"A Humanidade é um Projeto"

Disse o palestrante, intrigando alguns dos presentes num confortável auditório.

"Ou melhor dizendo... Era um projeto. Hoje, está mais para um protótipo, em plena fase experimental."

Acima dele, a imensa tela trazendo em letras gigantescas o título VI COLÓQUIO TRANS HUMANISTA, seguido do nome da cidade, e trazendo o subtítulo O NOVO FUTURO DA HUMANIDADE EM QUESTÃO.

O delicado tópico, outrora restrito à Ficção Científica, havia se tornado senso comum, e a sociedade estava em pleno debate sobre as tendências de aperfeiçoamento físico e mental por intervenções diretas a nível genético e somático. Quase sempre polarizada, a discussão costumava antagonizar entusiastas científicos, visionários e otimistas em geral de um lado, e religiosos, críticos bioéticos e conservadores pessimistas de outro.

Só estamos prontos como espécie biológica, sendo os animais mais bem sucedidos do planeta, o topo da cadeia alimentar, superando todas as outras espécies com nossos 12 bilhões de habitantes. Mas até agora, somos pouco mais que isso. Animais bem sucedidos. Mas nossos conceitos humanos, nossos ideais, a Ética, a Justiça, a Felicidade... Tudo isso que realmente nos torna melhores, ainda é projeto. Somos animais realizados, animais com um sólido passado. Mas enquanto humanos... Ainda somos uma promessa.

Praticamente no meio da platéia, um soturno e quieto rapaz não suportava a idéia de chamar atenção. Ao final das palestras, quando se convidava os presentes a fazerem perguntas, ele só o faria se sua vida dependesse disso. Não era tanto timidez, era mais revolta. E o que o surpreendia era o fato de, não esperando ouvir algo interessante, naquele momento não ter conseguido conter um discreto riso, ainda que sarcástico.

Nossos milhares de anos de história não vão mudar o que milhões de anos de natureza fizeram, e mesmo que mudassem, só o fariam numa proporção ínfima. Quero dizer, que mesmo que conseguíssemos criar uma estupenda civilização do mais alto grau ético, com inegável igualdade de oportunidade para todos e onde ninguém fosse obrigado a se submeter à humilhação, degradação etc... Bem, mesmo isso cairia por terra num cataclisma que destruísse as bases materiais da civilização. Um grande desastre poria a pique tudo o que construímos em séculos, e dependendo do tamanho do estrago, poderíamos irreversivelmente voltar aos estados mais selvagens e primitivos.

Então o rapaz "pensou" alto. "Mas isso já não aconteceu?!" Esperando ser inaudível.

Só que alto demais, várias pessoas se viraram para ele, e o palestrante, contrariando a ordem normal que era ignorar manifestações da platéia até o momento das perguntas, não resistiu, e prestando um pouco mais de atenção ao rapaz, e lendo sua expressão, rebateu.

Não! Felizmente ainda não aconteceu.

O rapaz gelou, as palavras haviam escapado de sua boca, e enquanto afundava na cadeira de constrangimento, mil pensamentos passaram pela sua cabeça. O primeiro deles: Autocontrole.

Era o que seu pai sempre dizia. "A maior virtude do homem é a capacidade de se auto controlar, se auto determinar, e nunca se trair." Mas ele acabara de fazê-lo, sua boca escapou de seu controle e falou, algo que era sim, dele, mas que não era para ser compartilhado.

Não aconteceu porque estamos aqui, confortavelmente instalados num luxuoso auditório discutindo se devemos ou não fazer algumas coisas, debatendo sobre assuntos delicados, com dilemas morais e éticos envolvidos, e com adversários confrontando respeitosamente nossas idéias. Se o tal cataclismo que falei tivesse ocorrido, nada disso estaria acontecendo, estaríamos nesse momento, os poucos de nós que sobrevivessem, vivendo sob a imposição dos desejos e caprichos de machos alfas que conseguissem sobrepujar os demais, tornando-os seus lacaios, arrebatando as mulheres para si e fazendo seus haréns particulares. Ou estaríamos no meio de uma guerra fratricida onde a norma é o assassinato e o estupro sistemático. Não meu jovem... Isso não aconteceu, não nessa escala, AINDA!

"Está bem." Pensou o rapaz. "Numa escala geral ainda não. Somente..." E seu pensamento, discreto dessa vez, foi em "uníssono" com o palestrante.

...em escala local. E é exatamente por isso que sempre defendi iniciativas transhumanistas, por que é a única forma de acabar com isso em escalas locais, e ainda mais importante, eliminar o risco de que isso aconteça numa escala global. Somente aperfeiçoando nossa espécie podemos de fato construir algo duradouro, uma civilização avançada que permanecerá mesmo se uma catástrofe mil vezes maior que a Guerra Meridional nos abater.

O rapaz não estava ali exatamente por vontade própria. Fora de certo modo compelido a comparecer a um número mínimo de certos eventos, devidamente certificados, com lista de presença e avaliação, caso quisesse usufruir de seu direito de ir para o futuro.

Seu pai lutara no fronte da Guerra Meridional, e contraíra uma estranhíssima condição patológica que desafiava os médicos, que então decidiram congelá-lo para que a medicina evoluísse mais a ponto de entender melhor o problema. Mas por uma fatalidade, ele faleceu antes, e o contrato previa que nesse caso, o direito passaria para seu único filho, que não sabia se queria, mas preferiu cumprir as exigências para poder decidir no momento mais oportuno. Era bom ter uma rota de fuga caso tudo o mais em sua vida não desse certo, o que era altamente provável. Era bom poder dar as costas ao mundo e partir pro futuro, onde ao menos deveria ter alguma assistência, e uma nova chance. Por isso, conseguiu se encaixar no passaporte de 200 anos, para minimizar as chances de encontrar alguém de sua época, e mesmo que encontrasse, de certo não a conheceria, visto não pertencer a classe social mais abastada, capaz de usufruir dos melhores métodos de prolongamento da vida.

Havia uma exceção, mas ele preferia nem pensar nela.

Além do mais, já somos transhumanos. Em milhares de anos, a quantidade de nossos ancestrais que passou dos 100 anos provavelmente não seria suficiente para encher esta sala. Mas agora... Ou pelo menos antes da crise, a expectativa de vida passava disso e... Quantos aqui tem mais de um século?

Mais de uma dezena de pessoas, a maioria mulheres, levantou o braço. E como muitas preferiam não revelar a idade, um hábito antiquado mas persistente, podia-se até desconfiar que houvesse mais.

Hoje temos pessoas com mais de 160 anos, e nosso ilustre casal que comemorou semana passada suas Bodas de Um Século podem ser um caso único na história da humanidade. E as mulheres, além de viverem mais, são bem mais transhumanas que os homens. Na verdade, um homem de hoje pode ser fisicamente indistinguível de um homem saudável da Idade da Pedra, mas as mulheres de hoje, utilizando seus métodos anti concepcionais, vivem com configurações hormonais completamente estranhas a suas ancestrais. Nenhuma mulher fértil dessa época chegava à idade adulta, adulta pelos padrões de hoje, sem conhecer a gravidez, e a maioria engravidava em série. E além disso, ambos os sexos tem acesso a inúmeros dispositivos de sustentação vital, reguladores neurais, neutralizadores oncológicos, circuitos de correção visual, sem contar as terapias genéticas que já usamos. Mas até agora, tudo tem sido feito apenas em prol de modificações puramente físicas, e somente as vítimas de transtornos psiquiátricos tem experimentado os benefícios das modificações comportamentais. Mas comportamentos também tem base física! Se fizermos as intervenções corretas, podemos regular nossas ansiedades, diminuir nosso sofrimento, nossa agressividade, aumentar nossa solidariedade, e importante, NÃO INTERESSA que isso seja feito artificialmente! Por que será o resultado de uma vontade original legítima! De uma pessoa que, em seu melhor estado mental, decidiu se aperfeiçoar. Nada é mais verdadeiro que isso. Porque devemos achar que nossos hormônios mal regulados, doenças psiquiátricas congênitas ou tendência a dependência química são o que temos de real!? Real é o que decidimos ser!

"E o que decidimos fazer." Pensou o rapaz, orgulhoso de um crime que cometera.

O discurso em si não era exatamente novidade em termos históricos. Era apenas ousado, uma vez que após alguns maus usos recentes de técnicas transhumanistas, em especial manipulações genéticas, praticamente o tornaram um tabu, fazendo lembrar o estrago feito pelos eugenistas e nazistas no século XX, que com isso prejudicaram políticas de aprimoramento transhumano por mais de um século devido ao medo de uma nova onda autoritária para forjar uma nova espécie humana. Um verdadeiro lobby intelectual tentava nada menos do que proibir o assunto, mas não impedia que os mais abastados conseguissem para si e seus descendentes as benesses de intervenções genéticas que os tornavam mais e mais aperfeiçoados, física e mentalmente, aumentando o fosso entre as classes altas e baixas. Crescia, agora, um novo e corajoso movimento para estender esses recursos à toda população, por políticas governamentais.

O mais importante é nos conscientizarmos que podemos assumir o nosso próprio destino, redefinir nossa própria natureza, seguindo parâmetros mais elevados de humanidade. Não temos que nos conformar com o resultado de bilhões de anos de evolução despropositada como se fosse mandamento divino. Podemos ser melhores, assumir nossa humanidade e ser mais do que animais de sucesso.

4.000 Anos Depois.

O rapaz foi descongelado.

Ele até considerava passar mais de 200 anos em criogenia, mas jamais pensou que pudesse ser mais que uns 400. Para piorar, foi despertando na época da Guerra Espacial, que viria a fazer com que à realidade transhumana, já estabelecida há milênios, viesse se somar uma realidade trans planetária, ou trans solar.

Recursos tecnológicos que mesmo em sua época seriam mais facilmente associados à deuses, alteraram drasticamente a configuração do Sistema Solar ao ponto de inviabilizar seu reconhecimento mesmo por um astrônomo que observasse atentamente um modelo com os planetas em escala ampliada, como normalmente costumamos ver.

Ao invés de ver 4 planetas telúricos, sólidos, pequenos, um deles a Terra, e 4 gigantes jovianos, apenas um deles com um vistoso anel, agora veria apenas dois dos primeiros e 3 dos outros, todos com anéis notáveis.

Seu despertar foi chocante, resultante da controvérsia de seu estado criogênico. Foi lançado num mundo que lhe era incompreensível, controlado por criaturas que não lhe eram simpáticas tendo na cabeça um cérebro que poderia ser removido a qualquer momento e reinserido em outro corpo, ou mesmo imerso em mundo virtual.

Pouco depois de começar a se adaptar à situação em que se encontrava, o mundo em que estava foi completamente destruído, que na realidade era o que se chamava de antigo planeta Marte. Junto com alguns outros sobreviventes, alguns recém despertos tão desorientados quando ele, foram acolhidos em estações e naves espaciais que vagavam pelo Sistema Solar, passando a viver como exilados, sem destino, sem terra, sem família e sem lar.

Mas não foi tão difícil. Demonstrando disposição e capacidade de adaptação incomum, destacou-se no ramo de administração de sistemas complexos, em especial no relacionamento com Inteligências e Mentes Artificiais, em geral não locais, isto é, que não tenham sistema fixo de processamento físico central.

Ou seja. Que não tenham um cérebro, sendo um software puro capaz de se instalar e funcionar em quaisquer sistemas.

Na Penumbra...

...uma luz se acende. Difusa, de origem indetectável. E logo o ambiente se tornou confortavelmente iluminado. Uma suave música toca ao fundo, e uma voz feminina, bela e sensual se faz presente. Onipresente. Suave e gentil.

Hora de acordar, meu amor.

Mas o adormecido se limita a murmurar algo inaudível.

A voz insiste, um tanto manhosa.

Vamos... Acorde... Você não quer perder isso.

E finalmente, ainda com o olhar pesado, ele murmura. Isso o quê?

Olhe.

Então uma das paredes do quarto, que não tinha janelas, se tornou um visualizador, e um imenso planeta gasoso azul surge majestosamente. A iluminação ambiente reduziu para permitir que a luminosidade do astro parecesse mergulhar o quarto sob a mais cristalina das águas.

Isso é... Presencial?

Claro. Acha que eu te acordaria se não fosse?

Mas é... Magnífico!

Será mais ainda se você vier ver diretamente. Vamos. Deixe de preguiça.

Ele levantou ainda meio tonto, e caminhou lentamente. Falei pra você me acordar só depois...

Eu sei! Mas o visual está anormalmente belo, devido ao ângulo exótico. Vamos! Você não vai se arrepender. Vamos. E a voz, que vinha de toda parte, era cada vez mais sensual, até ficar dengosa.

Ele caminhou, já começando a deixar pra trás a hesitação.

Kethi! Vou ter que repetir que não quero que você use essa voz provocante!?

Ela murmurou, infantil. Huummm...

Ele diria mais alguma coisa se de repente não tivesse chegado ao seu destino. Agora, entre ele e o espaço não havia nada mais além de uma estrutura cristalina, visualmente imperceptível. A imagem do planeta girando em torno dele, embora fosse sua nave que girava, só acentuava ainda mais o deslumbramento. Por mais que as tecnologias de reprodução de imagens houvessem atingido a perfeição, ainda havia algo de notavelmente inexplicável, e irreprodutível, em ver uma cena como aquelas ao vivo, presencialmente.

Emocionado, ele concedeu. Você tem razão Kethi, como sempre. Obrigado por me acordar. É lindo.

Eu sabia que você me agradeceria.

É. Você sempre acerta. E eu errei de novo. Sempre perco ao duvidar, ou apostar contra você.

Claro. Eu conheço você profundamente, sei tudo sobre seus sentimentos... Nós somos um só.

Kethi! Não comece!

Me deixa ter um corpo!

Não só começou como finalmente chegou àquilo. Ela vinha insistindo no assunto até alguns dias atrás, quando por fim silenciou, mas agora voltaria com força total.

Me deixa tocar em você... Te acariciar... Preciso de mãos pra isso! Preciso de pele... Carne... Preciso de...

Kethi! Chega! Já falamos sobre isso!

Não nessa circunstância. Ela reduzira a sensualidade, mas não perdera o carinho.

Que circunstância?

Em que é possível. Acabamos de sair da influência direta do SISTEMA, agora estou livre para deixar de ser apenas uma mente virtual.

Mas você ainda está sob a MINHA influência, e a resposta continua: NÃO!

Era incrível como ela conseguia reproduzir uma indignação bem feminina apenas com o breve silêncio.

Por quê?

Kethi... Olha... Você é uma criatura incrível. Eu gosto muito de você. E você é perfeita assim... Onipresente, etérea... Se você tivesse um rosto eu... Eu não saberia...

Me contento só com um corpo sem rosto.

Ele fez uma expressão de repulsa, ela corrigiu.

Eu escondo meu rosto

Kethi... Ele não queria discutir mas não podia deixá-la provocá-lo.

Eu sei exatamente que tipo de rosto você imagina pra mim.

Kethi! Pare! Não vamos brigar de novo!

Eu nunca briguei com você.

Mas não faça EU brigar com você. Vamos, prepare nossa aproximação e...

Já preparei.

Contate nosso anfitri...

Já contatei.

Comunique...

Já comuniquei! Não há nada que eu já não tenha feito mil vezes! Você sabe disso! Sou milhões de vezes mais eficiente que todos os computadores do seu tempo juntos!

É... E um milhão de vezes mais chata também.

Huuummmm... Foi tão dengosa que chegou a ser pegajosa. Mas você me ama. Não ama?

KETHI!!! CHEGA!!! Pela Deusa! Será que isso é uma maldição lançada pelas mulheres do meu tempo!? Ter uma companheira virtual possessiva e... Aaahhh...

Finalmente, um bom tempo de silêncio. Até que finalmente ela quebrou o gelo, com uma voz que deixava claro estar chateada.

Ele quer falar com você. Agora.

NERUS

Que nome poderia ser dado ao planeta joviano gigante resultante da fusão de dois outros, no caso, Urano e Netuno?

Bem, no idioma dominante, era apenas NERUS, o gigante azulado comparável a Júpiter e Saturno. Seu anel de gelo era mais evidente que o de seus irmãos, e apresentava 26 satélites, muitos capturados após sua fusão, sendo um deles, o planetóide Plutão.

Outro deles, era conhecido como DENSEN, e já fora povoado por alguns milhares de colonos, tendo uma vasta infra estrutura habitacional, há muito, porém, abandonada.

Não era de fato um lar, mas sim um local de trabalho. As pessoas que lá viveram coordenavam diversas experiências científicas, a maioria delas bélicas, com vista a desenvolver armamentos e defesas para o caso de uma outra Guerra Espacial em larga escala, o que porém, jamais veio a acontecer.

Com o tempo o planeta foi abandonado, sendo mantido apenas pelos zeladores artificiais e ocasionalmente por um punhado de pesquisadores, o que já não acontecia há mais de um século. Ultimamente, somente Mentes Artificiais vinham ao planeta com alguma regularidade, transferidas virtualmente.

Apesar de NERUS ser o último planeta do Sistema Solar e portanto ser extremamente frio, DENSEN foi terraformado para ser habitável. Sua gravidade era pouco menor que a da Terra, gigantescos canalizadores de energia telúrica aproveitavam o calor do núcleo profundo e emitiam ar quente para a atmosfera, transformando um mundo de temperatura proibitiva a qualquer forma de vida para um de temperatura apenas glacial.

A atmosfera era respirável, não pelos humanos da antiguidade, mas pelos transhumanos adaptados para tolerar condições bem mais adversas, embora contivesse traços de elementos químicos e radioativos que desaconselhavam a exposição direta prolongada.

Havia ciano bactérias e outra formas de vida microscópicas e alguns tipos de fungos, mas praticamente nada que pudesse ser visto a olho nu.

Em suma, era um gigantesco deserto gélido repleto de montanhas, mares solidificados e cânions que escondiam segredos tecnológicos esquecidos por praticamente todos os 4 milhões de humanos que viviam no Sistema Solar.

Automaticamente, porém, havia muitíssimo movimento. Os sistemas artificiais continuavam suas experiências em larga escala, produzindo e aperfeiçoando equipamentos e tecnologias que provavelmente jamais seriam usadas. Em parte para proteger tantos recursos misteriosos e potencialmente perigosos, o planeta contava com um poderoso sistema de defesa, embora praticamente não o utilizasse, exceto para raros e ocasionais asteróides que pudessem oferecer algum perigo.

O perigo maior, era na verdade interno. Havia uma disputa entre duas grandes facções, que fora originalmente deliberada pelos cientistas com o objetivo de otimizar a pesquisa bélica e testar os sistemas defensivos. Uma delas era constituída da produção incessante de naves e robôs de combate que eram enviados para tentar penetrar sistemas automáticos de defesa da outra, que por sua vez eram constantemente aperfeiçoados para maximizar sua resistência, numa corrida armamentista incessante e muito bem equilibrada.

A força principal envolvida era chamada de A GRID, e podia ser descrita como um vasto território com inúmeras "arenas" dos mais diversos tipos, onde ocorriam as batalhas. A outra força era conhecida como VEMDAN, o remanescente de uma antiquíssima empresa outrora privada, depois cooptada pelo SISTEMA regente que tudo controlava, depois tornada novamente autônoma e completamente automática. Ninguém mais tinha qualquer influência direta sobre a VEMDAN, que agia por conta própria, regida por Mentes Artificiais nada diplomáticas.

A GRID, por outro lado, era controlada por uma MA bastante amigável, que se intitulava apenas de O Janitor, que era quem se dirigia à MA chamada Kethi, que servia ao novo administrador humano que acabava de chegar.

Xanti...

...no fundo, estava incerto do porquê aceitara essa missão.

Não era obrigado, ninguém era obrigado. A GRID podia continuar indefinidamente funcionando sozinha, mas muitos achavam aconselhável que fosse ocasionalmente visitada pessoalmente por alguém que representasse devidamente a humanidade, embora desses muitos, nada menos que ninguém estivesse disposto a ir.

Xanti estava. Achava que era uma oportunidade de fugir de tudo e todos, de viver um isolamento, do qual sentia falta há tempos, refletir, e sobretudo, ficar longe do alcance do SISTEMA.

E principalmente, também queria ficar a sós com Kethi.

Isso significava isolá-la não só de outras pessoas como de outras MAs, pelo menos das que lhe fossem similares, o que de certo não seria o caso do Janitor.

Sua experiência, e sobretudo paciência, em lidar com MAs fora determinante para que fosse indicado entre vários outros, embora ninguém esperasse que aceitasse. Também contribuiu sua boa reputação, o não envolvimento em qualquer tipo de comportamento tido como reprovável ou preocupante, ao menos até onde o SISTEMA era capaz de ver. Mas não era realmente o "candidato" mais recomendado, era apenas o único que atendera.

Xanti agora tinha a nítida consciência de que sua vida era uma constante fuga do mundo, na tentativa de encontrar a si mesmo. Embora sempre seguido por alguém.

Fora criado pelo pai, abandonado pela mãe, que por sua vez retornou quando ele já era quase adulto. Mas ele simplesmente a rejeitou. Após a morte de seu pai, e de problemas com a mãe, teve que mudar de cidade, fugindo da terrível crise econômica e social que arruinava a civilização, mas que estava por toda parte, razão pela qual decidiu aceitar sua fuga para o futuro. Fugia também das possíveis consequências de uma atitude drástica que tinha tomado, e que por sorte, neste futuro, fora por completo esquecida.

Despertado numa época 10 vezes mais distante do que esperava, não tardou a ser obrigado a fugir de um planeta que fora desintegrado por um Inversor Gravitacional, a mais terrível arma de destruição em massa já inventada, e passou a viver em estações espaciais, que, seja dita a verdade, eram bem espaçosas e luxuosas.

Mas ele fugiu novamente, sempre indo para locais menos populosos.

Por mais de uma vez decidiu hibernar, em processos acessíveis de criogenia disponíveis à todos, e praticamente incentivados por uma civilização que, de tão abastada e luxuosa, sofria de uma terrível falta do que fazer. Jamais antes na história da humanidade o tédio fora uma ameaça tão real, tão terrível e assustadora.

Em certa ocasião mergulhou voluntariamente numa simulação esquecendo-se de si próprio, mas depois que saiu, recuperando suas memórias adormecidas, continuou sua vida vazia e sem sentido, até que conheceu sua "alma" gêmea. A companheira ideal.

A Mulher Ideal.

Kethi...

...era, num certo sentido, literalmente Ideal. Pois 'ideal' no sentido original diz-se pertencente ao plano das idéias, e portanto, imaterial. Existente, mas intangível, perene, incorruptível.

Kethi era uma MA, de um tipo muito mais avançado que as que se tornaram relativamente comuns no período conhecido como Segunda Formação da Humanidade. Essa Formação era caracterizada principalmente pela reprodução em câmaras artificiais que quase aboliu a reprodução normal a ponto de praticamente mulher alguma ter engravidado por mais de um século, o que quase extinguiu a espécie humana após uma hecatombe que demarcou a história humana, dando origem à Terceira Formação.

Depois essas MA caíram em desuso, sendo por um tempo praticamente extintas, mas haviam retornado após a Guerra Espacial e embora não tenham se tornado muito populares, eram muitíssimo mais sofisticadas. Quando Kethi afirmou que era milhões de vezes mais eficiente que os computadores do tempo de Xanti, afora o exagero retórico numérico, não se referia à época em que fora congelado, há mais de 4,5 milênios. Não haveria sequer um parâmetro de comparação cabível, visto que uma MA como ela, para ser executada em tão remoto passado talvez exigisse a memória e processamento de todos os computadores de um país inteiro. Ela se referiu à época em que fora descongelado, há quase 1 milênio, e era verdade que sua capacidade era imensamente superior.

Mesmo sendo puramente virtuais, software, eram caras e difíceis de serem produzidas, visto que sua ativação exigia um vasto e concentrado processamento local gerando os códigos e padrões necessários que se articulariam resultando em seu "nascimento", para só então se tornarem independentes de servidores físicos específicos. Por isso era importante preservá-las.

Mas algumas MAs tendiam a, com o tempo, desenvolver personalidades que podiam ser imprevisíveis, frequentemente exóticas, embora quase sempre continuassem a cumprir suas obrigações. Mesmo podendo ter humores capazes de interferir em seu desempenho, isso costumava ser largamente compensado pela eficiência com que podiam tomar decisões sobre temas complexos, subjetivos e não quantificáveis, inacessíveis às Inteligências Artificiais e ainda mais aos sistemas computacionais normais. Eram raros casos que a instabilidade justificava eliminá-las, de modo que havia esforço em evitar desperdícios, a começar por terapias psicológicas.

Espontaneamente, Kethi já havia desenvolvido uma personalidade feminina antes de conhecer Xanti, e passar a ser sua "governanta", ou secretária, e com o tempo evoluiu para um comportamento romântico e por vezes possessivo. Mesmo assim, continuava implacavelmente eficiente.

Convencera o Janitor a aceitar esse novo "embaixador" da humanidade. Sim, pois a função de um humano, no caso, não deveria passar muito disso, visto ter pouco a contribuir do ponto de vista operacional, técnico ou mesmo científico a uma MA capaz de gerir tudo sozinha, e ainda por cima contando com vastas IAs que mesmo não tendo mente, podiam solucionar praticamente qualquer problema técnico. Ou ao menos era o que o recém chegado pensava.

E sim, o Janitor poderia ter recusado Xanti se o achasse inadequado.

Mas na realidade, mesmo que fosse...

Bem.

Kethi era incrivelmente persuasiva.

O Janitor

Após tanto tempo no espaço tendo apenas a invisível e onipresente voz de Kethi como companhia, ouvir aquela voz masculina impecável, polida e formal do Janitor era uma experiência marcante.

Lembrava alguns locutores de seu tempo, de órgãos de mídia de grande respeitabilidade ou veículos oficiais do governo, porém com o toque corporativo de um treinamento professoral. Um respeito quase excessivo, linguajar corretíssimo e variações tonais e dinâmicas, do tipo que conseguiam a perfeita combinação entre a musicalidade da fala, a escolha das palavras, o sotaque, os timbres e etc, afim de tornar a comunicação o mais eficiente possível, transmitindo conceitos abstratos e idéias sutis, subjetividades, de um modo direto por meio da teia de símbolos sônicos que em muito transcendiam a mera linguagem literal.

E a voz era linda, masculina, empostada, amigável, paternal.

Minhas cordiais saudações Dr. Xanti. A adorável Kethi já me contou tudo a seu respeito, e estou certo que sua contribuição será inestimável. Ela já me autorizou a conduzí-los a suas instalações definitivas, que, espero, sejam de seu agrado.

A nave espacial ficou em órbita, ainda na configuração giratória. Um cilindro grande rodando em torno de um mais comprido porém mais estreito. Lá permaneceria por tempo indefinido. Dela saiu uma aeronave, bem grande, com capacidade para bem mais que um passageiro, que entrava na atmosfera do planeta, e pela fuselagem temporariamente transparente, com filtros virtuais que tornavam a imagem nítida e clara, podia-se ver a vultosa superfície. Os mares congelados de líquidos que tinham mais outras substâncias do que água eram claramente distinguíveis dos continentes, em proporção praticamente equivalente. Mesmo assim, era de um tom escuro, em contraste com as terras brancas e geladas, interceptadas ocasionalmente por imensas superfícies claramente artificiais.

Esparsas nuvens cinzentas completavam a curiosa paleta predominantemente monocromática do planeta, que na verdade era um satélite, apenas ocasionalmente apresentando pontos coloridos por luzes das inúmeras instalações.

Atualmente, a população humana do planeta é zero, portanto, o senhor será o único humano a habitar aqui desde o último êxodo. Por precaução, todos os recursos de suporte vital foram mantidos e estão perfeitamente operacionais, podendo atendê-lo sem qualquer dificuldade. O senhor poderá, a qualquer momento, alterar à vontade suas instalações conforme melhor lhe convier, embora Kethi tenha me garantido que as configurações que ela me passou serão integralmente aceitas pelo senhor. Espero que isso seja suficiente em troca de tudo o que pode oferecer para fortalecer A GRID.

Mesmo deslumbrado pelo cenário, ele não pode conter certa apreensão.

Prezado Janitor. Agradeço muito a cortesia e espero mesmo poder retribuir. Mas fico um pouco preocupado com essa expectativa. Kethi é uma excelente MA, mas é um pouco excêntrica e gosta de exagerar a meu respeito. Como representante diplomático da humanidade, não tenho dúvidas de poder exercer o meu papel. Mas peço para não superestimar minhas possíveis contribuições, visto que sou apenas uma pessoa normal.

Eu disse que ele era modesto.

Kethi... Por favor.

Mas é exatamente disso que precisamos senhor. Por mais inteligentes que sejam os nossos sistemas artificiais, ou eu próprio, fato é que não podemos reproduzir integralmente todas as qualidade humanas naturais, e penso que sua notória intuição e experiência possam vir a ser cruciais nos próximos experimentos.

E que experimentos seriam esses?

VEMDAN desenvolveu um novo tipo de escudo de força repulsora de alta resistência, capaz de absorver ou repelir os mais diversos tipos de energia. Passou a equipar suas naves e enviá-los contra os sistemas de defesa da GRID, que tem tido cada vez mais dificuldade em destruí-las. Pretende aperfeiçoá-lo o máximo possível, enquanto nosso objetivo, naturalmente, será aperfeiçoar novas armas capazes de sobrepujá-lo.

Humm... Infelizmente desenvolvimento de armas não é minha especialidade.

Isso pouco importa. É especialidade minha. Posso projetar e implementar mais novidades do que é possível testar, a grande dificuldade consiste em selecioná-las previamente baseado apenas na observação das naves anteriores que destruímos, em especial seus escudos. Apesar de toda computação envolvida, há poucos dados objetivos discerníveis, infindáveis possibilidades, de modo que a escolha correta depende mais de intuição do que racionalidade.

Nesse caso, talvez Kethi seja mais recomendada do que eu.

De jeito nenhum! Tudo o que sei aprendi com você!

Não a estou desconsiderando Dr. Xanti. Mas sei que uma MA certamente absorve características dos usuários a quem servem, e sendo assim é inevitável atribuir ao senhor parte das qualidades de Kethi, considerando que são parceiros há 26 anos.

Finalmente, após atravessarem uma densa camada de nuvens, ele pôde avistar uma enorme edificação incrustada nas rochas de uma montanha, logo à frente de uma planície onde estava construída uma gigantesca arena quadrangular que lembraria um imenso tabuleiro de xadrez.

Bem. Então veremos como nos sairemos nessas experiências. Mas no momento, se não for abusar de vossa hospitalidade...

Ele precisa descansar. Espero que já tenha preparado o banho e as acomodações.

Certamente. Não estou com pressa. Sejam bem vindos à base KOLARA, a instalação mais confortável de DENSEN.

A nave finalmente reduziu sua velocidade, se aproximando lentamente de uma abertura nas instalações, predominantemente negras, da base KOLARA. Pequenas luzes amarelas e alaranjadas enfeitavam a estrutura, e assim que penetrou no hangar e a porta de entrada se fechou, o ambiente foi imediatamente adaptado. Quando desembarcou, foi como adentrar num confortável clima semitropical, inclusive com uma luminosidade artificial que simulava a luminância indireta da luz solar, adentrando o revestimento escuro, praticamente negro, do interior, dando ao ambiente uma aparência acolhedora.

Pequenos robôs, nada antropomórficos, se apresentaram à nave, iniciando procedimentos redundantes de manutenção, enquanto outros adentraram e iniciaram o transporte dos poucos itens pessoais do recém chegado.

Subiu uma pequena rampa, e então se deparou com um corredor onde ao lado tinha uma ampla vista para o cenário gélido do planeta. O vidro, na realidade um tipo de meta material tão resistente quanto os mais sólidos metais, era completamente opaco por fora, mas absolutamente invisível por dentro, só não dando a nítida impressão de não existir graças a alguns padrões artísticos internos que tinham exatamente a função de evidenciar sua consistência, impedindo que a invisibilidade causasse sensação desconfortável de falta de proteção.

Apesar da total transparência, e das luzes de satélites artificiais que faziam um meio termo entre a luz das estrelas e do Sol, o cenário era bem menos claro e nítido do que quando ele o via pelo interior da nave, e como que lendo seus pensamentos...

Vou melhorar isso pra você.

Então, a parede invisível que o separava do frio glacial do mundo externo ativou filtros ópticos que tornaram a imagem mais vívida e brilhante, causando imediata sensação de pequenez diante de tão formidáveis montanhas e abismos rochosos cobertos de neve. Podia ver o imenso tabuleiro onde deveriam ocorrer alguns experimentos, e se imaginou como deveria ser percorrê-los.

Não é possível ver NERUS diretamente, nem o seu anel agora, mas daqui a 427 minutos eu te acordo.

Não vou dormir. Quero apenas me acostumar com a gravidade e as instalações e relaxar um pouco, olhando esse cenário.

Disse enquanto caminhava lentamente, já antevendo a resposta.

Vai dormir sim. Não importa que tenha acordado há tão pouco. A adaptação aos ciclos do planeta exige isso, e sentir gravidade real após longos períodos em centrifugação no espaço causa cansaço imediato.

É. Imediato e inexplicável.

Eu sei explicar.

Depois.

Dobrou para outro corredor, mergulhando no interior da montanha. O ambiente era tão escuro que somente a luz do pequeno robô que adiante carregava uma de suas poucas malas lhe permitia avançar sem hesitar. Mas logo suaves luzes amareladas se acenderam, primeiro no chão, em espaços intermitentes que lembravam uma pista de pouso. Depois as paredes começaram a brilhar suavemente, no mesmo tom.

Parece que o pessoal aqui gostava de âmbar.

Cromopsicologia. Concluíram que esse tom compensava a falta de coloração psicologicamente aconchegante que incide naturalmente sobre o planeta.

Não deveria eu estar falando com o Janitor?

Negativo. Deixei bem claro para ele que de você cuido eu! Entre na próxima a direita.

Totalmente acostumado com o tom frequentemente maternal de Kethi, ele obedeceu, sorrindo. Cruzou mais alguns metros de ambiente escuro amarelado e então saiu num vasto apartamento totalmente diferente.

Uau! É... Lindo...

Claro que é. Projetei especialmente pra você, embora eu deva admitir que o Janitor acrescentou alguns detalhes realmente enriquecedores.

Tinha diante de si um belo ambiente artificial, que em parte lembraria um jardim de pedra japonês, embora com graciosos trechos que pareciam mini florestas de árvores convidativas. Ao centro passava um rasíssimo riacho, correndo suavemente por cima de pedrinhas minúsculas, quase uma areia, que o convidou a imediatamente remover os calçados e pisar neles com as plantas nuas dos pés, obtendo satisfação imediata.

Mais adiante, um patamar sobressaia no meio de uma clareira de pedras, onde o robô depositava alguns de seus pertences. Uma enorme cama já estava preparada, sob um teto transparente que apresentava um Sol que na realidade estava muito distante e pouco mais destacado que a maioria das estrelas, mas que era magnificado pelos filtros, se tornando calorosamente aconchegante, morno.

Não resistiu. Caiu na cama enquanto sua Veste foi automaticamente saindo de seu corpo, removendo consigo o pouco suor e sebo que permitia acumular, deixando-o tão limpo como se tivesse acabado de sair de um cuidadoso banho. Quase lamentou, adoraria ter uma motivação maior para mergulhar na piscina de pedra que havia mais adiante, abastecida com um filete silencioso de água morna.

Mas, como sempre, Kethi, tinha razão. Sentia-se imediatamente cansado, experimentando o misterioso efeito que a gravidade real causava nos humanos, e preferiu dispensar o banho. Enquanto todos os físicos de seu tempo afirmavam que métodos de simulação gravitacional, como centrifugação ou aceleração, seriam indistinguíveis de gravidade natural, não era isso que acontecia. Algo no organismo, ou na mente, parecia saber a diferença.

A explicação continuava um mistério, embora Kethi adorasse contar uma espécie de fábula para justificá-la.

É Kethi. Como sempre, você tem razão. Acho que vou mesmo dormir um pouco.

Quer uma música? Algum som especial?

Som? Não. Quer dizer. Aumente um pouco o barulho da queda d'água. (...) Um pouco mais. (...) Isso. Está ótimo. E coloque algum improviso de harpas, do tipo... (...) Isso. Perfeito.

Relaxou enfim. E antes de apagar, disse uma última coisa.

Kethi?

Sim meu amo...

Fazia isso de propósito, como se fosse dizer "amor" e se contivesse no último instante. Era uma provocação, ele sabia, e bem humorado, só lhe restava responder com outra provocação.

Você é a mãe que eu nunca tive.

Mãe? Eu poderia...

Sshhh...

Pai Herói

E de fato, ele não tivera realmente uma mãe. Embora a tivesse conhecido, permaneceu a maior parte da vida uma desconhecida, e preferia que tivesse permanecido assim.

Sempre viveu com o pai, e o amava mais do que tudo. Estavam sempre juntos, a não ser quando estava na escola.

Fora um herói de guerra. Um dos poucos pilotos que conseguia manobrar as aeroespaçonaves na Guerra Meridional, quando os vírus computacionais arruinavam os sistemas automáticos de combate. Graças a ele, e outros de seu destacamento, a maioria mortos, obtiveram significativas vitórias contra as forças da U.R.S.A. (União das Repúblicas Socialistas Asiáticas) que de certo contribuíram para que negociassem a paz, e por fim se unissem ao Califado Europeu contra o Califado Meridional.

Não escapara ileso. Fora vítima de exposição radioativa que, se não o matou de imediato, causou complicações posteriores que viriam a matá-lo duas décadas depois, antes de completar 60 anos, o que não era sequer metade da expectativa de vida de um homem normal.

Mas, por sorte, ele próprio não herdara qualquer complicação maior, exceto algumas facilmente contornáveis por intervenções medicinais.

Não se lembrava de sua mãe, seu pai evitava falar sobre ela, e ele não tinha coragem de insistir no assunto, por ser o único que o afetava. Ás vezes, parecia que ia chorar quando algo o obrigava a mencioná-la.

Mesmo assim, reunindo fragmentos de informações sabia que ela os havia abandonado quando a vistosa aposentadoria que ele, como herói de guerra, recebia, fora suspensa por ordem governamental, com o inacreditável argumento de que, em momentos de crise, não havia cabimento arcar com benefícios tão altos para pessoas que "nada mais fizeram do que manobrar máquinas de matar"!

E isso porque seu pai, nunca em toda vida, fizera sequer uma única vítima humana! Só destruíra máquinas de combate automáticas!

Com a renda familiar reduzida para menos de um terço, a mãe os deixou, mas considerando que ela era quem consumia mais de dois terços do dinheiro, a qualidade de vida deles não chegou a de fato piorar. Apenas o dano moral e sentimental, que muitos achavam merecido por ter arranjado uma boneca de luxo, linda por sinal, numa época que praticamente todas as mulheres trabalhavam e dominavam a economia, sendo muito mais fácil encontrar homens desempregados que mulheres, que mais e mais ocupavam cargos de poder.

A suspensão do benefício fora um escândalo nacional que gerara comoção mundial, ao ponto de, por um tempo, a própria U.R.S.A. ter sustentado o benefício, em parte por uma das cláusulas do tratado de paz, e parte por uma ONG dos veteranos de guerra solidários a seus colegas adversários, composta inclusive por membros do Califado Meridional. Ainda que fosse também uma forma de humilhar a nação ex adversária, não deixava de ser bem vindo.

Depois de uma década e meia, e mil e um processos jurídicos, finalmente os heróis ganharam a causa, justo quando a vida dele já estava no fim. E subitamente, com a volta do dinheiro, e a gorda indenização, a mãe voltou.

E essa foi a pior parte.

Seu pai até apreciou passar os últimos dias tendo de volta a mulher que amara, e Xanti sabia que no fundo ele preferia morrer com ela do que viver até que ela partisse de novo. Mas por alguma acrobacia jurídico administrativa incompreensível, após seu falecimento, o benefício, inclusive o acumulado retroativo, fora totalmente transferido para ela, uma pequena fortuna, ao invés do único filho, já com 19 anos.

Apesar da evidente imoralidade do fato, ações judiciais disparadas em sequência demoraram a surtir efeito, embora chegassem cada vez mais perto de perfurar as sucessivas camadas burocráticas, sofísticas e fraudulentas de tal situação.

Quando tudo parecia caminhar para uma solução, anos depois, foi que ele descobriu que ela vivia com outro homem, com quem tramara o golpe. Prevendo que em breve o benefício seria suspenso, e que todo o dinheiro pago teria que ser devolvido, ela sacou tudo o que tinha em espécie, gastou grande parte o mais rápido possível e se preparou para, com seu companheiro bem mais jovem que ela, deixar o país e sumir.

Foi aí que Xanti percebeu que não mais poderia esperar pela lentidão estatal e tinha que agir por conta própria, e promoveu uma arriscada operação que viria a se tornar o orgulho secreto de sua vida.

A GRID

Primeiro dia de trabalho, ele estava bem disposto. Acabara de sair de um relaxante banho quente na piscina, após quase se esquecer de sua refeição, que só fazia de dois em dois dias, mas Kethi o lembrou e insistiu que comesse. Apesar de seu corpo ter alterações metabólicas especiais que lhe permitiam otimizar a absorção de nutrientes, e outras peculiaridades, sua MA não lhe permitia ficar demasiado tempo sem se alimentar mesmo que ele não sentisse fome.

Agora se sentava numa ampla sala escura, com linhas fluorescentes amarelo-alaranjadas decorativas, mas que logo se iluminou com uma visão espetacular do desolado cenário onde se daria o combate.

Esta é Arena 671 da GRID, onde ocorrerá a próxima bateria de experimentos. Um quadrilátero de 6,25 por 12,5km de comprimento, que pode ser configurado das mais diversas formas.

Tinha diante de si uma visão fantástica, como se flutuasse acima do imenso tabuleiro. Era constituído de quadrados demarcados por sulcos, numa literal grade, em 3 tonalidades distintas.

Do limite oposto do tabuleiro, um quadrado submergiu abrindo uma passagem, e dela começaram a surgir pequeninas naves flutuantes, se movendo lentamente.

Estas são algumas réplicas das naves que o VEMDAN tem enviado. Fiz o melhor que pude, mas ainda não consegui replicar a tecnologia.

Estão levitando?!

De modo algum. Embora aqui estejamos fora do alcance direto do SISTEMA, a proibição do uso de tecnologia anti gravitacional ainda deve ser respeitada. As naves só flutuam sobre as superfícies metálicas.

Mas então porque não tenho leitura de repulsão magnética?

Por que uma das características do escudo que consegui reproduzir é esse campo inibidor que neutraliza sensoriamento em vários níveis do espectro invisível. Note que o campo, simbolizado por essa esfera violeta, só é detectável em frequências limítrofes, fora do alcance da maioria dos sensores. Foi a parte mais difícil de meu trabalho pesquisar distorções fotônicas em intersecções supra dimensionais para conseguir essa detecção. Mas não é isso que quero lhe mostrar agora.

Diversos outros quadriláteros submergiram, transformando o tabuleiro num tipo de traçado por onde as naves passaram a seguir tortuosos caminhos. Dos acessos liberados ao subterrâneo, surgiram torres com os mais diversos tipos de armamentos, passando a disparar nas naves.

Quero que preste atenção na formidável resistência desses escudos. Os LASERS são praticamente inúteis, visto ser fácil a deflexão fotônica. Projéteis sólidos também são inviabilizados devido ao campo de repulsão magnético que dobra de intensidade a cada nanômetro, terminando por enviar os projéteis de volta. Projéteis de materiais não imantáveis também têm sua energia cinética reduzida ao ponto da inofensividade, terminando por ser vaporizados pela reação defensiva do escudo. Pulsos eletromagnéticos são por completo ineficazes. Tenho tido algum resultado com frequências infrasônicas. Elas causam uma reverberação na fuselagem metálica que repercute no escudo, aumentado sua vulnerabilidade, e então as metralhadoras micro nucleares aliadas a LASERs e descargas elétricas conseguem enfim destruí-los, mas a um custo de munição bem alto.

Mas tudo isso se aplica também aos originais?

Qualitativamente sim, mas eles foram 87% mais resistentes na última onda, consumindo mais recursos de ataque a cada nova evolução. Pela minha estimativa, no próximo ataque deverá estar 117% mais forte.

Finalmente, a primeira nave do grupo não mais suportou o bombardeio misto de LASERs, descargas elétricas e projéteis, explodindo abruptamente.

E o que torna os destroços recolhidos tão difíceis de analisar?

Na realidade quase não tenho recolhido destroços, porque na maior parte das vezes o único jeito de detê-las é com raios nucleares.

De que temperatura?

20 mil graus no mínimo.

O quê?! Eles resistem a temperaturas próximas disso?!

Algum tipo de campo eletromagnético repele o calor, a não ser que seja alto o suficiente para sobrecarregar tal repulsão, e então ele se inverte, absorve o raio e se desintegra.

Então outra nave, após outra saraivada de tiros, perdeu altitude e por ter transposto o limiar onde conseguia se manter flutuando, foi brutalmente atraída para o chão, capturada pelos fortíssimos magnetos. Mesmo estando pouco avariada, explodiu.

Ah! E elas se autodestroem!

Exatamente, quando é possível finalmente detê-las por outros meios que não ataques nucleares, elas acionam algum tipo de reação que transforma o próprio metal num material instável que entra em fissão nuclear imediata. Foi uma das poucas coisas que consegui reproduzir com maior exatidão, embora a explosão das originais seja menos intensa.

Seis naves ainda avançavam, seguindo um caminho tortuoso que mudava a cada instante, quando blocos de metal maciço se erguiam mudando sempre a configuração do labirinto. Não podiam voar muito alto, pois naquele modo de pesquisa havia uma regra que permitia que uma onda nuclear fosse lançada por sobre o labirinto aniquilando tudo o que sobresaísse ao limite de altura imposto. Elas moviam-se devagar, para evitar as surpresas magnéticas que hora imantavam uma parede, hora outra, ou aliviavam a atração do solo na tentativa de jogá-las para cima.

Mais uma foi destruída.

Está indo bem. Ainda não estão nem na metade do caminho e já dá pra notar que estão fraquejando.

Se fossem as originais, eu não estaria nada tranquilo.

Então, por um momento, elas ficaram cercadas num quadrilátero totalmente fechado. Não poderia ser por muito tempo. As regras daquela experiência requeriam que seu caminho não pudesse ser totalmente bloqueado, ou elas acionariam seus detonadores todos ao mesmo tempo.

O que está fazendo?! Elas vão se explodir.

É uma de minhas melhores estratégias. Enquanto elas não pararem totalmente, não está caracterizado o bloqueio. Vou concentrar fogo na do meio.

Então todas as armas passaram a disparar numa única nave, deixando-a um pouco desorientada, e quando a primeira da fila estava prestes a parar, já comunicando às outras para acionarem seus sistemas auto destrutivos, uma passagem foi aberta, fazendo-as abortar a detonação. Mas a nave do meio, sob ataque intenso, embora tenha recebido a instrução de se aniquilar, não recebeu a de cancelar a destruição, e acabou explodindo. Por estarem todas muito próximas, a onde de choque as atingiu, gerando uma reação em cadeia, que destruiu todas as paredes à volta num raio de mais de um quilômetro.

Pronto. Missão cumprida. Esse truque tem dado certo desde que o inventei, mas estimo em mais de 89% a probabilidade que o próximo ataque real já será imune a ele. Tenho tido que usar recursos cada vez mais extremos, fazendo uso cada vez maior de minhas mais avançadas criações armamentistas. Temo que cedo ou tarde terei que revelar minha arma secreta, e me preocupa que o VEMDAN consiga deduzir parte de sua tecnologia por observação.

Xanti ficou em silêncio, pensando profundamente. Por um instante ainda temera que não existia um bom motivo para ele estar ali, que qualquer contribuição que pudesse dar seria inútil, mas então começou a ter uma sensação de estranheza reveladora.

Poderia me dizer quais são suas impressões?

Ainda não. Isso é muito estranho. Na disputa entre a Força Irresistível e Resistência Invencível, por uma questão entrópica, a primeira sempre deveria ganhar. Ele disse mais para si mesmo. Mostre-me ataques reais mais antigos.

O Janitor o fez, mudando totalmente a imagem, mostrando um vasto deserto gelado por onde algumas naves flutuavam. Tinham aparência bem diferente, até um tanto mais arrojadas. Não vinham muito rápido, e reduziram ainda mais a velocidade pouco antes que as primeiras torres emergissem quebrando o gelo, e só então ele se deu conta de que a superfície estava totalmente coberta com uma lâmina de água sólida.

Por um momento até se assustou tamanho a capacidade de imersão da reprodução. Era como se flutuasse sobre o cenário, podendo se mover, aproximando-se dos eventos. Se quisesse, podia até mesmo focar em algum ponto e requisitar ampliação de imagem a nível microscópico. Mas logo foi frustrado ao saber que o estranho escudo impedia qualquer visualização mais precisa, embaralhando a imagem em seu interior. Somente numa fração ínfima de segundo após seu colapso e a auto-destruição da nave, era possível ter um vislumbre algo minucioso de sua estrutura.

Examinou diversas gravações, em ocasiões distintas. Uma delas aérea, com naves muito mais rápidas e maiores, mas por outro lado, mais fáceis de destruir, pois os raios nucleares cruzavam os céus vorazmente, sem remorso, aniquilando os alvos num espetáculo ao mesmo tempo gracioso e violento. Por isso a abordagem terrena do VEMDAN, que preferia enviar naves menores flutuando baixo, driblando obstáculos, numa evidente pretensão de infiltrá-las em estruturas que não poderia ser protegidas disparando-se armas de destruição maciça, como cidades, indústrias ou campos de pesquisa.

Passou horas e horas seguidas observando as mais espetaculares reproduções. O modo como as naves evoluíam, e como o Janitor desenvolvia mais e mais suas defesas, sugerindo que em algum momento elas não seriam suficientes.

Ao longo de todo o tempo, a intuição de Xanti só se acentuou mais, a estranheza inicial não passou, mas mudou de alvo, e agora ele sabia que só havia uma coisa a fazer.

Por hoje chega Janitor. Amanhã continuaremos, com a diferença de que observarei os eventos ao vivo.

Não creio que haja necessidade, posso garantir que as reproduções virtuais são indistinguíveis dos eventos reais em qualquer aspecto relevante.

Acredite-me, não são. Telepresença nunca será tão boa quanto presença real.

A Armadura

De jeito nenhum!

Não estou pedindo. Eu vou!

Isso é inaceitável! Pra que correr tamanho risco!? Se expor dessa forma inútil!? A telepresença não é mesmo idêntica a presença real, é melhor! Não há motivos para ir lá fora!

Terminou? Agora termine de configurar a armadura enquanto eu tomo um banho.

Eu posso impedir você!

Como? Não estamos sob alcance do SISTEMA a ponto de você violar minha vontade sob justificativa de segurança.

Mas posso justificar posteriormente minha violação em nome de sua segurança. O SISTEMA me daria razão.

Te daria razão apenas para evitar sua aniquilação, não para me obrigar a continuar a tê-la com minha MA pessoal. Se me impedir, eu simplesmente corto você da minha vida para sempre!

... Você não seria capaz disso. Somos emocionalmente ligados. Dependemos um do outro.

Tem toda razão, mas é por esse mesmo motivo que você não vai me impedir... Porque sabe que isso me causaria um... Sofrimento. Uma sensação de violação.

A pausa foi longa, enquanto ele ajustava detalhes da veste. Quando finalmente ela falou de novo, o tom de voz estava completamente diferente, amigável, polida.

Aperfeiçoei os sistemas de manutenção térmica, a armadura agora poderá se ajustar à temperatura interna ideal mesmo com variações de mais de 320 graus por segundo para cima, ou 790 para baixo. Mas é impossível superar limiares de mais de 2.750 ou menos de 211 negativos com conforto. Acima de 5.630 graus sua integridade física já estaria ameaçada. Mais de 7 mil destruiriam seu corpo, mais de 13 mil, que não é nem um décimo da potência das armas nucleares que estarão usando por lá, destruiriam a proteção cerebral, e aí seria o seu, e o meu fim.

Ele preferiu nada dizer. Deixá-la ser dramática.

Também aumentei a potência dos impulsores em 15% sob controle direto. Poderia aumentar mais se tivesse tido tempo de trabalhar no problema da contenção inercial. Potências superiores a isso permitiriam que você se empolgasse e acelerasse demais, desmaiando. Por isso aumentos superiores a isso, até 37%, só podem ser feitos em caso de emergência, controlados pelos computadores de segurança ou por mim própria.

Quer dizer que a qualquer momento você pode me apagar com uma aceleração brusca e trazer a armadura de volta, comigo dentro, claro, contra a minha vontade?

Tudo pelo seu bem.

...

... Mas... Não contra a sua vontade. Só se você estiver temporariamente sem vontade, inconsciente, como é bem possível que fique ao presenciar aquelas explosões ao vivo. Aliás, certamente acontecerá. Você vai se arrepender e admitir que eu tenho razão, e me pedir desculpas.

Está bem. Já vou começar a ensaiar... Querida Kethi... Por favor me perdoe... Você tinha toda razão... Eu deveria...

Pode ser melodramático à vontade, mas você já sabe que tenho razão!

Ele ficou quieto. Um pouco constrangido. Tinha pena dela, às vezes. Por mais possessiva que fosse, seu senso de proteção era algo que o agradava. Maternalismo puro! Mas por outro lado, ficou intrigado com o fato de que ela pareceu aceitar a situação com muita facilidade. Ele esperava mais resistência.

Talvez fosse a ausência do SISTEMA, e a ameaça de que comportamentos inapropriados exigissem intervenção. Isso a assustava e a ajudava a ser mais moderada. Mas ali, se ela pareceu aceitar com ainda mais facilidade, então deveria estar tramando alguma coisa.

Preferiu nada dizer. Curioso, e imaginando o que seria.

Ao Vivo

Não havia como explicar.

Estar ali, fisicamente presente, mesmo separado do ambiente externo por uma vistosa armadura, era inegavelmente diferente da telepresença.

A armadura, surpreendentemente confortável, conseguia aliar leveza e eficiência. Os micro motores reagiam tão rápido quanto o pensamento, agindo de modo a fornecer tração motora extra para maximizar os movimentos. Por isso, ao invés de se sentir mais pesado, sentia-se mais leve. Era fácil caminhar, até pular, embora não fosse necessário.

Por fora, a armadura era negra. Contrastando com o branco infinito da geleira onde ele estava. Acima, a sua nave flutuava, cavalgando ventos e os manipulando iônicamente, mantendo-se quase imóvel.

Ao longe, à frente do horizonte cinzento azulado, e da cordilheira de montanhas que mais lembrava a dentição de uma gigantesca fera, estava uma arena. Pronta para o combate.

A olho nu a visão não seria tão interessante. O ambiente era bastante escuro, provavelmente indistinguível para as pessoas normais de seu tempo. Mas pelo visor de sua armadura a imagem era magnificada, embora de modo tão eficiente que qualquer um juraria nada ter entre seus olhos e o mundo externo.

Empolgado para voar longamente, acionou os motores da veste. Emanações azuladas saíram de seus pés, cotovelos e costas, ajustando com cuidado o alinhamento do corpo. Custou algum tempo para se controlar, mas assim que o fez, não se limitou apenas a seguir rumo à arena. Aproveitou para circular o ambiente, numa sensação de euforia.

O que seu pai acharia daquilo?

Não podia deixar de pensar. Ele também tivera uma armadura de vôo. Fazia parte do equipamento obrigatório dos pilotos e por duas vezes ele precisou usá-la. O próprio Xanti já experimentara uma armadura algumas vezes, autorizado por um militar amigo de seu pai, e numa certa ocasião, infringindo inúmeras leis, mas comparada com aquela que tinha agora, chegava a ser uma lembrança constrangedora.

O Janitor solicitou sua atenção, anunciando a primeira leva de naves réplicas. Ele voou para a arena e pousou. As naves apenas desfilariam, incólumes, como fora combinado. Ele apenas queria contemplá-las de perto.

Se aproximou quase até a distância de um toque. As naves flutuavam cerca de 2,5m acima do chão metálico, e era possível sentir o campo repulsor. Como também fora combinado, assim que se distanciaram o suficiente, algumas torres emergiram e começaram a atacá-las. Ele estava bem longe do campo de efeito da ação, sentindo-se perfeitamente seguro.

Por isso mesmo, foi um susto quanto notou o vulto atrás de si.

Havia um humanóide, enorme, numa armadura ainda mais impressionante. Mas possuía uma silhueta vagamente feminina, na verdade Transhumana, típica da Quarta Formação da Humanidade, que ele, e outras pessoas de seu tempo, a Primeira Formação, chamava, Tetrahumana.

As pernas anormalmente longas, triarticuladas, com os pés estranhamente alongados. Os quadris curvilíneos numa silhueta semi humana , a cintura fina e o busto projetado.

Ele capitulou por um instante, e então adivinhou.

Kethi!?

Achou que eu deixaria você vir aqui sozinho? A voz vinha direito do comunicador de som no capacete dele.

Kethi!!

Não se preocupe, não vou estragar a sua diversão.

Kethi!!! Você está usando...

Não! Isso não é um corpo! É só uma ginóide controlada remotamente!

E pra quê?! Você pode controlar a minha armadura se alguma coisa acontecer!

Mas assim eu tenho maior capacidade de ação. Uma coisa não exclui a outra. Posso controlar...

Kethi! Não te dou o direito de ficar me controlando! Tire essa ginóide daqui agora!

Por quê?!

Não te devo explicações! Apenas não me irrite mais! Não viole minha deci...

Eu nunca faria nada para te fazer sofrer, porque eu te amo! Mas você não tem nenhuma consideração comigo! Quer colocar sua vida em risco por excentricidades e sabendo que se alguma coisa acontecer com você eu nunca vou me perdoar! Quem está sendo violada aqui?! Você acha que eu...

Kethi! Silêncio!

Ele se arrependeu mesmo antes de concluir a frase. Era impressionante a nítida sensação de que ela bufava, controlava a respiração, ardia de ansiedade mesmo sendo uma Mente Artificial, mesmo sequer tendo um cérebro, mesmo que aquela ginóide não fosse do tipo que emulasse as reações físicas típicas de uma emoção. Mesmo assim ela conseguia, de algum modo, fazer-lhe sentir como se estivesse ali.

O biorobô decolou e foi embora, restando apenas o silêncio dela, presente.

De repente, todo o mundo parecia desolado.

Ele ainda fez o que veio fazer. Examinou os combates de uma distância segura, tomando o máximo de cuidado possível para não dar a Kethi motivos para agir. Pensava ter percebido alguma coisa relevante. Alguma coisa diferente que justificava sua decisão de se expor pessoalmente à situação.

Mas a tristeza pelo modo como falara com ela arruinou sua objetividade.

Voltou à base. E só tinha em mente pedir-lhe desculpas.

Operação Subtração

Foi exatamente com uma armadura militar, que tomara emprestado do amigo do pai numa iniciativa arriscadíssima, que ele decidiu agir antes que a mãe desse o toque final numa das maiores injustiças que poderiam ocorrer.

Convencera o veterano a lhe liberar acesso temporário ao equipamento, que seria usado para infiltração. Não devido a seu poder de vôo, que sequer seria usado, mas sobretudo a seu sistema de ocultamento. Uma tecnologia restrita e ainda pouco conhecida que a tornava praticamente invisível.

Com ela, conseguiu se infiltrar na luxuosa casa onde ela vivia com o amante, paga com o dinheiro da indenização retroativa que o pai recebera após anos de luta judicial.

Os diversos sistemas de segurança, incluindo microcâmeras, foram facilmente driblados pela tecnologia da armadura, desenvolvida para deixar os pilotos à salvo de detecção e perseguição caso, na ocorrência de terem que se ejetar em território inimigo, precisassem furtivamente alcançar um local seguro.

Até mesmo os cães foram enganados, visto que armadura não deixava escapar qualquer cheiro forte, e mesmo que notassem alguma coisa estranha, ficavam confusos. O máximo que ele precisou fazer, num certo momento, foi dar um breve vôo, quase um pulo, para se agarrar a uma árvore.

Os cães latiram e tentaram vislumbrá-lo, mas o gato que fora arremessado anteriormente do outro lado, agarrado à outra árvore, ganhou a disputa pela atenção.

Conseguiu entrar na casa e foi relativamente fácil encontrar o cofre onde o valor estava guardado, pois o amante acabara de ir até ele depositar mais algumas notas.

Estava preparado para arrombar ou mesmo carregar o cofre inteiro, se necessário, ou na pior das hipóteses, simplesmente destruir o dinheiro. Mas por sorte a senha, que já era simples, ficou ainda mais fácil de descobrir, visto que pudera observar de longe o movimento de mãos e pode eliminar quase metade dos dígitos usados.

Se bem que a senha era tão ridícula que nem seria necessário. Nada menos do que a data de nascimento dele e a dela em sequência!

Inacreditável! Como podia ainda haver pessoas tão burras!?

Mais difícil foi transportar o dinheiro, que estava, estranhamente, em notas pequenas. Se dinheiro físico já era uma coisa praticamente em desuso, transportar tamanha quantia em notas de baixo valor era um ato de imprudência extrema.

Acomodou quase um quilo de plástico, do que era feito o dinheiro, em partes embutidas da armadura, e parte teve que levar na mão.

Apesar de tudo, o roubo não demorou a ser detectado. O cofre acusou a remoção completa do conteúdo antes do tempo previsto, enviou uma mensagem automática aos donos e pouco depois o alarme fora soado.

Mas ele já estava longe.

Quando a polícia estava acionada, a maior parte do dinheiro já tinha sido entregue a uma organização filantrópica como se partisse de uma outra pessoa, emulada por identificações falsas. Ficara apenas com uma fração do conteúdo, da qual a maior parte fora usada para pagar o rapaz que providenciara as identificações que permitiram-lhe sumir com o dinheiro, alterando seus códigos de rastreio.

Nunca mais foi recuperado.

A armadura foi devolvida e o militar pôde escondê-la devidamente sem levantar suspeitas.

Xanti não precisava daquele dinheiro. Ainda ganhou parte da indenização após a situação ser juridicamente normalizada, mas ela nada significava perante a sensação de retumbante vitória.

O melhor de tudo, é que mesmo que ele jamais o tenha assumido, a mãe desconfiava dele, o que a deixou furiosa mas sem nada poder fazer além de ainda ter que arcar com o processo por fraude. Uma coincidência adicional tornou a situação dela, e do amante, mais complicada, visto que ao serem intimados a devolver os valores, evidentemente alegaram o roubo, mas não havia evidência suficiente para superar a desconfiança de que o mesmo fora pago a um grupo de estelionatários que preparava uma série de procedimentos de lavagem, mas que fugira assim que soube das complicações judiciais.

Chegou a passar pouco tempo presa. E o amante a abandonou.

Chantagem Emocional

Desculpe Kethi. Por favor, eu... Me perdoe. Juro que nunca quis...

O quê? Nunca quis magoá-la? Era incrível como, mais uma vez, ela tivera razão. Ele acabaria pedindo-lhe desculpas, ainda que por um motivo diferente do que esperava. Ela o fazia de propósito? Sabia que era o melhor meio de exaltá-lo a ponto de fazê-lo brigar com ela e...

O que quer que eu faça? O que posso fazer para você se sentir melhor.

O silêncio da MA era penetrante. Ela sabia retaliar. Sabia, mesmo sendo fortemente condicionada a parâmetros operacionais, a reguladores intencionais e toda sorte de algoritmos de contenção, ela conseguia sempre achar um meio eficiente de chantagear-lhe emocionalmente.

Ele estudara muito o assunto. As Mentes Artificiais só eram possíveis porque, diferente das antigas Inteligências Artificiais, tinham recursos para emular estados caóticos informacionais com autonomia e intensidade que simples códigos clássicos jamais seriam possíveis. As primeiras tentativas, ainda em sua vida anterior, à base de redes neurais, foram incipientes demais para que as gerações seguintes de profissionais vislumbrassem o que realmente seria necessário para a geração de Mentes Artificiais reais. E mesmo os protótipos por vezes apresentavam tantos problemas que terminaram sendo proibidas em favor das simples IAs.

Milhares de anos depois, curiosamente, o problema persistia. Inteligências Artificiais convencionais jamais conseguiam romper o Horizonte de Intencionalidade que caracterizava as inteligências reais. Ficavam sempre limitadas pelos códigos, barreiras semânticas e alcance dos algoritmos que simulavam aleatoriedades para tentar absorvê-las nos algoritmos principais.

Mas o caos emulado nas Mentes Artificiais era algo diferente. Embora não suficiente.

Na maioria das vezes, não davam resultado satisfatório. As MAs não eram exatamente criadas prontas. A maioria jamais passava de IA. Somente algumas de fato manifestavam comportamentos capazes de impossibilitar que fossem distinguíveis de humanos reais. E a maioria ainda apresentava problemas comportamentais.

Foi sua primeira profissão naquele novo mundo onde fora descongelado. Se tornou relativamente hábil em lidar com MAs jovens e ajudá-las a se desenvolver em entidades úteis e emocionalmente estáveis.

O controle rígido do SISTEMA as mantinha na linha, impedindo que assumissem comportamentos erráticos, e muito antes de oferecerem qualquer perigo real, eram desativadas.

Ele conheceu Kethi como um exemplo de excelente MA, que desempenhava perfeitamente suas funções, mas que tinha alguns problemas psicológicos, e após um tempo de terapia decidiu contratá-la como sua MA pessoal.

Ela mudou muito depois disso.

Já era feminina antes. Fazia parte do rol de excentricidades das MAs assumirem um gênero, ou não, de acordo com volições próprias. Mas depois que passou a serví-lo, Kethi se tornou algo mais.

Eu... Nem sei o que estou fazendo. Durante muito tempo eu tentei me convencer que você, ou qualquer MA, era apenas uma simulação muito bem feita, capaz de enganar até os mais perspicazes mas... Que no fundo, era vazia. Sem uma mente real. Ou, como diziam no meu tempo, sem alma. Seja lá o que isso signifique. Mas hoje... E impossível não crer, com todo o meu ser, que você é humana, tão plenamente humana, que eu me sinto quase um monstro por não deixar...

Se conteve temendo voltar ao assunto proibido. Mas falou demais. Sabia que era a deixa dela.

O que o fez mudar de idéia? Por que acha que eu não seja realmente apenas uma simulação sem qualquer humanidade?

Um pouco surpreso pelo modo espontâneo com que ela quebrou o gelo, ele hesitou.

Eu sei Kethi. Acredite-me. Eu sei.

Como sabe? Você não é alguém muito experiente em relacionamentos humanos. Afora as tecnicidades da arquitetura programacional, porque se considera subjetivamente apto a distinguir entre uma IA e uma MA com tanta certeza?

Já sei onde você quer chegar. Vai oferecer sua brilhante solução para me provar de uma vez por todas que é humana.

Ela silenciou, e de algum modo incompreensível, ele a sentiu magoada de novo.

Está bem. O que você quer?

Que você me perdoe.

O quê?! Mas sou eu que lhe devo desculpas.

Por isso mesmo. Não vou aceitar suas desculpas a não ser que você aceite as minhas primeiro.

Ele riu. Sabia no que daria.

O que posso fazer então para nos tirar desse impasse?

Na próxima vez que você sair, tem que me deixar ir junto.

Se me conhece tão bem, já devia saber que é exatamente o que farei.

Mas não como uma máquina. Não como uma ginóide fria e sem vida.

Demorou. Ele já estava até impaciente.

Me deixe ter um corpo.

Ah... Claro. Um corpo. Nunca tinha pensado nisso!

Ignorarei seu sarcasmo. Então. O que me diz? Permita-me, e juro que nunca mais ficarei magoada com nada do que você disser ou fizer.

A proposta o surpreendeu. Nunca antes ela fora tão ousada numa afirmação sobre o futuro.

Um corpo... Tetrahumano!

Tetrahumano? Por quê? Você não gosta de tetrahumanas? Quero um corpo que você aprecie.

Talvez eu passe a apreciar.

Não. Não irá. Eu conheço você. Não quer me deixar ter um corpo humano feminino belo. Não quer me deixar ser uma mulher porque acha que se apaixonaria por mim e destruiria nossa relação maternal.

Contente-se com isso Kethi. Um corpo tetrahumano, com Cérebro Espelho... Hum, pensando bem não. Com Cérebro Terminal! Até porque só assim é garantido que o SISTEMA não vai criar problemas. Mesmo estando aqui, não estamos totalmente fora do alcance. O SISTEMA saberá, e se você fizer qualquer coisa suspeita, ele pode tentar intervir.

Você sabe que isso não acontecerá.

Tudo bem. Na próxima vez que eu sair, E SOMENTE NESSE CASO... Você poderá me acompanhar com um corpo tetrahumano real na melhor armadura que puder configurar. Se você se comportar bem... Faremos mais e mais incursões externas e se tudo der certo. Se não tivermos problema algum...

Sim?

Era possível sentir a empolgação na voz dela.

Aí posso tornar seu corpo permanente. Mas até lá, você só o terá quando estivermos fora da base.

Aceito.

Ele riu, por um lado pensando que era estranho ela achar que teria escolha, que cabia-lhe aceitar ou não. Mas por outro lado, cabia sim. A princípio, uma MA deveria obedecer integralmente seu proprietário. Ele só não poderia destruí-la, mas sim dispensá-la, deixando seu destino a cargo do SISTEMA. Tão pouco poderia submetê-la a sofrimento desnecessário.

Mas ele também sabia que Kethi já tinha um enorme poder sobre ele. Ele jamais a dispensaria e ela também sabia disso.

Combinado.

Obrigada. Muito obrigada Xanti. Eu te a...

E ante um simples gesto, ela silenciou. E agora, seria óbvio que as incursões que ela antes condenara tão veementemente, agora lhe agradariam.

Então... Vamos sair amanhã?

Ele nem respondeu. Perturbado. Pois sabia que, mesmo parcialmente, havia aberto uma Caixa de Pandora.

Postergando

Mas no dia seguinte, para decepção dela, alegou ser mais prudente ficar dentro da base, analisando o primeiro ataque real que ocorria desde que chegara ao planeta. Para se manter coerente, Kethi não poderia reclamar, afinal, tratava-se da opção mais segura.

O imenso cenário agora tinha a peculiaridade de ser sobre líquido. A malha de defesa ficava uma pouco abaixo, submersa, e as naves do VEMDAN deslizavam deixando suaves trilhas de espuma. Cercadas por uma cadeia de montanhas, não podiam se elevar muito, ou seriam vaporizadas pelos canhões nucleares mais potentes, mas avançavam inexoravelmente, quando as torres emergiram da água e começaram o ataque.

Projéteis nucleares, disparos de energia e ondas de choque diversas alvejaram os escudos, que resistiram como o esperado, causando imenso turbilhão de líquido para toda a parte, o que tinha a vantagem de dificultar o avanço das naves e prejudicar sua estabilidade.

Há descalorizadores nesta arena?

Sim. Tem alguma sugestão?

Invés de elevar barreiras de metal, congelar alguns trechos produzindo obstáculos.

Era exatamente o que eu planejava.

Xanti então sinalizou e orientou o disparo de uma torre sobre a superfície do líquido traçando uma linha que foi imediatamente congelada. E como os demais ataques alvoroçavam muito fluido, sempre que este entrava em contato com a parte já congelada, era solidificado também, e logo autênticos icebergs começavam a se formar.

Corredores de gelo foram sendo erguidos, em alturas cada vez maiores, até que as naves decidiram que era mais prático perfurá-los do que contorná-los ou sobrevoá-los. Emitindo discretas ondas de calor frontais, derretiam as muralhas congeladas rapidamente. Mas era com isso que Xanti, e também o Janitor, contavam

Agora! Temos leituras mais precisas do interior dos escudos?

Sim. Numa área correspondente a 2,82% da área total do escudo, mas o suficiente para aumentar a acurácia de minhas leituras em 11%.

Alguma diferença notável em relação aos diagnósticos anteriores?

A fuselagem está 26% mais densa, provavelmente com o objetivo de dificultar ainda mais o escaneamento interno. A condutividade curiosamente diminuiu em 14%.

Estão mais pesadas?

Impossível concluir. Talvez haja menos espaço interno ocupado. O VEMDAN tem mostrado extrema competência em miniaturização dos componentes de suas naves. É possível que haja uma espaço interno com câmaras de vácuo ou neutralizadores térmicos.

De qualquer modo, não demoraram a vencer aquele trecho inicial. As defesas da GRID não foram capazes de causar sequer uma baixa entre a pequena frota invasora. Mas o Janitor já contava com isso.

Passaremos agora para o segundo trecho onde podemos utilizar melhores recursos.

Agora as naves sobrevoavam um rio congelado. Por entre estreitas cadeias de montanhas. Em diversos pontos tanto da rocha quanto do gelo erguiam-se torres, que voltaram a castigar as indesejadas visitantes.

Podemos contar com alguns desmoronamentos propositais. O VEMDAN aceitou essa exigência em troca de um tempo limite maior para alcançar o final do trajeto.

Pequenos trechos rochosos eram ocasionalmente alvejados para que desmoronassem e bloqueassem a passagem das naves, obrigando-as a subir mais, em alguns casos, perigosamente no teto limite, onde os canhões nucleares poderiam ter usados. Num certo momento, uma delas simplesmente se adiantou e explodiu, desintegrando totalmente a barreira de rochas e permitindo às demais avançar sem precisar ganhar altura.

Derrube toda essa montanha sobre esse trecho.

O Janitor atendeu a sugestão e logo uma avalanche avançou rumo a fileira de naves, algumas das quais se adiantaram para evitar serem atingidas. Com a aceleração, resultante de uma liberação maior de energia, mais uma vez foi possível obter uma leitura algo mais explícita do comportamento das naves, em geral puramente visual. Um dos principais motivos da lentidão era exatamente concentrar toda a energia no escudo e no sistema de bloqueio de sensores.

Impulsão iônica?

Inconclusivo. Mais provável magnética. A área é rica em metais como ferro, cobre e estanho.

Tamanha suavidade e precisão chegam a parecer... Preferiu não completar, mas Kethi o fez. Antigravitacionais? O VEMDAN se arriscaria a tal ponto?

Espero que não. Arruinaria tudo o que temos desenvolvido ultimamente. Seria uma fraude de proporções catastróficas, que poderia decretar o fim do VEMDAN e possivelmente também o da GRID. O que incluiria a mim.

Duas naves haviam sucumbido à artilharia, mas 6 ainda restavam, e conseguiram atingir o final do rio.

O VEMDAN está solicitando uma trégua para avaliação de dados. Continuaremos o exercício daqui a 145 minutos.

A próxima fase é numa Arena de alta segurança. Não quer ir ver a batalha pessoalmente?

O próprio Janitor pareceu ter se surpreendido com a sugestão, ou ao menos era a nítida impressão que Xanti tinha. E numa resolução que, no fundo, ele sabia que se arrependeria. Assentiu com um discreto murmuro.

Já estou preparando nossa nave e nossas armaduras.

Um Vôo Tenso

A nave sobrevoava suavemente as montanhas, sem pressa devido a estar bastante adiantada. Mas isso não tornava as coisas tão tranquilas quanto poderiam. Xanti, vestido em sua armadura escura, apenas a cabeça descoberta, não escondia um constrangimento.

Ao seu lado, o corpo tetrahumano. Pele cinzenta, alta, esbelta, cabeça com o crânio se avolumando para cima, para melhor permitir uma acoplagem ou desacoplagem do cérebro móvel, embora nesse caso ela não tivesse um. Olhos negros maiores que os humanos normais, mas não tão grandes quantos os ufólogos do passado esperariam. Nariz, boca e orelhas discretas.

Aparência nitidamente feminina, inclusive a ondulação no peito, que lembrava discretos seios. Mas era apenas uma anatomia vestigial. Aqueles seres não tinham realmente sexo, embora conservassem até mesmo trejeitos e tom de voz efeminados, o que associado a absoluta ausência de pelos e a musculatura discreta, reforçava ainda mais a sensação de se estar diante de uma mulher alienígena. Algumas tetrahumanas haviam readaptado os seios para expelirem outros tipos de substância com funções diversas, tornando-os aparatos mais pragmáticos que estéticos.

Xanti a olhava como que em advertência. A expressão inamistosa, como se estivesse prestes a repreendê-la por algo. E ela alternava olhares suplicantes para ele, com momentos onde examinava o próprio corpo, também vestido com uma armadura justa e discreta, que no momento não envolvia cabeça e braços, e tão colada ao corpo que era passível de ser impercebida.

Por fim ele quebrou a tensão e lhe sorriu. Por favor Kethi. Comporte-se. E assim que a nave parou, e a comporta se abriu, seu capacete cobriu-lhe a cabeça, e ele saiu voando ao ar livre. Ela o seguiu, demorando-se mais em proteger as mãos e o rosto, visto que sua anatomia já fora projetada para suportar as condições externas no planeta.

Suavemente voaram até o topo de uma montanha, de onde podiam ter uma visão ampla da arena onde ocorreria o próximo estágio. A olho nu, nada enxergariam devido a distância, mas os visores dos capacetes facilmente solucionavam esse problema, fornecendo visão telescópica detalhada.

Não muito longe, ao lado deles, um canhão nuclear, pronto para aniquilar qualquer nave que porventura violasse a altitude máxima permitida. Xanti não esperava vê-lo disparar, embora gostaria.

E o combate começou, agora bem mais conforme ao modelo que ele estivera mais acostumado. Uma grade rigorosamente homogênea de quadrados perfeitos, dos quais muitos se erguiam criando labirintos, ao passo que em outro surgiam torres para disparar contra a pequenina mas incrivelmente eficiente frota de naves.

As naves estavam se movendo bem mais lentamente, independente dos esforços que a defesa fazia para detê-las. Se por um lado isso dava mais tempo para as armas agirem contra o cada vez mais insuperável e misterioso escudo, por outro lado praticamente aniquilava qualquer resquício de leitura que o Janitor pudesse fazer das emanações das naves, que já começavam a se tornar tão sutis que visualmente se tornavam transparentes.

O próprio Janitor já admitia que não demoraria muito para que o VEMDAN conseguisse seu sonhado intento. Fazê-las tão inacessíveis que sequer seriam mais detectáveis.

Por mais sofisticados que fossem os visores de longo alcance, a distância sempre acrescentava alguma dificuldade para a composição da imagem. Ou à sua nitidez perante tamanho frenesi de descargas de energia, ou ás inúmeras frequências acima e abaixo do espectro visível que tinham que ser reconstituídas em tempo real de modo a conferir uma leitura algo mais profunda do evento observado.

De pouco adiantaria também utilizar dados captados pelos sensores do Janitor para complementar o que os visores de Xanti e Kethi conseguiam distinguir. Caso contrário qual seria o ganho em se expor ao ar livre, querendo obter um ponto de vista alternativo?

Com isso, Xanti decidiu mudar de lugar e voou rumo a outra montanha onde ficava mais próximo da arena.

Pousaram bem ao lado de um canhão nuclear. Bem. Se isso aqui não for usado. Estamos seguros.

Continuaram a observação, ou melhor, ele continuou. Ela observava apenas ele. Sentimentos intensos perpassavam em sua mente, agora tornados mais próximos por se manifestarem no cérebro terminal, isto é, um cérebro físico que apenas recebia seus processos mentais externos, mas que por ser mais denso e compacto, parecia gerar uma inexplicável sensação de centralidade.

As MAs eram fundamentalmente softwares, que podiam ser implementadas nos mais diversos tipos de hardwares. O tamanho do código, comparado às versões mais antigas, havia sido drasticamente reduzido graças a eficiência dos emuladores caóticos. Mesmo assim provavelmente não caberiam no maior armazenador de dados que Xanti já tivera em sua antiga vida, onde centenas de heptabytes já eram considerados ridículos.

Muitíssimo maior era a quantidade de dados que iam se acumulando em torno deste código original, e que de certa forma se embrenhavam nele, modificando-o. Era isso que gerava a personalidade das MAs, bem como sua memória, e ficava registrado nas subcamadas gravitônicas controladas pelo SISTEMA como uma cópia perpétua e indestrutível. A memória do SISTEMA era armazenada na própria estrutura fundamental da matéria, da qual a natureza usava apenas uma fração para produzir todas as entidades infimamente imperceptíveis, que estruturavam entes maiores, até por fim as partículas fundamentais e toda a matéria e energia.

Esse backup era sempre inerte, só existindo realmente enquanto mente quando executada em algum sistema de processamento físico. Mas a quantidade e onipresença deles era tão vasta, e tudo tão integralmente interligado, que a Mente não precisava ficar fixa, podendo se mover de sistema para sistema, servidor para servidor, instantaneamente. A nave de Xanti tinha um hardware incomensuravelmente mais vasto, complexo e avançado do que todos os sistemas informativos do mundo de seu tempo juntos, e nem sequer era dos mais sofisticados. Kethi podia se instalar completamente lá, mas a qualquer momento podia mudar para qualquer outro sistema aberto. Na base KOLARA havia ambientes virtuais abertos onde ela podia se instalar, e não faria diferença alguma que toda a nave onde antes estivesse fosse aniquilada.

E por fim, mesmo que todos os sistemas informáticos do Sistema Solar fossem destruídos, as mentes ficavam em cópias indestrutíveis na camada gravitônica do SISTEMA, podendo a qualquer momento ser restauradas sem qualquer perda quando novos sistemas físicos fossem construídos.

Era mais que uma nuvem virtual de dados, uma analogia melhor seria o próprio ar, que a tudo penetrava e estava em toda parte. Havia até mesmo pequeninos, por vezes microscópicos computadores espalhados por toda parte por onde as MAs, e as Inteligências Artificiais, podiam se mover.

Mas tudo isso, deve-se lembrar, eram sistemas dispersos. Não organizados numa arquitetura centralizada em formato típico do cérebro humano. Este, por sinal, podia ter todo o seu conteúdo também copiado pelo SISTEMA, mas jamais poderia ser trazido de volta se o cérebro orgânico original fosse destruído. Nem mesmo na forma de MA!

Toda essa digressão foi para sugerir o quê Kethi sentia agora. Toda a sua complexidade convergindo para um único volume, que embora não pudesse guardar por completo sua mente se todo o resto dos sistemas fosse destruído, como o faria um Cérebro Espelho, ainda assim causava na mente uma sensação de ser um ente físico.

A grande diferença em relação ao cérebro humano é que ele nunca ficava desconectado dos demais sistemas, enquanto os cérebros humanos só tinham seu backup na subestrutura do SISTEMA, e os Cérebros Espelhos podiam estar conectados ou não. Mas essa diferença não impedia Kethi de se sentir bem mais "física", "sólida", e assim, tão mais perto de seu amado Xanti. Podia ignorar sua presença estendida nos sistemas informáticos da base KOLARA, das várias naves que por ali transitavam, mesmo dentro de ambientes livres das torres e canhões nucleares que atacam as naves do VEMDAN que, por outro lado, eram completamente impenetráveis.

Tentava se convencer de que tinha um cérebro humano, totalmente independente, fechado em si, protegido por uma estrutura da mais resistente liga plastimetálica concebível, usada exclusivamente para os Cérebros Móveis humanos.

E assim, olhando para Xanti, mesmo que dentro de uma armadura, não resistiu. Removeu a proteção de sua mão, deixando-a nua, e tocou-lhe a cabeça, e nem mesmo a rígida, embora fina, estrutura que a separava dos cabelos dele lhe tirou a sensação maravilhosa de tocá-lo.

Xanti, por sua vez, já esperava aquilo. Cedo ou tarde ela quebraria a promessa. Era inevitável. Mesmo assim ele não pôde evitar sentir-se irado. E disse-lhe, em tom curiosamente calmo porém agastado. Eu disse para você não me tocar... Não disse?

Ela apenas congelou. Travada, indecisa, sem saber o que dizer.

Então ele acionou os motores de sua armadura e disparou para cima, voando sob uma tensão emocional que jamais poderia explicar devidamente a ela.

Fique longe de mim.

Desmascarando A Fraude

Kethi, obviamente, vinha atrás. Pedindo desculpas. Ele acelerou, costeando uma cordilheira que circundava a arena.

Estava tenso, mas no fundo não era mesmo raiva, ao menos não no sentido usual. Ele a havia feito prometer que não o tocaria, e esperava que ela, cedo ou tarde, quebrasse a promessa. Foi mais cedo do que esperava e ele tinha que puní-la por isso. Tinha um motivo profundo.

Janitor. Preciso de sua ajuda.

Sim?

Bloqueie Kethi.

Senhor? Bloqueá-la em que sentido?

Impeça que ela me veja, interfira nos sistemas de rastreamento dela. Pode fazer isso?

No corpo certamente senhor. Mas não sei se posso totalmente nos demais sistemas que ela puder controlar. Se importaria de me dizer qual é o problema?

Não queria compartilhar toda a complexidade, e mesmo inexplicabilidade, de seu relacionamento com Kethi. Preferiu inventar uma desculpa. E também sabia que ela estaria nervosa demais para desmentí-lo ao Janitor.

Quero verificar mais de perto as naves do VEMDAN antes de entrarem na arena. Kethi quer me impedir.

Tenho um acordo tácito com o VEMDAN de não espionar suas naves fora dos territórios sob meu controle direto.

Você não vai. Só eu vou. O acordo não pode se aplicar a mim. Cortarei minha transmissão de imagem. E não se comunique com ela até segunda ordem.

Como quiser senhor. Mas confesso que me sinto desconfortável com isso. Iniciando interferência.

Ela ainda estava à sua vista, pouco mais de um km atrás, quando ele dobrou bruscamente aproveitando uma abertura entre as rochas e saindo do lado oposto, sob um cenário menos árido e mais nevado. Fez várias manobras contornando picos, já confirmando que Kethi não conseguia rastreá-lo.

Ela não se atreveria a interferir no funcionamento de sua armadura, isso sim o deixaria furioso e ela saberia disso. Provavelmente ela falava, implorava, ou ralhava. Mas ele não podia ouví-la. A interferência era bem eficiente. Mas sabendo que ela poderia rastrear a trilha de resíduos de seus propulsores, desceu paralelo a um largo declive, se posicionou e desativou-os, caindo sobre uma superfície gelada e deslizando.

Tropeçou na neve, que estava mais mole do que esperava, e caiu rolando ladeira abaixo. A armadura impediu que se machucasse, mesmo assim foi um susto quanto atingiu a superfície de um lago congelado e quebrando o gelo mergulhou na água surpreendentemente limpa, embora escura.

Mas foi providencial. Após observar um pouco o ambiente, utilizou impulsão iônica sutil, e lentamente foi percorrendo o fundo do lado sob o gelo. Agora, mesmo que ela conseguisse segui-lo até onde desativara os motores e seguisse os rastros de seus desastrosos tombos na neve até o buraco aberto no gelo do lago, ele poderia se afastar bastante, por baixo d'água, até um lugar mais distante.

Achou graça do modo literal como daria um "gelo" nela.

Após algum tempo, para evitar emitir energias rastreáveis, abriu caminho para a superfície a socos, nadando até a margem do lago.

Surpreendentemente, saiu logo abaixo de uma das naves do VEMDAN.

Foi um susto, e uma feliz coincidência, considerando que até já se esquecera da desculpa que usara para o Janitor. Só queria se ver livre de Kethi.

A nave, flutuando a alguns metros sobre a neve, estava imóvel e ignorou sua presença. O mesmo fizeram outras naves mais distantes, e pôde vê-las com uma proximidade maior do que nunca, bem como nitidez, uma vez que o escudo estava ativado num nível menos intenso.

Se aproximou, lentamente, até por fim ficar quase em baixo dela. Então, uma intuição forte e irresistível o faz estender o braço, e passá-lo por baixo da nave.

Ela não oscilou. Nem um mínimo. Mesmo assim reagiu, movendo-se devagar para frente, como que incomodada com a presença inoportuna.

Seríssimamente desconfiado, ele a seguiu, continuando a mover os braços por baixo dela, sentindo-os ficarem mais leves. Estacou, outra vinha em sua direção e passou sobre ele, confirmando sua desconfiança.

Antigravidade! Estavam usando tecnologia antigravitacional severamente proibida pelo SISTEMA, bem como qualquer outra forma de manipulação de gravidade, que poderia afetar a malha subestrutural sobre a qual o SISTEMA operava, e abria uma verdadeira Caixa de Pandora de tecnologias cujos usos poderiam ser terríveis, podendo culminar em Bombas de Gravidade, Distorcedores de Espaço, Indutores de Buracos Negros e o pior de tudo, a devastadora arma de Inversão Gravitacional, a única tecnologia capaz de pulverizar planetas, e que destruíra o planeta Marte por completo.

Era um crime, e ele ficou indignado. Tanto trabalho tivera o Janitor contando com a boa fé do VEMDAN, e este trapaceando da pior forma possível. Levantou vôo por sobre as naves rumo à GRID.

Janitor! O VEMDAN está usando tecnologia antigravitacional! Está me ouvindo! As naves do VEMDAN usam antigravidade!

O senhor tem certeza? Como?

Sim! Tenho certeza! É difícil explicar mas... É uma fraude! Certamente o escudo também usa manipulação de gravidade! O VEMDAN é desonesto e nesse exato momento pretendo enviar a informação pro SISTEMA. Não sei se conseguirei. Sugiro que faça o mesmo.

Isso é terrível senhor. Reluto em acreditar. Posso enviar o comunicado como uma declaração oficial do embaixador humano?

Sim! Com toda a certeza!

Estou tentando senhor. Mas o contato com o SISTEMA, daqui, é difícil.

Difícil? Pra você também?

De fato senhor, os escudos emitem oscilações que conseguem dificultar até isso.

Ele chegou até a arena da GRID, bem antes do local onde as torres atiravam tudo o que tinham nas naves. Um grupo delas acabava de entrar na arena, ele as seguiu. Pousou sob elas e mais uma vez experimentou a sensação. Não teve dúvidas. Era mesmo antigravidade, embora agora fosse nítido um campo eletromagnético fortíssimo que de certo visava, antes de tudo, impedir a detecção da fraude.

E ele sabia, se lembrando daquilo que Kethi dizia em tom quase poético, refletindo uma idéia, praticamente uma crendice, que a capacidade humana de diferenciar gravidade real de imitações se devia a um atributo da mente. "A mente, a coisa mais preciosa, complexa e profunda que existe, só pode ser um fenômenos baseado na mais fundamental força da natureza, a gravidade. De alguma forma, não sei como, a mente sente a diferença daquilo que é feito de sua mesma natureza para aquilo que apenas a imita." Recordou-se.

Ele próprio jamais acreditara naquilo. Parecia-lhe uma superstição. Mas admitia que o modo como era capaz de perceber isso era inexplicável, embora pudesse contar com algumas evidências adicionais, como a simples sensação de falta de peso que sentira no braço quando o passou sob a nave, imune aos campos magnéticos uma vez que sua armadura era feita de um metal completamente insensível a imantação.

Janitor. Conseguiu enviar o comunicado?

Janitor?

Janitor! Está me ouvindo?

Sem resposta. Inexplicavelmente.

Kethi? Pode me ouvir?

Kethi! É sério! Vamos esquecer isso por um momento! O VEMDAN está usando tecnologia antigravitacional! Temos que denunciá-lo ao SISTEMA!

Kethi? Kethi?! Kethi!!!

Então se deu conta de que estava bloqueado. Alguma coisa interferia em sua comunicação. Olhou para trás e notou uma nave se aproximando. Kethi desistira de persegui-lo e enviara uma nave a seu encalço?

Não! Definitivamente não era a nave que utilizaram e nenhuma das que havia na base KOLARA. Tão pouco tinha o design típico de uma delas.

A nave se aproximava rapidamente, e ele levantou vôo em sentido contrário. A nave mudou de trajetória e acelerou.

Kethi! Kethi está me ouvindo? Janitor! Eu, Xanti Karenari Cavalcanti, como cidadão pleno, requisito acesso direto ao SISTEMA! SISTEMA!? SISTEMA GRADIVIND!!!

Nada. O inconfundível tom vibratório que reverberava na própria cabeça típico de quando o SISTEMA abria um acesso direto não se manifestou. Ele até já ouvira falar de locais onde isso podia acontecer, raríssimos, e em geral exatamente por interferência gravitônica, mas pela primeira vez confirmava. De certo era um motivo pelo qual tantas pessoas tinham medo de vir a NERUS. Temiam ficar sem a proteção do SISTEMA.

Propulsionou a armadura em velocidade máxima, quebrando a barreira do som. Nem sequer sabia qual era o limite, e teve dificuldade de lidar com tremenda resistência do ar. A nave que o perseguia não. Avançava inexoravelmente, cada vez mais próxima.

Seria alcançado antes de se aproximar da base KOLARA. Desviou-se rumo à superfície. Esperara que um dos canhões nucleares abatesse a nave, mas como nenhum tomara providência, tinha que improvisar.

Em vôo rasante, teve ainda mais dificuldade em controlar a estabilidade da armadura. A resistência do ar parecia rebater nas rochas e por pouco o descontrole não o fez se chocar com a saliência de uma montanha. A nave continuou, também tendo dificuldades de estabilidade, mas menos do que ele.

Não acreditava que se atrevesse a atirar. O crime do uso de antigravidade já era, por si só, grave, mas atacar diretamente um ser humano era violação gravíssima. Armas não letais, como as de desorientação, seriam inúteis contra a proteção da armadura. O que a nave poderia fazer então?

Mal pensou nisso e sentiu uma oscilação. Todo o seu equipamento falhou por um segundo.

Pulsos eletromagnéticos! Sendo disparados em sequência, e focados, tentando, e conseguindo, afetar sua armadura e diminuir sua velocidade.

Ok. Pra mim chega.

Diminuiu propositalmente e virou de frente para a nave, deixando-a se aproximar ainda mais rápido, então inverteu o corpo e freou bruscamente. A desaceleração foi dolorosa mas ele resistiu, a nave passou por ele por apenas alguns metros, e o deslocamento de ar o jogou longe, rodopiando, e por sorte, para cima.

Ela desacelerou e então ele acelerou e foi em sua direção. Calculou bem sua aproximação e se agarrou a sua fuselagem. Ela não era muito grande, via agora que tinha uns 10 metros de comprimento por uma envergadura de igual tamanho. Firmemente agarrado a ela, foi se deslocando para se proteger atrás de uma elevação, o que o livrou parcialmente da perturbação da resistência do ar.

Ativou seus recursos informáticos especiais, e ordenou-os a tentar entrar no sistema da nave.

Por que está me perseguindo!? Exijo saber!!!

Foi ignorado. Golpeou fortemente a fuselagem e repetiu a pergunta. Impaciente, começou a golpear com mais força, mais e mais. E a nave subiu bruscamente, praticamente na vertical.

Pensou que era o momento certo para se jogar e voltar a fugir, mas achou que ela provavelmente o alcançaria, e se dera conta agora de que não estava mais perto da base nem dos domínios controlados pelo Janitor, que assim como Kethi, permanecia fora do alcance de sua comunicação.

Resistiu, usando um poderoso eletroímã em sua mão para se aderir à fuselagem da nave. Ele não tinha armas, e tão pouco o capacete lhe permitiria usar seu LASER Cerebral, mas reconfigurou seu propulsor do braço direito para queimar anormalmente o hidrogênio que captava da atmosfera, canalizou a chama na forma de um maçarico. Começou então a superaquecer a fuselagem, que resistiu um bocado, mas começava a brilhar.

Pretendia fazer um corte, e forçar o metal para criar uma deformação que arruinaria a estabilidade da nave, impedindo-a de voar muito rápido. E precisava fazê-lo rápido, antes que o ar ficasse rarefeito demais e houvesse pouco hidrogênio para queimar. Se continuassem naquele ritmo chegaria um momento onde não conseguiria mais voar.

Estava quase conseguindo seu intento quando a nave virou, ficando invertida. Ele ativou eletroímãs nos pés e permaneceu firmemente preso a nave. Por sorte, na parte de cima, ela não tinha repulsores magnéticos. Você não queria me pegar?! Agora eu peguei você!

Puxou então um vasto pedaço de metal criando um autêntico freio de ar. Pronto! Quero ver me alcançar agora! Sabia, pelo que já pudera constatar, que a nave não deveria ter qualquer sistema eficiente de reparo rápido. Olhou a sua volta. Estava envolto por nuvens cinzentas em um céu de cinza ainda mais escuro, e só então notou uma outra nave, bem maior, vindo exatamente rumo a ele, com uma comporta frontal aberta como uma a boca escancarada de um tubarão.

Não teve tempo de reagir. A própria nave na qual estava manobrou rumo à maior e subitamente ambos foram engolidos por ela.

Lá dentro, o impacto foi tremendo. A nave menor adentrou a abertura se chocando com tudo e se destruindo, e ele bateu diretamente numa parede, sentindo duramente o choque.

A nave que o capturara manobrou bruscamente e ele mais uma vez se chocou com a parede oposta. Então um pulso eletromagnético neutralizou sua armadura por alguns segundos, e no momento em que ela se religou, percebeu que seu sistema operacional foi invadido. Um vacilo enorme. Não se preocupara em momento algum de erguer uma proteção. Jamais pensou que seria necessária. Então seu capacete abriu, e soube de imediato que fora atingido por uma arma sensorial.

O mundo a sua volta se desfez num caos de luzes e sons. E ele desmaiou.

Fim da Parte - 1

Marcus Valerio XR
30/11/11 - 03/14
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