OS CRONONAUTAS
A Versão EXERIANA de
"A Máquina do Tempo" de H.G.Wells

Primeira Parte

Segunda Parte
800 SÉCULOS EM 43 HORAS
[aproximadamente 24.200 caracteres]

Terceira Parte

CAPÍTULO IV

Na noite seguinte, George acordou sobressaltado, olhou seu quarto como se de repente não o reconhecesse, até que se acalmou. Os amigos logo vieram vê-lo. Ele lhes sorriu mas continuou em silêncio. Se levantou, caminhou como que reconhecendo coisas que há muito não via. Usou longamente o banheiro e voltou barbeado e banhado. Finalmente desceu para comer a refeição, devorando alguns itens, e deixando intocado outros que antes ele costumava consumir com avidez.

Finalmente quebrou o gelo.

- Me desculpem meus amigos...

Wells e Herbert ainda não estavam preparados para ouvi-lo falar, apesar de ansiosos. E prestaram muita atenção, não tencionando fazer perguntas, e nem sendo necessário, pois o próprio George deu início a um monólogo calmo, detalhista, com todas as características da lucidez, mas de peculiaridades tão fantásticas que pareciam insanas.

Sua voz estava ligeiramente diferente. Tinha até um certo estranho sotaque.

Essa, é a sua história.

Há muito tempo ensaiei este discurso. Na verdade até o gravei várias vezes, mas nenhuma gravação me parece satisfatória. E embora você possam conferir boa parte disso nos registros da máquina do tempo, creio que preferirão ouvi-lo de mim, mesmo porque eu tenho uma enorme necessidade de contar essa história.

Naquele dia... Que para vocês foi apenas ontem, mas para mim, já faz um ano...

Naquele dia, assim que acionei a máquina, comecei minha viagem para o futuro. Por um breve instante vi outra máquina surgir e cair no chão, depois se levantar e voltar à plataforma, tudo muito rápido, pois em pouco segundos eu já avançava para o futuro a razão de 55 segundos em 1, e indo cada vez mais rápido.

Via movimentos no laboratório como borrões difusos, e pelas janelas notava o céu clarear e amanhecer cada vez mais rápido, até tudo assumir um tom constante. O laboratório ficou ligeiramente mais escuro, acho que foi abandonado e sua iluminação interna nunca mais foi acesa, até que por volta de 2080 ele desapareceu, e ao meu redor surgiu imediatamente outra construção.

Fiz a nave subir, quase sem gasto de energia, pois naquela velocidade de avanço temporal a gravidade era quase imperceptível, tanto que após elevar a nave e atravessar as paredes do prédio que me cercava, pude desligar as hélices, e me deixar flutuar livremente.

Acelerando mais, a Máquina do Tempo logo atingiu sua velocidade máxima, de meio ano por segundo. E a cidade que eu via já era irreconhecível. Prédios imensos se alastravam por toda a parte até sumir de vista. De repente, a cerca de 2400, a aparência mudou bruscamente. Parecia que toda a cidade fora demolida e construída uma nova, com prédios muito maiores.

Subi a máquina mais ainda, e já devia estar a uns 500 metros do solo quando prédios ainda mais altos surgiram ao meu lado. Por uns momentos, a cidade ficou vivamente iluminada, e depois escureceu.

Após quase meia hora de viagem para o futuro, já estava chegando no limite de segurança de mil anos, e a nave começou a desacelerar gradualmente. De repente a cidade pareceu escurecer ainda mais. Alguns prédios sumiram, tudo ficou azul escuro acinzentado.

Lentamente a nave foi reduzindo sua velocidade de avanço para o futuro até sentir a sucessão de dias a noites voltar, e a força da gravidade começar a atuar significativamente. Fui descendo sobre um dos imensos prédios abaixo de mim até pousar, e esperar a desaceleração total, até por fim parar de saltar para o futuro. Finalmente a nave tocou a cobertura do prédio. Era noite.

A estrutura apesar de velha parecia firme, reinava uma quietude total. Quase nenhum vento. Com os sensores da nave verifiquei a atmosfera. A pressão havia caído muito com relação ao nosso presente, mas nada difícil de se suportar para quem já pegou um vôo do nível do mar para La Paz. A composição do ar, apesar de diferentes níveis de Nitrogênio e Dióxido de Carbono também não apresentava qualquer problema.

Cuidadosamente abri a cabine, ainda usando uma máscara de ar por precaução. Estava muito frio. A temperatura acusava 6 graus abaixo de zero, mas apesar disso não havia neve. Saí da cabine bem agasalhado, tirei a máscara e respirei o ar fresco, puro, apesar de estranho.

Em qualquer direção não se via o menor sinal de vida. Por toda parta havia prédios quilométricos. O que eu estava era dos menores. Todos pareciam ser feitos de rocha escura maciça, embora eu achasse isso improvável. Fora a arquitetura, não havia qualquer outro sinal de tecnologia. Pareciam ruínas, apesar da estrutura dos prédios apresentar-se aparentemente intacta

Estava eu exatamente em 31 de Outubro de 3009, não fora possível parar antes. Caminhei pelo terraço. O piso era firme, revestido de um tipo de cerâmica trabalhado, muito empoeirado. Uma névoa densa e baixa não me permitia ver o solo, mas eu tinha boa visão em todas as direções.

Pequei a câmera, que me serviu de telescópio e vasculhei o horizonte, e então muito longe ao horizonte, vi movimento. Eram luzes distantes que denunciavam algum intenso tráfego aéreo e aparentemente uma outra cidade. A impressão do cenário a minha volta me chamou novamente a atenção, e tudo me pareceu ainda mais decadente e misterioso. Diria assustador. Parecia que eu estava em uma cidade fantasma, onde sequer o vento se dignava a produzir qualquer som.

Eu estava a cometer um deslize imperdoável, na verdade dois. Primeiro, ainda não olhara suficientemente para cima, onde enfim contemplei as estrelas. Não pareciam muito diferentes. Avistei também pontos luminosos se movendo, sem dúvida aeronaves cortando o céu azul escuro, que parecia o prenúncio do alvorecer, ou o contrário.

Segundo, só então me lembrei de ligar o rádio. Voltei à cabine e o acionei. Dezenas de frequências encheram meus receptores, uma autêntica sobrecarga de transmissões. Gastei um tempo a prestar atenção em sinais sonoros onde pude distinguir vozes falando em idiomas desconhecidos mas onde eu pude jurar ter ouvido algo similar a latim, talvez esperanto, árabe e chinês.

Então o radar da nave acusou um objeto se aproximando rapidamente. Saí da cabine, pequei a câmera e apontei para o céu. Sim. Havia algumas aeronaves se aproximando. Fiquei apreensivo, temi que houvesse hostilidades. Eu viajara com toda a coragem necessária, para compensar a falta de armas ou defesas. Não queria correr o risco de chegar ao futuro como um visitante hostil, portanto instrumentos de destruição, por isso aceitei o perigo de viajar indefeso.

Por precaução me virei para a máquina e já estava prestes a subir nela quando de repente um raio passou por sobre minha cabeça. Senti uma forte onda de calor e o feixe alaranjado cruzou por sobre cerca de 3m acima da nave.

Houve uma explosão no prédio a frente, cujas paredes começaram a ruir com um estrondo que perturbava o sono de um cemitério. Fiquei envolvido por uma nuvem de poeira e não hesitei, saltei de volta para a cabine, fechei tudo e decidi não dar chance para um segundo disparo me aniquilar. O indutor de avanço temporal ainda estava ativado, e a energia residual das baterias era suficiente para começar a me mover no tempo, mas somente para o futuro.

Se quisesse viajar para o passado precisaria ligar o reator nuclear, o que demoraria mais tempo. Por isso em segundos eu já estava voando e saltando novamente para o futuro numa razão de 8 segundos para um quanto então outro disparo atingiu em cheio o lugar onde a máquina estava.

A onda de choque talvez tivesse me destruído se seu impacto não fosse minimizado pelo avanço temporal, que me permitiu ver o resultado da explosão rapidamente. Um terceiro disparo ocorreu, porém num local bem remoto, então pude ver o prédio onde eu estava desabar. Mesmo já avançando a uns 35 segundos para um, pude acompanhar o breve desenrolar dos eventos.

Veículos aéreos muito estranhos passaram pelo local examinando-o. Pareciam robôs. Preferi pensar que houvesse boas razões para disparar em uma máquina que estivesse numa cidade abandonada, talvez proibida, e que possivelmente não respondera aos sinais que recebia.

Já a dezenas de dias por segundo, o céu começou a assumir novamente um aspecto homogêneo. Eu precisava encontrar outro local seguro para pouso e parar o avanço temporal para poder dar início ao retrocesso, e voltar ao presente como havia previsto.

Movi a nave até sobrevoar outro prédio, mas preferi avançar mais, na esperança de que tivesse mais tempo antes que um outro ataque me atingisse assim que eu pousasse a nave. Já passava do ano 3020 quando decidi iniciar a desaceleração. A operação toda deveria tomar no máximo uns dois minutos, dos quais apenas por menos de 20 segundos eu estaria no tempo normal, que eu julgava insuficientes para que eu fosse novamente detectado e atacado. Porém, para meu susto, antes que eu pudesse sequer reduzir a aceleração, um clarão intenso se espalhou.

A cidade a minha volta subitamente desapareceu, só restando discretas ruínas ao longe. Que arma terrível poderia ser capaz de tamanha destruição? E então fiquei a centenas de metros do solo. Como a situação se estabilizara, comecei a descer, e quase tocava o solo, por volta de 3230, quando outro clarão, ainda maior me lançou numa densa neblina na qual era impossível distinguir algo.

Fiquei à deriva, esperando a neblina passar, avançando para o futuro na velocidade máxima de 6 meses por segundo. Finalmente o ambiente limpou, mas revelou um solo terrivelmente acidentado. Subitamente uma montanha emergiu e fiquei no interior de rocha sólida, protegido apenas pela velocidade do avanço que me mantinha num contato paralelo muito sutil com a matéria, prossegui avançando.

Subi com a nave até encontrar céu aberto. Era um vulcão! Que aparentava atividade em pleno século XXXV. Subi ainda mais e esperei o tempo passar até encontrar condições mais favoráveis para pouso. Ou ao menos o vulcão aparentar tranquilidade.

Não ocorreu nem um nem outro, o vulcão parecia intermitentemente ativo e o terreno impossível de se de aventurar, até que já no ano 5300 tudo escureceu. Parecia uma era glacial, que durou para mim nada mais que uma hora, e quase no ano 20mil, vi violentas convulsões agitarem a Terra novamente.

O ambiente que eu sobrevoava se tornou mar, sobre o qual vaguei por mais 30 mil anos. Secou dando origem a um imenso vale que rapidamente floresceu se tornando densa selva. Várias mudanças procederam, mas nenhuma que me oferecesse local seguro para pouso. Fui tentado a acelerar a velocidade de avanço no tempo, mas temia que um acréscimo maior resultasse em um total desligamento da influência material do planeta, e me deixasse a deriva no espaço.

Nessa velocidade, vi construções surgirem e se tornarem ruínas antes que eu me aproximasse ou começasse a desacelerar o avanço no tempo. Sucedeu-se outra era glacial e outra, até que finalmente o local se tornara uma ampla planície da qual me aproximei já reduzindo a velocidade de avanço da máquina.

Embora ainda não a salvo de mudanças drásticas no cenário, fui reduzindo até chegar a velocidade de um dia por segundo, e me aproximando de um descampado aprazível. Diminuí mais e pude ver novamente a sucessão de dias e noites, e estranhei muito o fato do céu parecer ser cortado por astros maiores que o Sol e a Lua aos quais eu estava acostumado.

Mas não pude prestar muita atenção nisso e me concentrei no pouso, já estava a menos de dois minutos por segundo e quase tocando o solo, sem deixar de perceber ocasionais movimentos na selva local, provavelmente de animais. Mas dado a aparência do ambiente, não me parecia que ali eu encontraria qualquer coisa capaz de me fazer mal num curto espaço de tempo.

Finalmente pousei a nave, já a menos de 15 segundos por um, percebendo vários vultos ao meu redor quando fui chamado a atenção para sistemas de alerta da nave, denunciando mau funcionamento. A hélices bruscamente pararam de funcionar e a nave bateu duramente no solo, e finalmente parei de avançar.

CAPÍTULO V

No painel eu tinha alertas muito preocupantes. Havia diversos danos na nave, que só agora se manifestaram devido a estarmos de volta à influência da gravidade. Percebi que o sistema de energia falhava, e que havia superaquecimento nos condutores.

Não tive escolha. Tinha que saltar e reparar a máquina. Chequei a atmosfera e era respirável apesar do frio e de alta umidade do ar. A pressão atmosférica era o dobro da que estamos acostumados, e parecia haver um excesso de ozônio. Por precaução pus a máscara.

Saí da máquina, e contemplei o cenário à minha volta. Só então me dei conta de que estava muitíssimo além do que eu esperava viajar. Estava 80 mil anos no futuro!

Em que tipo de mundo a Terra se transformara? Que criaturas poderia haver ali? Teria sobrevivido a humanidade?

O rádio não captava nenhum sinal e em parte alguma eu via evidências de tecnologia avançada, mesmo as ruínas que eu vira por volta de 75.000 haviam sumido.

Tomei coragem e tirei a máscara. O ar era diferente, mas parecia rico e revigorante, até com um aroma agradável de clorofila. Prestei atenção a sons, e só ouvia o que qualquer pessoa esperaria de uma floresta. Uma miríade de sons suaves além do uivo de um vento moderado.

A vegetação era diferente de qualquer uma que já vi, mas nem tanto a ponto de me levar a afirmar que nunca poderia estar numa exótica floresta do presente. Caminhei um pouco sobre um solo que misturava areia branca fina, cristalina, rochas e cristais variados e plantas praieiras.

Estava numa pequena clareira, de um lado a floresta era bem mais densa que do outro, e numa outra direção parecia haver um abismo. O céu estava limpo, azul acinzentado, era um entardecer, eu não via o Sol no horizonte avermelhado, mas ainda estava bem claro.

Finalmente me voltei para a máquina e comecei a examiná-la. Era muito pior do que eu pensava. Havia vários danos. Eu não saíra incólume do ataque sofrido em 3009. Havia partes destruídas na couraça externa e danos extensos nos cabos condutores.

Senti um súbito pânico. Demoraria horas, talvez dias para consertar aquilo. E agora não poderia mais acionar a máquina nem mesmo para um pequeno avanço para o futuro. Toda a energia já fora gasta, só mesmo acionando o reator nuclear para ativar o indutor temporal, o que seria impossível sem antes consertar o sistema de refrigeração e as baterias de partida. Intacto somente o motor a explosão que girava as hélices, que seriam inúteis para levantar uma máquina de quase 8 toneladas sem que o indutor temporal distorcesse e aliviasse a gravidade.

Diante desta preocupação tomei um enorme susto quando percebi movimentos à minha volta. Cautelosos, a princípio silenciosos, mas pouco a pouco mais notáveis. Apontei a câmera, mas nem foi necessário usar o zoom, logo distingui vultos humanos! Ao menos aparentemente.

Pareceram-me a primeira vista crianças. Todos eram pequenos, morenos, cabelos escuros e esbeltos. Me lembravam índios norte americanos com roupas de couro, embora de corte não tão primitivo quanto em princípio me aparentavam.

Por dois motivos fiquei tranquilo. Primeiro porque não vi nenhum sinal de coisas que pudessem ser armas. Eles tinham as mãos vazias ou traziam objetos de aparência inofensiva, como tecidos, sacos pequenos ou bolinhas e outras formas que me pareciam ser frutas. E segundo, porque aqueles seres pareciam ser tão dóceis e inofensivos!

Era difícil explicar. Não se devia apenas à aparência franzina e delicada, mas seus rostos, decididamente humanos apesar de exóticos, transmitiam uma paz e tranquilidade que creio eu, lhes fariam parecer inofensivos mesmo que fossem gigantes.

Se aproximaram mais e pude vê-los com mais clareza. Eu ficava cada vez mais tranquilo com o modo fascinado como me olhavam. Ouvi murmúrios curiosos e risadas. Suas vozes melódicas eram encantadoras apesar de língua absolutamente incompreensível.

Suas peles variavam do moreno ao mulato, os olhos negros ou castanho escuros. Os traços eram uma mistura de orientais com índios sul-americanos, porém muito mais suaves e belos. Eram lindos! Apesar de que eu agora tinha dúvida se eram realmente humanos. Possuíam características que não os permitiriam passar desapercebidos em nenhum lugar de nosso tempo. Entre elas sobrancelhas muito compridas e finas, que se estendiam até as têmporas. Os cabelos formavam molduras em seus rostos, muito cacheados e grossos. Os lábios em geral grossos e pequenos e os dentes branquíssimos e ligeiramente afiados. E ocasionalmente alguns deles me deixavam perceber línguas bem compridas e rosadas.

De repente, um deles se aproximou a distância de quase um toque, disse algo num tom muito cortês e então depositou no chão, aos meus pés, várias frutas exóticas sobre uma toalha de tecido muito bem trabalhado, num padrão quadriculado geométrico que destoava da aparência mais rústica de suas demais indumentárias.

Fiquei surpreso com aquilo. Subitamente, vários deles se aproximaram e deixaram oferendas a meus pés como se eu fosse uma divindade. Eram frutas, cristais, pequenos objetos de metal, cerâmica ou algo que parecia osso, em geral não identificáveis mas artesanalmente trabalhados ou em alguns casos aparentemente sofisticados.

Observando melhor seu comportamento notei que a novidade ali era eu, e nem tanto a máquina, que eu esperava que despertasse maior atenção. Mas não demorei a supor o porquê.

Eu estivera ocasionalmente aparecendo naquele lugar através dos tempos. Lembro que eu vi vultos correndo na floresta. Provavelmente a máquina fora avistada por vários deles ao longo de anos, e cada vez com mais frequência, de modo que eles poderiam esperar o momento em que eu surgiria.

Provavelmente eu estava sendo recebido com todas as honras de um esperado viajante, e diante desse pensamento sorri pela primeira vez.

O que se sucedeu foi encantador. Ao meu sorriso, todos eles se alegraram ainda mais, alguns deram pulos de satisfação e chegaram a gargalhar. Outros logo lhes chamaram a atenção e ele se tornaram comedidos novamente, como se não quisessem me desrespeitar.

Ao ver alguns deles se aproximando e tocando na máquina, tomei a precaução de fechar a cabine, mas não sem antes verificar novamente se porventura não escapava qualquer forma de radiação. Eu seria um monstro se levasse algo tóxico para o mundo daquelas dóceis criaturas, e de repente fiquei apreensivo pela possibilidade de trazer alguma bactéria ou vírus que lhes pudesse ser prejudicial, da mesma forma que o mesmo poderia ocorrer comigo.

Com essa preocupação, pequei meu estojo medicinal, que possuía algumas vacinas contra classes de bactérias conhecidas, embora eu tivesse pouca esperança que elas seriam eficazes contra microorganismos de 80 mil anos do futuro.

Pareciam insistir para que eu provasse as iguarias trazidas, o que era temeroso. Eu não sabia se meu organismo se daria bem com a dieta de uma floresta semitropical de 800 séculos no futuro. Ao mesmo tempo tinha medo de fazer alguma desfeita, então arrisquei uma provada numa das frutas que me pareciam mais aprazível.

O gosto era muito parecido com o de maçã, porém mais ácido, mas nada que me despertasse maior preocupação. Experimentei também outros quitutes, sempre cheirando-os primeiro e me precavendo de colocar na boca o mínimo possível. Por fim, no primeiro momento de distração deles, retirei tudo o que havia juntado na boca, eu nada engolira, e coloquei num frasco para posterior análise.

A comida passara na prova de meu paladar, mais tarde eu faria alguns testes para verificar-lhe a possível presença de substâncias perigosas. Pela mesma desconfiança, nem cogitei a possibilidade de oferecer a eles qualquer de meus mantimentos.

Logo começaram a me chamar, fazendo gestos que indicavam claramente que queriam me levar a algum lugar. Começava a escurecer e esfriar mais, e em parte pela curiosidade e simpatia que eles me causaram, e em parte por estar exausto por aquelas 43 horas dentro da máquina. Decidi aceitar o convite, mas não sem antes trancar totalmente a cabine e guardar dentro de um depósito lacrado tudo o que pudesse ser mais facilmente retirado da estrutura externa.

Ativei várias câmeras, apontadas para fora vigiando o perímetro, para que eu pudesse conferi-las por um visualizador remoto, e vários outros sensores que me permitiam saber de imediato qualquer coisa que acontecesse.

Pequei uma mochila e juntei várias coisas importantes, e segui meus anfitriões numa estrada picada pelo mato, ascendente, e que me tranquilizou por que eu sempre podia ver a máquina ao longe. No caminho, fui gravando um pequeno relato em áudio, o que não era fácil com a atenção que aquelas criaturas me exigiam.

Notei então um forte clarão no horizonte a frente enquanto subia uma elevação, e de repente me deparei com algo espantoso.

Era a Lua nascente! Imensa! Enorme como jamais pensei ver. Estava diferente. Mal podia eu reconhecer o tradicional "coelho" em sua geografia, que parecia alterada. Mas era a Lua, definitivamente, só que muitíssimo maior do que nós a vemos aqui no presente.

Parecia crescente, estando cerca de 3/4 luminosa e afastando as sombras da noite com claridade amarelada pouco menor que a do Sol. Fiquei tão fascinado que a filmei por minutos a fio, ficando parado, para a curiosidade e impaciência de meus guias.

Que teria acontecido? Era como se a dama da noite estivesse muito mais próxima da Terra, tendo reduzido sua distância média de 360 mil km para cerca de metade, o que a obrigaria a girar em torno do planeta 4 vezes mais rápido para não ser puxada de encontro ao planeta pela força de gravidade. Já no dia seguinte em iria concluir que minha hipótese estava corretíssima.

Já não mais conseguia ver a máquina devido a interposição da floresta, mas já podia ver ao longe algo similar a uma aldeia. Caminhando sob o fortíssimo luar, no mínimo duas vezes mais forte do que jamais fora uma lua cheia em nosso presente, logo chegamos ao nosso destino.

Fui recebido de modo ambíguo. Os mais jovens em geral pareciam muito entusiasmados e deslumbrados, uns poucos mais velhos, que aparentavam no máximo uns 40 anos, pareciam um tanto assustados e desconfiados, mas demonstravam a mesma inofensividade.

Uma grande festa começou, acenderam uma fogueira e uma multidão se aglomerou a minha volta. Todos queriam me tocar, e então percebi que não havia um só que fosse da minha estatura. Os mais altos tinham no máximo 1,70, e não havia muita diferença de porte físico entre os homens e a mulheres, que trajavam inclusive roupas praticamente iguais.

Todos eram também imberbes e quase sem pêlos, mesmo os homens aparentemente mais velhos, bem como todas as mulheres que tinham seios pequenos, ainda que graciosos. Eram também todos esbeltos, alguns rapazes um pouco mais musculosos que os outros, mas nada que chamaria atenção para nossos padrões atuais.

Observando melhor o ambiente, não demorei a notar um contraste de recursos. Predominava uma arquitetura rústica. As casas eram construídas em torno das árvores, com madeira e imensas folhas de algum vegetal estranho, que devidamente entrelaçadas se assemelhavam a uma grossa e rígida palha. Havia também algumas construções de pedras montadas e aparentemente coladas por massa. Havia artesanato bastante rebuscado com madeira, ossos, pedra polida e uns poucos metais, mas tudo ainda primitivo. Por outro lado, em ocasionais locais eu notava aparatos bem mais sofisticados, de metal forjado de modo muito mais refinado, tecidos que pareciam industrialmente trabalhados ou objetos de vidro de grande transparência.

Era estranho, e a primeira coisa que supus era que eles tinham contato com povos de tecnologia superior que lhes forneciam esses objetos.

Chequei as câmeras que vigiavam a máquina, e salvo um ou outro deles que costumavam surgir para olhá-la mais de perto, nada de preocupante aconteceu. Comi alguns itens de meus mantimentos ante o olhar curioso deles, e tive uma grande dificuldade para conseguir alguma privacidade para necessidades básicas.

Acabei por aceitar líquidos que me eram oferecidos. A água parecia ser um tanto ferrosa, e havia alguns refrescos de sabores estranhos que sorvi o mínimo possível. Pouco a pouco a festa foi se acalmando, até que vários deles se reuniram sentados em torno da fogueira onde eu também estava, e falaram muito entre si.

Foi então que comecei a prestar melhor atenção a seu idioma, e me pareceu bastante simplório. Os termos se repetiam muito, havia uma quase total predominância de vogais em detrimento de semi-vogais e muitas consoantes pareciam fundir-se numa só, de modo que distinguia com clareza no máximo umas dez. T e D eram indistinguíveis por exemplo.

O sono me atacou e então alguns me chamaram e me levaram a um aposento suntuosamente preparado para os padrões deles. Era uma cabana no alto de uma rocha, ao lado de outras, bastante limpa e ornamentada com várias indumentárias.

Pouco a pouco tudo se acalmava, a fogueira se apagou e restou apenas a forte claridade da Lua. Logo depois, uma bela moça veio me fazer uma insistente companhia. Era muito jovem, e não me agradava a conotação sensual que aquilo sugeria, me faria sentir como um pedófilo. Por outro lado tive a sensação de que recusá-la poderia ser ofensivo, e então optei por acolhê-la mas de modo algum tomar alguma atitude.

Porém foi inútil, a bela jovem, de olhar tão ingênuo, se lançou sobre mim com uma voracidade que jamais pensei ser possível numa criatura de aparência tão frágil. Preocupado com problemas relativos a contaminação biológica, e também cultural, agi como uma presa acuada, mas após horas de insistência, a jovem, que logo entendi que se chamava algo como "Uiina", venceu minhas resistências, assim como acho que teria vencido até a de um monge.

CAPÍTULO VI

No dia seguinte um Sol radiante me despertou, e olhando confuso à minha volta, demorei muito tempo para me convencer de que tudo aquilo era real. Num sobressalto conferi a gravação das câmeras que vigiavam a nave. Para minha preocupação inicial uma das câmeras foi virada e filmava agora a trilha que dava acesso ao local, mas essa contingência foi benéfica, pois pude ver então que meus anfitriões montaram uma guarda no local, impedindo que alguns outros, em geral crianças, se aproximassem da nave. As demais câmeras também me tranquilizaram, retrocedi e acelerei as gravações várias vezes e vi que nada merecia preocupação, ainda que muitos deles houvessem se aproximado e tocado a máquina.

Ao acordar e me ver desperto, a moça com a qual dormi subitamente me tomou pelo pulso e me levou para fora onde várias pessoas me aguardavam. Fui, mais uma vez, recebido com festa e entusiasmo, e havia um banquete impressionante distribuído por várias mesas.

Após um breve auto-exame com meu kit medicinal, que incluiu uma análise superficial de minha própria urina, conclui que muito provavelmente não havia grande risco naqueles alimentos, mesmo assim comi-os moderadamente, intercalando-os com minha própria comida. Eu viria a ter alguns revertérios intestinais, mas nada grave.

Irresponsavelmente despreocupado, me entreguei à alegria daquelas criaturas. Havia também músicos, que usavam curiosos instrumentos de cordas e sopro que emitiam sons primitivos mas agradáveis, e alguns exibicionistas que faziam acrobacias e malabarismos. Notei que, definitivamente, eles tinham acesso a tecnologias mais avançadas, mas logo percebi que pareciam ser antigas. Era como se eles usufruíssem dos espólios de antigas civilizações sofisticadas, a julgar pelos tecidos evidentemente industriais que possuíam, bem como por alguns utensílios de vidro e metal evidentemente forjados por técnicas que pareciam alheias àquelas pessoas.

Mas logo notei também que havia duas classes daqueles objetos. Um deles era de manufatura recente e medianamente sofisticada, e o outro de manufatura mais antiga porém bem mais avançada. Em vários destes mais antigos pude notar inscrições em caracteres exóticos e complexos, ao passo que nos recentes observei no máximo rabiscos simples. Uns poucos objetos conseguiram me confundir por um tempo, mas era notório que essas diferenças eram até mesmo identificadas por seus usuários. Supus então que deveria haver, não muito longe, uma outra tribo que dispusesse de instrumentos mais sofisticados e de maior acesso a recursos.

Mais tarde visitei a nave, e sob um sol forte mas normal sob todos os aspectos, dei início a uma investigação mais minuciosa. Inicialmente desanimado, logo vi que alguns dos problemas de contato e danos eram de fácil reparo, e que o mais difícil era lidar com a curiosidade de meus companheiros. Passei o restante do dia trabalhando no conserto da máquina e comi ali mesmo a refeição que me trouxeram. Só parei ao ver a espantosa lua quase cheia emergir no horizonte tornando a noite mais clara que o fim do dia.

Caindo a noite, mais uma vez assisti a alguns shows de meus anfitriões, e desta vez uma nova moça veio compartilhar meu leito, e assim terminei meu primeiro dia completo naquele novo mundo.

Apresentação

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