dos mais entusiasmados no assunto que ainda repercutia no noticiários, tendo inclusive visitado a cidade vizinha para conversar com os que testemunharam o fenômeno. Nunca saberemos se isso explica o fato de ter sido o único a se dar conta do que acontecia, pois ao observar atentamente o crescente redemoinho, avisou a todos: "É O GRITO!!!"

O pânico se instaurou de imediato, e todos pretendiam fazer a coisa mais sensata, fugir. Mas o tempo foi curto. Após uma estranha luminância oscilar no centro do vendaval, o som mortífero se manifestou.

A maioria das pessoas morreu na hora, outras nos momentos seguintes, sendo que a última chegou a ser levada ao hospital, em estado de choque, não sobrevivendo a um derrame cerebral cerca de uma hora depois.

Curiosamente, das pessoas que estiveram praticamente no epicentro do fenômeno, o senhor Apolinário sobreviveu. Não sem sequelas, pois sofreu o resto da vida de perda auditiva e ocasionais e incontroláveis tremores, mas não foi afetado em seus juízos, tendo descrito o evento com cuidado.

Também passou a ser conhecido o que antes era apenas suposto, que uma audição normal não era necessária para ser vítima do Grito. Dentre as vítimas fatais havia um surdo-mudo de nascença, e um outro entre os sobreviventes descreveu a sensação como se uma vibração tomasse conta de todo o seu corpo antes de derrubá-lo. Não foi possível chegar a uma conclusão segura do quanto foi afetado em relação aos demais, mas não parecia haver diferença.

As câmeras, desta fez, fizeram imagens melhores, inclusive com som, e finalmente o Grito foi gravado num nível de qualidade capaz de garantir uma reprodução minimamente fiel, ainda que esta também tenha recebido diversos tratamentos de engenheiros de áudio.

O resultado final foi um som de 13 segundos, amplamente divulgado em todo o mundo, que era na verdade bem menos impressionante que a versão do músico japonês Yoshima, porém, diziam os sobreviventes, inequivocamente mais fiel, embora ainda fosse claro que não conseguia repassar o horror original do fenômeno.

Isso era entendido pelos cientistas. Além de possuir um volume elevado, o som original parecia capaz de produzir vibrações numa intensidade muito mais invasiva, impossível de se reproduzir em aparelhos de som comuns. Ademais, pairavam suspeitas que já nessa época os cientistas haviam conseguido reproduzir o Grito em laboratório, mas as convenções mundiais proibiram terminantemente tal divulgação, temendo que arquivos de áudio vazassem e fossem espalhados pela internet, podendo ser usados para os mais imprevisíveis fins.

Após tal evento, aquela região começou a sofrer nítido êxodo, e em poucas semanas todos os que tiveram condições emigraram em definitivo, ou ao menos reduziam o máximo possível sua permanência, o que teve consequências drásticas para a economia local.

Diversos artefatos pretensamente eficientes para proteção contra o Grito estavam sendo vendidos, e alguns de fato até incorporavam tecnologias semelhantes a que vinha sendo desenvolvida no Projeto Banshee's Howl, mas o primeiro teste efetivo logo mostrou que não eram de fato eficientes, pois a mais de 300km dali, próxima a uma das maiores cidades do país, ocorreu o quinto e talvez até hoje mais peculiar episódio do Grito.

Houve apenas duas mortes, e não causadas diretamente pelo fenômeno. O que tornou esta ocasião singular foram as características completamente distintas em que aconteceram não um, mas ao menos 4 gritos consecutivos, embora menos intensos que os anteriores.

Pela primeira o fenômeno se dava à luz do dia, por volta das 17:20, e ocorrera em região praieira. As primeiras testemunhas foram um grupo de jovens que estava a beira mar observando o nascer da Lua crescente, quase cheia. Haviam desenvolvido o hábito de sair de dia, visto que a maioria das pessoas evitava sair em campo aberto à noite. Reconheceram de imediato a ameaça, que parecera vir de grande altitude, acima do oceano atlântico em frente ao local onde estavam.

Embora a intensidade não tenha sido letal, o pânico se instaurou de tal forma que debandaram apavorados, e quando, menos de um minuto depois, outro Grito aconteceu, provavelmente no mesmo local, o motorista de um dos carros, em desespero, acelerou para abandonar a região o mais rápido possível, no que acabou perdendo o controle do veículo e causando um acidente com uma vítima fatal.

Infelicidade similar ocorreu a outro homem que caminhava ao alto de um morro próximo ao local. Ouvindo o terrível som, disparou rumo à cidade num frenesi desesperado, contrastante com a paralisia que se abateu sobre os demais transeuntes, e ao tropeçar caiu morro abaixo fraturando o pescoço.

Dois outros gritos ainda foram ouvidos um pouco mais distantes, e há pescadores que garantem ter ouvido ainda mais dois, embora seus relatos pareçam confusos. Notou-se também que os peixes da região desapareceram por dias.

Ocorreu que, ao ouvir o grito inicial, uma mulher lançou mão de seu pretenso dispositivo protetor, mas garantiu que ao "ouvir" o segundo grito não sentiu proteção alguma, afirmando até mesmo que não ouví-lo, mas apenas sentir sua horrenda vibração, parecia de algum modo ainda pior. Confirmou a reação nos dois gritos subsequentes, tendo retirado a proteção antes do último.

Aconteceu também outro fato digno de nota. Um homem que dormia no banco do calçadão, embora tenha despertado, não foi de modo algum afetado. Estava profundamente bêbado. Alguns estudos já haviam adiantado que estados avançados de entorpecimento podiam atenuar os efeitos maléficos do som, no entanto, a quantidade necessária do entorpecente era muito elevada, quase sempre no limiar fatal. No caso do álcool, por exemplo, a maioria dos sujeitos que se submeteram a experiências controladas de exposição à vibrações desmaiaram antes de atingir a condição onde o sistema nervoso se tornava tão deficitário que perdia eficiência em transmitir as reações.

Mesmo assim, é óbvio, a partir desse momento os índices de alcoolismo dispararam.

O evento desencadeou também uma onda de paranóia mística baseada na sugestiva distribuição geográfica das ocorrências. Evidentemente, os 5 pontos onde o Grito 'atacara' permitiam visualizar um pentágono irregular, porém a ordem dos acontecimentos permitia ligá-los na forma de uma distorcido pentagrama, que chamava atenção por apresentar "pontas" progressivamente maiores, num constante crescendo.

Embora as medidas reais não correspondessem a proporções precisas, conspiracionistas de plantão não tinham dificuldades em adaptar e reinterpretar os fatos para sustentarem uma série de alegações. Entre as quais, a de que havia uma sequência de triângulos isósceles conectando os locais de ocorrência num tipo de proporção cabalística.

Outros arriscavam prever os próximos eventos, por meio da ampliação do pentagrama original baseado na expectativa de uma regularidade. Com isso, os eventos 6 e 7 se dariam em áreas praticamente inabitadas, mas os 8 e 9 atingiriam em cheio cidades pequenas, com o 10 ocorrendo bem acima de uma plataforma petrolífera.

Quando, após um intervalo de quase meio ano, o Grito surgiu do lado oposto do planeta, houve um breve alívio dos brasileiros, e ao mesmo tempo um aumento tenebroso de apreensão sobre o resto do mundo.

JAPÃO - Ilha de Honshu

O acontecimento reforçou uma das teorias que associavam o Grito a peculiaridades do decaimento do campo eletromagnético do planeta, visto que traçando uma linha imaginária do epicentro dos 5 fenômenos no Brasil, passando pelo centro da Terra, apontava-se nada menos do que uma região bem próxima às duas primeiras ocorrências nipônicas, que não deixaram vítimas e atingiram arredores de cidades pequenas.

O músico Yoshima chegou a ser amaldiçoado por "ter atraído o Grito" para o país, visto que sua reprodução do mesmo continuava mais famosa do que a posteriormente feita pelos cientistas do Projeto Banshee. Por sorte, nessa época ele já residia na Espanha, integrando um grupo musical cuja fama aumentava a cada dia.

Curiosamente, no país da tecnologia não se registrou uma única gravação do fenômeno, quer seja sonora ou visual. Deve-se acrescentar que o Grito nunca fora capturado em telefones celulares, pois interrompia o sinal desde antes de começar a soar, até bem depois, de modo que a principal evidência física do mesmo era exatamente o silêncio que se abateu em diversas ligações no momento em que ocorrera.

Apesar da falta de vítimas fatais, e mesmo do baixo impacto nos ouvintes, comparados aos eventos do oposto lado do mundo, houve uma violenta comoção internacional. A maioria não deu atenção à teoria de que os eventos podiam ser interligados devido a um vetor de fluxo eletromagnético misteriosamente gerado por fenômenos geológicos nucleares, como se algum tipo de liberação polarizada do centro metálico do planeta atravessasse a crosta em direções opostas, saindo pelas regiões onde os fenômenos ocorreram.

E se as duas novas ocorrências já haviam confundido os conspiracionistas, a terceira e terrível ocorrência, provavelmente a pior em toda a história do Grito, elevaria as atenções rumo a condições místico-matemáticas num grau insuportável, visto que, mais uma vez, o evento totalizaria um número de mortes quase equivalente a todos os ocorridos no Brasil.

A contagem dos sensacionalistas não era muito honesta, visto que haviam descartado as duas mortes indiretas no Brasil, ocorridas na última manifestação do Grito, ficando então com o número de 54. No entanto, somaram todas as mortes ocorridas na cidade litorânea japonesa, mesmo que algumas também tenham sido indiretas, e com isso, tentavam fazer considerações cabalísticas com o número errôneo de 108 vítimas.

A cidade, mundialmente mal afamada devido ao estranho ritual de matança de cetáceos que ocorria com regularidade, foi considerada como merecedora de um tipo de punição divina, principalmente pelos próprios japoneses, o que contribuiu para o fim da prática, da qual uma ocorrera poucos dias antes do Grito causar um estrago incalculável.

A paranóia que se abateu sobre o Japão e países vizinhos superou em muito a ocorrida no Brasil, devido a enorme violência do último ocorrido, que além de mortes, resultaram em diversos acidentes automobilísticos, de operação de máquinas e mesmo queda de aeronaves.

Mas o Japão foi deixado em paz, e finalmente o fenômeno decidiria romper em definitivo com qualquer colaboração à especulação mística. Ao se dar em alto mar, no Oceano Pacífico, longe do continente asiático e testemunhado somente por dois navios militares russos que faziam treinamento.

O fenômeno causara a morte de 16 militares, alguns dos quais morreram por afogamento, ao caírem desmaiados na água. Com isso, nenhuma acrobacia matemática permitia a obtenção de qualquer número cabalisticamente significativo que, ao mesmo tempo, estivesse de acordo com os dados.

Fora de especial interesse o fato de que o Grito parecia ter sido intensificado pelo casco de um dos navios, uma vez que causou mais mortes em seu interior do que no convés. Também foi motivo de especulação que os navios tenham primeiramente chegado a um porto japonês após o evento, levando alguns a considerarem que de algum modo o fenômeno ainda estava ligado ao Japão.

Mas qualquer tentativa de dar um significado mais interessante ao Grito decaiu em definitivo quando os eventos em série começaram a se dar em outros locais do mundo, de forma quase ininterrupta.

Entorno do Mar Mediterrâneo

Quase um ano depois da primeira manifestação, o Grito quadriplicaria seu número de vítimas. Uma sequência espantosa de eventos isolados passou a varrer o Sul da Europa, Oeste da Ásia e Oriente Médio, e Norte da África, atuando em especial em torno do mar Mediterrâneo, mas também adentrando vastas áreas dos continentes.

A Itália fora a primeira a ser afetada, nos arredores de Verona, logo em seguida a Rússia, Chipre, Turquia, Etiópia, Marrocos, Sudão, Índia, voltando então para a península ibérica, afetando em especial os arredores de Sevilha e o sul da França.

Todas as dezenas de ocorrências se deram em menos de 40 dias e totalizaram mais de 500 vítimas fatais, deixando milhares de pessoas transtornadas definitivamente. O fenômenos ainda se davam preferencialmente à noite, mas ao menos 1/3 das ocorrências eram diurnas. Disputou-se mais de uma vez ocorrências cujo número de mortes teria superado em muito os 54 mortos no Japão, mas a contagem devida foi impossível, visto terem concorrido outras tragédias, correlatas ou não, que tornaram impossível distinguir as causas mortis.

Os ataques não obedeciam nenhum padrão previsível, e a única constante prévia era a ocorrência de ventos, nem sempre fortes. Apenas em duas ocasiões não havia nuvens no céu, justamente as menos ofensivas, que se deram por volta do meio dia, mas mesmo assim ceifaram ao menos 4 vidas.

Em estado de alerta, os países decretaram em vários locais leis marciais e toques de recolher, na tentativa de diminuir a vulnerabilidade da população, mas poucas medidas, exceto se isolar em subterrâneos ao menos uma dezena de metros do solo, conseguiam de fato ser efetiva.

Nenhum dispositivo de proteção se mostrou eficaz, frustrando terrivelmente as iniciativas do Projeto Banshee. A técnica do auto entorpecimento causou mais vítimas de overdose e coma alcoólico do que conseguiu proteger contra a estridência terrível do Grito. E não houve tentativa alguma de prevenção que tivesse sido bem sucedida.

Nem mesmo a súbita parada dos eventos, após os ocorridos nos arredores da Ilha de Santorini, conseguia aliviar o clima de tensão, mesmo após semanas de inatividade após ocorrências praticamente diárias. A percepção de que os eventos se davam em zonas temperadas e em épocas quentes levou muitas pessoas a migrarem para o norte, bem como a um êxodo para continentes mais distantes.

Na verdade, mais grave do que as mortes diretas em si talvez tenha sido o trauma gerado nos sobreviventes. Apesar do número relativamente baixo de vítimas comparado a outros desastres naturais, o estrago deixado nos sobreviventes foi incalculavelmente maior. Sobreviventes de terremotos, furações ou Tsunamis são apenas isso, sobreviventes normais. Mas sobreviventes do Grito em sua maioria ficavam tão traumatizados que por vezes restavam inutilizados. Inúmeros casos de depressão, psicose, esquizofrenia e outras patologias nervosas diversas acometiam as vítimas não fatais, e é quase impossível avaliar o quanto de mortes posteriores por estresse, acidentes de trabalho, de trânsito ou violência foram causadas devido ao trauma dos sobreviventes.

Os terríveis assassinos seriais que muitos anos depois assombraram as cidades da região com frequência alegavam ter desenvolvido suas psicopatias devido ao Grito, e alguns eram de fato sobreviventes do fenômeno. Além disso, mesmo entre os que jamais o ouviram ocorreram disposições similares. A tensão de vir a ser uma testemunha do terrível evento também se tornou extremamente maléfica.

Houve alegações não comprovadas da ocorrência do fenômeno tanto na Antártida quanto na Sibéria, e houve várias fraudes simulando o evento, que passaram a ser severamente punidas. Agravava largamente a situação os depoimentos dos sobreviventes, que descreviam, quando conseguiam, a sensação com um pavor tão convincente que o terror se espalhara de modo a ser difícil distinguir os que já haviam dos que nunca tiveram a infelicidade de ouvir o Grito.

A paranóia atingiu níveis epidêmicos, histeria religiosa, cobranças políticas, e uma sensação de incapacidade dos cientistas, que continuavam sem qualquer explicação convincente sobre as causas naturais, e percebiam que nem mesmo suas explicações das causas mortis estavam realmente corretas.

O indecifrável mistério empurrou as massas para a superstição, visto que mesmo estudiosos com frequência desistiam de estudar o fenômeno, uma vez que a simples convivência com reproduções ou tentativas de emular o som e seus efeitos era extremamente desgastante, e os poucos cientistas que tiveram de fato uma experiência com o Grito e sobreviveram, nunca mais tiveram coragem de voltar a trabalhar sobre o assunto.

A situação não dava sinais de melhora, e mal os ânimos começaram a se acalmar, cerca de 50 dias após a ocorrência de Santorini que foi registrada em detalhes, vieram os eventos da Austrália e Oceania em geral, que embora tenham causado apenas 12 vítimas, consolidou a sensação de que nenhum lugar do mundo era realmente seguro.

O Grito podia atacar em toda parte. Ninguém estava a salvo.

América do Norte

Estima-se que o Grito já tenha matado ao menos DUAS MIL pessoas diretamente ao redor do mundo, e mais que o dobro disso por consequência indireta. Nenhum continente foi poupado, embora entre as nações que escaparam milagrosamente, destaca-se os EUA, o que leva até hoje a inúmeras teorias da conspiração que só são menos convincentes pelo fato de ter havido sim 13 vítimas entre o Alasca e o Noroeste do Canadá. Ademais, nem Rússia nem China, que sofreram diversos ataques, manifestaram qualquer desconfiança séria nesse sentido.

Está na hora então de levar a cabo o propósito desta redação, que espero tenha ao menos servido para provar que SIM, eu sei o bastante sobre o Grito, não sendo esse o motivo pelo qual me recuso a participar do grupo de estudos para o qual esta instituição insiste em me convidar.

Lamento muito por isso, mas fiquei deveras traumatizada e não tenho condição alguma de colaborar. Mal consigo pensar em me expor a qualquer tipo de simulação dessa coisa horrenda, e espero, depois de entregar esse texto, nunca mais ter que contar sobre os eventos que estou disposta a descrever.

Houve sim algo que eu não esperava quando comecei a escrever sobre isso. Admito um tanto constrangida. É que a medida que fui redigindo, me lembrei da época em que eu não conhecia o Grito. Tudo o que escrevi até então, na maior parte do tempo, foi ajudado pela lembrança de minha curiosidade de então. Eu queria ouvir! Não levava a sério as advertências! Com isso, cheguei em alguns momentos até a relaxar, por ter me transportado de volta a um tempo de inocência, onde meu espírito era livre do trauma diabólico.

Também não foi a toa que destaquei algumas pessoas. O senhor Pedro, que Deus o tenha, o Tenente-Coronel Matheus, que muito me ajudou em minha recuperação, Silvana Meira, que talvez não estivesse até hoje em estado de coma, se não fosse por minha causa, o senhor Yoshima, com quem troquei apenas breves palavras, pois ele falava um péssimo espanhol, e sobretudo o senhor Apolinário Leal, sem o qual eu certamente não estaria aqui hoje.

Podem não ter sido as mais importantes personagens na história do grito, mas foram pessoas que conheci na terrível ocasião em que eu própria pude ouvir o grito pela ÚNICA VEZ, Deus me ouça.

Quisera nunca ter tido a infeliz idéia de ir àquele congresso em Montreal, realizado pelo próprio Projeto Banshee's Howl, onde esperava-se dar boas notícias sobre o estudo do fenômeno. Mas fui. Ainda curiosa, ainda querendo levantar dados para minha louca teoria de que o Grito fosse um tipo de alucinação coletiva gerada por uma micro compressão atmosférica que, em si, seria inofensiva, mas desencadeava algum tipo de insanidade temporária.

Era uma idéia promissora, bem recebida, que explicaria porque nunca uma reprodução do Grito fora capaz de causar efeito similar ao real, por mais sofisticados que fossem os equipamentos usados, e a reação neurológica seria resultante de uma mistura entre a vibração específica e as condições atmosféricas ionizadas, que permitiam o choque neural...

Quanta bobagem!

Hoje sei que o Grito é um fenômeno sobrenatural, que não pode ser, de jeito nenhum, entendido pelas leis físicas. Caso contrário, o mistério já teria sido solucionado.

Não adianta tentar me convencer do contrário. A única coisa que quero agora é sossego, descanso e um lugar bem fundo para me esconder e rezar para nunca mais ter que passar por isso de novo. Vivo atualmente a cerca de 25m de profundidade e ainda não sei se é suficiente. Há meses que não vejo a luz do Sol e não sei quando o farei. Contento-me em só andar de metrô, nas ligações subterrâneas da maior cidade canadense. Quero ficar assim.

Só devo agora contar a minha história, e a das pessoas que passaram por aquele horrível acontecimento comigo.

A conferência estava decepcionante, não fosse a nova espuma isolante para proteção acústica, teria sido um completo desperdício, pois a maior revelação era a teoria que explicava por que o Grito não atingia as regiões mais frias, como a da própria Montreal, visto que a ocorrência na fronteira de Yukon com o Alaska ainda hoje é desacreditada.

No intervalo do último dia, me reuni com os poucos brasileiros presentes, que são as pessoas que citei acima, numa mesa ao ar livre, e apesar do frio e do céu coberto, não havia risco de neve. Considero justíssimo que essas vítimas tenham sido beneficiadas com viagens totalmente custeadas pelo Projeto Banshee e pelos governos de seus países, visto ser uma pequena compensação pelo trauma que sofreram, além do fato de que viajar de avião constantemente ainda é uma boa opção para se proteger do Grito, que parece não ocorrer a altitudes superiores a 4 mil metros.

O senhor Pedro estava sendo muito gentil comigo. Homem humilde, mas sábio, tentava me advertir sobre minha insistente curiosidade confessa em ouvir o Grito. Ao nosso lado, o senhor Apolinário terminava seu chocolate quente, um tanto alheio a nossa discussão. Tinha dificuldades auditivas que não eram totalmente resolvidas com o aparelho de surdez, e ligeiros tremores que dificultavam seu manuseio da caneca. Silvana estava na minha frente, sempre simpática. Nos identificamos de imediato, e tenho certeza de que teríamos nos tornado amigas se a tragédia não tivesse ocorrido.

Eu ainda não havia conhecido realmente o Coronel Matheus, só o faria depois, quando sua inestimável ajuda foi central para que eu não enlouquecesse.

Acho que as vítimas do Grito se tornam mais sensíveis a uma nova ocorrência do mesmo, embora isso só tenha acontecido, até hoje, ali. Antes, todos os que o ouviram e sobreviveram tiveram ao menos a misericórdia de nunca mais escutá-lo de novo.

Foi por isso que o senhor Apolinário, mesmo parcialmente surdo, foi o primeiro a prestar atenção no céu, naquele vento que parecia constante e inofensivo, mas que aumentara discretamente.

Me lembro de sentir o sangue de meus outros companheiros gelar! E logo fiquei contagiada pelo estranho sentimento, embora, quando olhei para o céu e vi o redemoinho, não deixei de sentir uma enorme expectativa. Seria agora! Finalmente eu ouviria o Grito?! Seria possível naquela latitude?

Mas a única coisa suportável que ouvi foi Apolinário murmurar "Ah não... Ai meu Deus, não!"

E mal levantamos da mesa, nós ouvimos.

Eu jamais poderei por em palavras o que senti. Quando dei por mim, estava no chão, com grama nos olhos e na boca, tremendo convulsivamente. Todo o meu corpo doía, mas a dor em si não era o problema. Era no máximo um incômodo. O problema era a sensação de desespero, desamparo, de pânico absolutamente onipresente. Como se de repente tudo e todos se tornasse horrível, sem esperança, sem escapatória.

Meu corpo estava gélido, paralisado, e mal pude colaborar quando as mãos quentes e amigas do senhor Pedro me levantaram, como se eu estivesse saindo de uma poça de água congelante. Ele era o único que já estava de pé quando comecei a perceber o que havia realmente acontecido, pois meu sofrimento e terror foram tão grandes que por longos segundos, talvez até minutos, não sabia o que me atingira. Era como se tudo houvesse sido esquecido e eu fosse levada de volta a uma infância fictícia, onde fora vítima de assombrações capazes de me marcar por toda a vida. Num instante eu era a adulta que comparecera àquela palestra com ares de pesquisadora engajada, noutro instante era apenas uma criança apavorada e desprotegida, para então voltar a ser uma adulta, mas ainda apavorada, ainda que amigos tentassem me ajudar.

Finalmente fui recobrando o movimento das pernas enquanto era conduzida rumo ao prédio. Várias pessoas a minha frente tentavam se recuperar, e quando olhei para trás, nem tentei contar a quantidade de corpos evidentemente mortos.

Fui deixada na porta de entrada do prédio, onde algumas pessoas se acotovelavam tentando obter uma pífia proteção na sala acusticamente isolada que fora usada para exemplificar o novo sistema de proteção contra o Grito. Se eu soubesse que, ao me dar as costas, eu jamais veria novamente o rosto do senhor Pedro, talvez tivesse tentado fazer algo. Mas ele ia agora na direção de Silvana, que diferente de mim, ao menos era capaz de ficar em pé por conta própria, apenas estando desorientada.

Ainda tonta, fiquei olhando a tragédia espalhada por toda a parte, quando então vi novamente um redemoinho se formar ao alto. Imediatamente eu tive certeza de que seria o fim. Não precisei de mais do que aquele minuto subsequente aos 13 segundos de inferno para saber que não sobreviveria a outro Grito. Vi o senhor Pedro correndo em direção de Silvana, com coragem e disposição incomum enquanto o prelúdio do novo massacre crescia.

Eu gostaria de morrer, sim, para esquecer tudo aquilo, mas por qualquer outro motivo que não fosse um novo uivo daquela Banshee maldita, que juro ter visto com meus próprios olhos em meio as nuvens que se aglutinavam. Então, diferente de tudo que eu pensava, não se tratava de nada que pudesse ser explicado, previsto e controlado pela ciência, a face cadavérica, horrenda, perversa, olhou-me nos olhos e sorriu com uma boca enorme, monstruosa, abrindo suas mandíbulas para lançar um novo grito infernal. E só me restava a paralisia do pânico, que bloqueava corpo e mente exceto pela súplica de que eu morresse o mais rápido possível.

Então, quando o som iniciou, fui abruptamente puxada para o prédio, e a porta imediatamente fechada, obra do senhor Apolinário.

Não ficamos totalmente a salvo lá dentro. Ainda pudemos ouvir o segundo e ainda mais mortífero ataque, e sentir o horrendo sofrimento. Mas é difícil discordar que de algum modo o efeito foi atenuado, tanto que das dezenas de pessoas que estavam comigo, somente duas não suportaram a tortura sônica, enquanto do lado de fora, os únicos sobreviventes foram reduzidos a estados vegetativos.

Desmaiei, só acordando dias depois num hospital subterrâneo, após séculos intermináveis de pesadelos.

É só o que pretendo dizer.
F I M

Marcus Valerio XR
Outubro de 2010

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